RS: A reconstrução e as novas batalhas dos atingidos

População precisa, agora, “aprender a ser atingida”, como diz um poema. Isso inclui enfrentar a indústria do desastre, que negligencia direitos, e pressionar por mecanismos de controle e participação social. O modelo de reconstrução ainda está em disputa…

Foto: Juliana Reis/Cidade de Canoas/AFP
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Nesse momento em que se articulam as iniciativas para a recuperação das áreas afetadas pelos desastres ocorridos no Rio Grande do Sul em maio de 2024, cumpre examinar como tem sido algumas experiências pós-desastres que ocorreram recentemente no Brasil. São vários grandes desastres, entre os quais vale lembrar aqueles decorrentes das imprudências da Brasken na extração de sal gema em Maceió; a destruição ocorrida na bacia do Rio Doce e do Rio Paraopeba associada à exploração gananciosa de minérios, entre outros. Os recursos implicados nos projetos de recuperação destes territórios são da ordem de bilhões de reais e, em alguns meios de comunicação de tendência neoliberal, não há pudor em afirmar que o desastre abre uma “janela de oportunidades”. Cabe questionar, então, quem são os beneficiados por estas oportunidades.

No caso dos desastres da Samarco, BHP Billinton e Vale no Rio Doce e Rio Paraopeba, pouquíssimas pessoas conseguiram receber uma indenização justa para dar continuidade às suas vidas e resgatar direitos humanos que lhes foram subtraídos pelo desastre provocado. Ao mesmo tempo, os acordos bilionários para as ações de reparação sustentam o que se pode chamar uma “indústria do desastre”, onde deixa-se em segundo plano o resgate de direitos das pessoas atingidas, mas alimenta-se generosamente grupos de consultores, construtoras, especialistas em desastres, grupos de advogados e demais atores sociais que se beneficiam de formas diversas dos recursos públicos e privados destinados à mitigação dos danos.

Assim, enquanto as mineradoras fortalecem nos territórios uma narrativa que apresenta as pessoas atingidas como oportunistas e gananciosas, pouco se fala dos rendimentos obtidos por estas empresas nos últimos anos – o lucro líquido da Vale no terceiro trimestre de 2019 chegou a ser até 15% maior do que no ano anterior – e das negociações bilionárias entre o Estado e o capital privado que se desenrolaram a partir daí. Como exemplo, podemos citar o acordo fechado entre a Vale e o governo de Romeu Zema, que prevê a destinação de 5 bilhões de reais da reparação socioeconômica para a construção de um anel viário na região metropolitana de BH. Não bastasse a obra ter como principal objetivo facilitar a logística de mineradoras da região e ser uma aberração do ponto de vista social e ambiental, o empreendimento ainda será realizado por meio de uma Parceria Público-Privada com a empreiteira italiana INC S.P.A, uma organização bastante controversa e vinculada a setores da extrema direita italiana – pelo qual, diga-se de passagem, Zema tem demonstrado grande apreço. Assim, oito anos depois do rompimento em Mariana e cinco anos do rompimento em Brumadinho, podemos dizer que muitas pessoas gananciosas e oportunistas enriqueceram de verdade com esses desastres. E, certamente, não foram as pessoas atingidas. 

Assim como a seca no Nordeste foi, secularmente, o motor para o enriquecimento das elites locais e para a apropriação indevida das “terras arrasadas”, os processos de reparação dos desastres socioambientais dos últimos anos anunciam a chegada (ou seria repaginação?) de uma nova-velha forma de fazer dinheiro em nosso país: o capitalismo de desastre. Não é de hoje que intelectuais e organizações do campo da esquerda denunciam o “capitalismo do desastre”, a “gestão da barbárie” e outros fenômenos relacionados ao fato de que o capital privado se aproveita dos momentos de crise para promover seus interesses políticos, econômicos e ideológicos. Contudo, com a maior frequência dos eventos climáticos extremos, como o que estamos vendo no Rio Grande do Sul, é vital que esta discussão possa se expandir e passe a ocupar também os veículos de imprensa e o cotidiano da população brasileira, que precisa estar atenta e preparada para assumir seu papel na luta pela reparação de seus direitos de atingidos climáticos. 

Isso porque, enquanto o nível da água está baixando nas cidades e áreas rurais do Rio Grande do Sul, podemos ter certeza de que políticos, empresários e dirigentes partidários assinam, a portas fechadas, seus contratos indecorosos para “reconstruir” o estado. Mais uma vez, sem nenhum tipo de participação dos principais interessados no assunto. 

O maior exemplo que temos até o momento é a contratação da empresa Alvarez & Marsal para atuar na recuperação da cidade de Porto Alegre, uma trama muito bem analisada na reportagem de Tatiana Dias para o Intercept Brasil, publicada no último dia 21 de maio. De acordo com a repórter, o contrato veio de uma iniciativa quase filantrópica da empresa, que se propôs a prestar consultoria de maneira gratuita durante os seis primeiros meses, em troca da possibilidade de renovação pelos próximos anos. A empresa – que no Brasil já atuou nos rompimentos de barragens da Samarco e da Vale e com as organizações investigadas pela Operação Lava Jato – foi a mesma responsável pela reestruturação da cidade de Nova Orleans após a devastação do furacão Katrina. Denunciada como catalisadora dos processos de privatização dos serviços públicos nesta cidade, a Alvarez & Marsal agora volta seus olhos para os desastres climáticos e sua nova “janela de oportunidade”. Ao lado deste exemplo emblemático, podemos observar também empreiteiras, escritórios de advocacia, consultorias ambientais e até mesmo o setor humanitário já se aquecendo para disputar o mercado de desastres climáticos em nosso país.

Ainda que as inundações no Rio Grande do Sul se distanciem em alguma medida dos crimes socioambientais cometidos por empresas transnacionais, ambos podem ser associados à negligência do Estado na sua prevenção e na garantia da segurança da população mais vulnerável frente a estes eventos disruptivos. Com os governos aliados ao capital privado, nacional e internacional, momentos de crise climática se transformam em um terreno fértil para a transferência de recursos públicos para o setor privado, além do desmonte silencioso dos serviços públicos e de políticas de bem-estar social. Parafraseando a pesquisadora colombiana Claudia Rojas, assim como em outros contextos catastróficos, o projeto anunciado de “reconstrução” do Rio Grande do Sul tende a se tornar um pretexto para: “i) aumentar e consolidar o papel de grandes corporações privadas; ii) abrir uma janela de oportunidades para o avanço dos interesses econômicos, políticos e ideológicos da classe capitalista transnacional; e iii) propiciar oportunidade para a promoção de agendas neoliberais (ROJAS, 2020, p.27). Neste contexto, os megaprojetos de reparação dos territórios atingidos, ao invés de se tornarem um meio para a devida reestruturação da vida das pessoas, acabam por se tornar palcos de jogos de poder, campanhas de publicidade e, sobretudo, de violações cotidianas de direitos humanos. 

 Exemplos destas violações não faltam: estudos falsos e campanhas de desinformação veiculadas de maneira estratégica; omissão dos resultados de laudos ambientais; invasão de propriedade; chantagem e manipulação de pessoas em situação de vulnerabilidade; uso de tecnologias duvidosas (mas bastante lucrativas para alguns grupos); racismo contra povos tradicionais atingidos; investimentos bilionários em obras eleitoreiras em detrimento das ações em áreas mais vulneráveis… A lista de violências praticadas nestas situações é extensa e bem documentada. Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), movimentos sociais e grupos de pesquisa como o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/ UFMG), o Núcleo de Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS/ UFJF) e o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA) estão há anos denunciando as violações de direitos humanos em projetos de reparação socioambiental desenvolvidos por estas grandes empresas. 

Se os gestores do Rio Grande do Sul não aprenderam com as tragédias vivenciadas pelo Brasil nas últimas décadas, pode ter certeza de que o capital privado aprendeu e está mais do que preparado para implementar seus projetos de poder e enriquecimento. À população atingida pelas inundações e chuvas, cabe olhar para o passado (recentíssimo) e ter firmeza necessária para não perder nenhum direito já conquistado anteriormente em outros territórios. Neste sentido, o primeiro passo é o início de uma mobilização popular ampla e atenta, que exija acesso à informação e participação ativa nos processos de tomada de decisão sobre a reconstrução dos territórios atingidos. A afirmação de que o processo de reparação não passa pela reconstrução de prédios, mas de vidas é a próxima luta a ser travada. Essa mobilização deve se dar tanto em nome dos que ainda sofrerão os danos causados pelas mudanças climáticas, mas também como forma de honrar os que perderam suas vidas nesta tragédia. Como diria Angélica Peixoto naquele poema lido repetidamente nas primeiras reuniões do Movimento de Atingidos por Barragens após o crime de Mariana, a população do Rio Grande do Sul precisará agora “aprender a ser atingida”. 

Assim, contra todo o discurso de heroísmo e de eficiência da iniciativa privada na gestão da crise, será necessário exigir dos municípios e dos governos estadual e federal um processo de reparação centrado nos seus cidadãos e na restituição dos direitos à moradia, água, saúde, educação e todos os demais que foram e que serão violados ao longo dos próximos meses. Para isso, é importante, pelo menos: descentralizar o processo de reparação, de maneira que os projetos contemplem áreas rurais e periféricas e não apenas os grandes centros econômicos; garantir a existência de assessorias técnicas verdadeiramente independentes, que atuem junto das pessoas atingidas na defesa de seus direitos; desenvolver mecanismos adequados de controle e participação social no processo de reconstrução dos territórios atingidos; priorizar os investimentos em territórios ocupados por populações em maior situação de vulnerabilidade; criar ferramentas para priorizar a contratação das pessoas atingidas nas obras e projetos de reparação a serem executadas em seus territórios;  e dar visibilidade e respostas reais aos danos imateriais sofridos pelas populações atingidas, em suas dimensões culturais, religiosas e afetivas. 

A enorme proporção do desastre no Rio Grande do Sul confere aos seus atingidos o potencial e um papel histórico de inaugurar um novo formato de organização popular para o enfrentamento da crise climática em nosso país, honrando a tradição de mobilização e luta do povo gaúcho. Para isso é importante tomar as lições das experiências traumáticas do passado. Infelizmente, dessa vez, não será possível fazer nenhum minuto de silêncio. 

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Um comentario para "RS: A reconstrução e as novas batalhas dos atingidos"

  1. Excelente artigo. Divulgarei em todos os cantos que puder.

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