Reportagem: Um quilombo luta para se reerguer

A áspera vida dos povos originários, após os desastres climáticos. No RS, Quilombo Martimiano tenta reavivar roçados e pastos destruídos pela enchente. Os bancos nada financiam. Universidade federal ajuda com sementes e assistência

Retomada da autonomia produtiva é uma das esperanças e lutas da comunidade – Foto: Micael Olegário

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A primeira vez que noto a presença de João Resende de Souza ele está sendo conduzido para dentro do salão comunitário do quilombo do Rincão dos Martimianos, no interior de Restinga Seca (RS). Pouco depois, já do lado de fora, descubro que um problema de saúde prejudica a visão do líder comunitário. Apesar da dificuldade sensorial, logo percebo que a capacidade de enxergar o futuro permanece intacta em João. Aos 65 anos, já foi pedreiro, carpinteiro, ferreiro e agricultor. As mãos calejadas ajudam a contar a sua trajetória marcada pelo trabalho.

Com uma fala tranquila, o homem preto com cerca de 1,70 metro menciona a dificuldade encarada desde cedo pela comunidade rural: ser quilombola no interior no Rio Grande do Sul é estar exposto ao racismo e a invisibilidade em muitas dimensões. O reconhecimento da terra onde vive é o que motiva o líder a seguir lutando por melhores condições para sua comunidade. “Daqui a 50 anos, meu tataraneto vai ter um pedaço de terra garantido para ele”, afirma João, ao apontar para os campos do território coletivo de 98 hectares do quilombo, fruto de um processo de reconhecimento que começou há 20 anos, em 2004. 

João é um dos bisnetos de Martimiano Resende de Souza, filho de ex-escravizados que foi o primeiro a ocupar o território que hoje pertence ao quilombo. Atualmente, são 54 famílias que vivem na comunidade rural, mas as dificuldades econômicas para produzir levam muitos a buscar emprego na cidade. Essa situação, explica João, está relacionada à dificuldade em obter financiamento e apoio.

Diferente de médios e grandes produtores rurais que recebem diversos incentivos públicos e privados, os moradores do Rincão dos Martimianos encaram barreiras para obter empréstimos para custear sua produção. Como a posse do território é coletiva, as terras não podem ser dadas como garantia. “A nossa luta é para desenvolver uma política voltada para termos acesso a financiamento. Quando chego no banco me pedem um documento de terra como garantia. Essa política não foi desenvolvida para nós”, reclama João Resende.

Uma das possibilidades às quais a comunidade pretende recorrer é o Plano Safra da Agricultura Familiar (PSAF), lançado em julho pelo governo federal, com a previsão de R$ 76 bilhões em investimentos e linhas especiais para quilombolas, indígenas e assentados da reforma agrária. Porém, antes a comunidade precisa trabalhar para recuperar parte do solo que ficou inundado com as enchentes de maio no Rio Grande do Sul.

Uma das lideranças da comunidade, João Resende defende políticas que estimulem produção pelos quilombolas – Foto: Micael Olegário

Impactos do desastre e reconstrução

Presidente da Associação do Quilombo Rincão dos Martimianos, Clédis Resende de Souza conta que com o passar dos anos, a produção no território foi diminuindo, porém, a comunidade possui o desejo de mudar esse cenário. “A comunidade tem esse anseio de ter autonomia produtiva, desenvolver algumas culturas e resgatar nossa ancestralidade”, afirma a líder comunitária e irmã de João Resende. Outro objetivo está em valorizar as plantas e ervas medicinais, uma herança ancestral do quilombo.

Durante o desastre climático no estado, o território chegou a ficar quase uma semana isolado. As chuvas também afetaram diretamente pelo menos quatro famílias. Apesar disso, os impactos mais sentidos foram em parte da área antes utilizada para o cultivo de arroz e outras atividades econômicas. “Hoje estamos sem pasto para o gado, porque tudo ficou alagado. Também para produzir, lavou muito, as áreas de mandioca e batata apodreceram e a lavoura de arroz também foi prejudicada”, descreve Clédis.

Quando a reportagem visitou o quilombo rural, um grupo de voluntários da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em parceria com a Emater RS/Ascar e o município de Restinga Seca, estavam realizando ações de apoio humanitário. As atividades incluíram o cultivo de uma horta comunitária, doação de sementes e oficinas de saúde e alimentação saudável.

“Essas comunidades sempre estiveram em uma situação de vulnerabilidade”, lembra Victor Lopes, coordenador de Cidadania da Pró-reitoria de Extensão da UFSM e um dos responsáveis por organizar as ações. Segundo ele, desde a primeira visita realizada no local, ainda no mês de junho, a comunidade já manifestou o interesse, principalmente, em apoio para recuperar o solo e voltar a cultivar suas terras.

Vice-presidente da associação, Teresinha Aparecida Lopes Paim afirma que as necessidades de um quilombo rural e familiar são diferentes de quilombos urbanos e outros grupos sociais. Em manifestação no salão comunitário da comunidade, Teresinha é uma das vozes mais ativas, inclusive, no momento de reivindicar melhorias nas unidades de saúde que atendem à população do território.

Com 58 anos, Teresinha possui um história de luta constante e atua também na Federação das Comunidades Quilombolas do RS e na Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq-RS). Para conversar com ela, somente após o almoço, pois a coordenação da cozinha era sua responsabilidade. Questiona sobre as demandas e desejos da comunidade, ela reforça o que relatam João e Clédis de valorizar a terra e buscar autonomia. “Trazemos essa ancestralidade do trabalho com a terra há anos”, pontua Teresinha.

Teresinha (esquerda) e Clédis (direita) são duas vozes ativas e líderes do quilombo – Foto: Micael Olegário

Racismo e invisibilidade

De acordo com Clédis Resende, muitas vezes a comunidade recebe mais atenção da Universidade do que da administração local. Como comparação, mas não justificativa, a líder cita a maior atenção destinada para outra comunidade quilombola de Restinga Seca, São Miguel, onde vivem mais de 200 famílias.

João Resende também menciona um episódio que exemplifica o racismo estrutural sofrido pelos quilombolas. No início dos anos 2000, João tinha sido contratado para finalizar a construção de uma série de residências financiadas pelo programa “Minha Casa Minha Vida”. Com o dinheiro, ele foi até a cidade para comprar os materiais necessários para a obra. Após fazer o pedido, foi questionado sobre como poderia pagar. Na visão do quilombola, se fosse uma pessoa branca, essa pergunta não seria feita.

Após o início do processo de reconhecimento do território, João cita que pôde descobrir mais sobre sua origem e adquirir mais força para lutar pela comunidade. “Até então éramos uma comunidade invisível. Existíamos, mas não sabiam que nós existíamos”, enfatiza o líder comunitário. Após esse primeiro passo em direção à dignidade e efetivação dos direitos, o objetivo é resgatar a ancestralidade e construir novos futuros para o Rincão dos Martimianos.

Centro comunitário do quilombo rural no interior do Rio Grande do Sul; quilombolas lutam por visibilidade e reconhecimento – Foto: Divulgação/UFSM

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