Para uma radiografia das guerras pela Água

Crescem como nunca as crises de abastecimento e os conflitos – presentes e potenciais. Quais as causas climáticas e as distributivas. Por que a tecnologia é importante, mas não basta. Como a mercantilização aguça a escassez e as disputas

Imagem: ONU
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Por Davi Victral

A água, recurso essencial para a vida, tem se tornado um foco crescente de conflitos ao redor do mundo. Em regiões onde a escassez de água é crítica, intensificam-se as disputas pelo controle e acesso a este recurso vital, afetando profundamente a estabilidade social, econômica e política. O fenômeno está diretamente relacionada ao aumento da população mundial, às mudanças climáticas, à má gestão dos recursos hídricos e aos conflitos armados por disputas territoriais e políticas. Segundo a ONU, cerca de 1,2 bilhão de pessoas vivem em áreas de escassez hídrica severa, criando um terreno fértil para disputas e violência (ONU, 2021). A crise hídrica não é apenas uma questão de disponibilidade, mas também de acesso desigual, exacerbado por situações de conflito armado, como observado na Palestina, onde a ocupação e a destruição de infraestruturas agravam a crise de água (SMITH et al., 2021). Este texto analisa a guerra pela água e o acesso a este recurso em tempos de conflito, visando entender as causas e impactos desse desafio global.

Causas e Consequências

Os conflitos pela água são fenômenos complexos e multifacetados, frequentemente exacerbados por fatores ambientais, sociais, políticos e bélicos. A escassez hídrica pode resultar de causas naturais, como a localização geográfica e o clima, bem como de atividades humanas, como a sobre-exploração dos recursos hídricos e a poluição. Além disso, a água é frequentemente utilizada como uma ferramenta de poder e controle em contextos de disputa territorial e guerra. Em muitos casos, a má gestão dos recursos hídricos e a falta de políticas de governança eficazes agravam a situação, levando a uma distribuição desigual e ineficiente da água disponível. A combinação de crescimento populacional, urbanização rápida e mudanças climáticas está aumentando a pressão sobre os recursos hídricos em muitas regiões vulneráveis, resultando em conflitos pela água em escala local e transfronteiriça (GLEESON et al., 2020).

Os impactos das mudanças climáticas sobre os recursos hídricos têm sido particularmente devastadores em regiões como a África Subsaariana e o Oriente Médio, onde a água já é escassa. A redução das precipitações, o aumento das temperaturas e a intensificação de eventos climáticos extremos, como secas e inundações, estão alterando os padrões de disponibilidade de água, tornando-a ainda mais imprevisível e escassa. Em um relatório do World Resources Institute, destaca-se que as mudanças climáticas podem reduzir a disponibilidade de água em até 40% em algumas bacias hidrográficas críticas até 2050, exacerbando a competição por água entre países vizinhos e dentro das próprias nações (RANGANATHAN et al., 2018). Essas dinâmicas tornam imperativa a implementação de estratégias de gerenciamento sustentável da água e a cooperação internacional para prevenir e mitigar os conflitos pela água.

Exemplos de Conflitos

Os conflitos pela água geralmente surgem de uma combinação de fatores naturais e humanos que afetam a disponibilidade e a distribuição deste recurso essencial. Entre as causas naturais, a variabilidade climática desempenha um papel significativo. Regiões áridas e semiáridas, já naturalmente propensas à escassez de água, estão enfrentando períodos de seca prolongada cada vez mais severos devido às mudanças climáticas globais, que têm intensificado eventos extremos e alterado os padrões de precipitação, comprometendo ainda mais a segurança hídrica dessas áreas. As mudanças climáticas podem aumentar a frequência e a severidade de eventos extremos, como a escassez hídrica em muitas partes do mundo, agravando as tensões existentes e potencialmente desencadeando novos conflitos (IPCC, 2019). Outro evento extremo são as inundações severas, que podem comprometer a infraestrutura de abastecimento de água, causando danos a estações de tratamento, tubulações e reservatórios, além de sobrecarregar os sistemas de drenagem e saneamento, o que pode resultar em contaminação, interrupção do fornecimento de água potável e até mesmo no colapso temporário ou permanente desses sistemas (SMITH et al., 2021; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020; JONES & THOMPSON, 2019; UNITED NATIONS, 2022).

Além dos fatores naturais, as causas antropogênicas também desempenham um papel crucial nos conflitos pela água. A má gestão dos recursos hídricos, incluindo a falta de políticas eficazes de governança, a corrupção e a infraestrutura inadequada, frequentemente resultam em uma distribuição desigual da água. O crescimento populacional e a urbanização rápida aumentam a demanda, enquanto a poluição industrial e agrícola contamina as fontes disponíveis, reduzindo ainda mais a oferta de água potável. Estudos indicam que em áreas como o subcontinente indiano e o norte da África a sobre-exploração dos aquíferos e a gestão inadequada das bacias hidrográficas têm levado a crises hídricas significativas, aumentando o potencial de conflito (FAO, 2020). A competição por recursos limitados entre diferentes setores da sociedade e entre países vizinhos pode agravar ainda mais a situação, tornando a cooperação e a gestão sustentável da água imperativas para a prevenção de conflitos.

Os conflitos pela água são uma realidade em várias partes do mundo, manifestando-se de diferentes formas conforme as condições geopolíticas e ambientais de cada região. No Oriente Médio, a bacia do rio Jordão, que é compartilhada por Israel, Jordânia, Líbano, Síria e Palestina, tem sido uma fonte contínua de tensão. Israel, que detêm o controle de 80% dos recursos hídricos da região da região, apesar de representar uma minoria populacional na área (INTERPAL, 2018), tem frequentemente sido acusado de restringir o acesso dos palestinos à água potável, o que agrava a crise humanitária na Cisjordânia e em Gaza As colônias israelenses desfrutam de acesso abundante, enquanto muitas comunidades palestinas enfrentam escassez severa, o que contribui para o agravamento das condições de vida e aumenta a animosidade entre as partes (AMNESTY INTERNATIONAL, 2017).

Na África, a bacia do rio Nilo é outro exemplo clássico de conflito pela água. O Nilo Azul, que atravessa a Etiópia, o Sudão e o Egito, é vital para a sobrevivência de milhões de pessoas. A construção da Grande Barragem do Renascimento Etíope (GERD) tem sido um ponto de discórdia significativo entre esses países. O Egito, que depende quase exclusivamente do Nilo para suas necessidades hídricas, vê a barragem, localizada a montante do país, como uma ameaça existencial. El-Said e Salem (2020) argumentam que a falta de um acordo sobre a gestão conjunta dos recursos do Nilo pode levar a tensões maiores e potencialmente a conflitos armados, se não forem estabelecidas soluções cooperativas que atendam às necessidades de todos os países ribeirinhos.

Possíveis Soluções

Os conflitos pela água têm impactos profundos e multifacetados, que se manifestam em diversos aspectos da vida humana. Socialmente, a escassez de água pode levar ao deslocamento forçado de populações, contribuindo para a crise global de refugiados. Em muitos casos, comunidades inteiras são forçadas a abandonar suas terras em busca de fontes seguras, como observado na crise do Lago Chade, onde milhões foram deslocados devido ao encolhimento do corpo aquático (GLEICK, 2014). Economicamente, a falta de água afeta a agricultura, principal fonte de subsistência para milhões de pessoas em regiões em desenvolvimento. A redução da produção agrícola pode levar à insegurança alimentar e ao aumento dos preços dos alimentos, exacerbando a pobreza e a fome (FAO, 2017). Ambientalmente, a exploração excessiva de recursos hídricos pode levar à degradação ambiental, incluindo a desertificação e a perda de biodiversidade. A poluição das águas devido a conflitos também compromete a qualidade dos recursos hídricos disponíveis, levando à necessidade de práticas sustentáveis para preservar os ecossistemas aquáticos (WWF, 2018).

Para mitigar os conflitos pela água e garantir o acesso equitativo e sustentável a esse recurso vital, uma série de soluções e medidas de mitigação podem ser implementadas. A cooperação internacional é fundamental para a resolução desses conflitos. A ONU e outras organizações internacionais desempenham um papel crucial na mediação de acordos e na promoção de práticas de gerenciamento sustentável da água. Por exemplo, a Convenção das Nações Unidas sobre os Cursos de Água Internacionais proporciona um quadro para a cooperação entre países que compartilham cursos de água, incentivando o uso equitativo e razoável dos recursos hídricos transfronteiriços (UN, 1997).

Além da cooperação internacional, as tecnologias inovadoras podem desempenhar um papel vital na resolução da crise hídrica. Tecnologias como a dessalinização e a reciclagem podem aumentar significativamente a oferta de água em regiões áridas. A dessalinização, embora complexa e usualmente de custo elevado para sociedades com menor capacidade de pagamento, já é uma realidade em países como Israel e Arábia Saudita, onde a tecnologia tem sido usada para converter água do mar em água potável, aliviando a pressão sobre os recursos hídricos naturais (GHAFFOUR, 2013). A adoção de práticas agrícolas eficientes no uso da água, como a irrigação por gotejamento, também pode contribuir para a conservação deste recurso. Paralelamente, políticas de gerenciamento integrado dos recursos hídricos são essenciais. Os governos devem implementar políticas que considerem as necessidades de todos os setores e promovam a distribuição equitativa da água. A participação das comunidades locais na gestão dos recursos hídricos é fundamental para o sucesso dessas políticas. Estudos indicam que a gestão integrada, que inclui a participação comunitária, é mais efetiva na resolução de conflitos e na promoção do uso sustentável da água (FALKENMARK, 2018).

A guerra pela água e o acesso a esse recurso em tempos de conflito representam um desafio global complexo. A escassez de água, intensificada por fatores como mudanças climáticas, crescimento populacional e má gestão dos recursos, tem levado a conflitos em várias regiões do mundo. Para mitigá-los, é essencial promover a cooperação internacional, implementar tecnologias inovadoras e adotar políticas de gerenciamento integrado que considerem as necessidades de todas as partes envolvidas. A participação ativa das comunidades locais na gestão dos recursos hídricos, juntamente com o apoio de organizações internacionais, pode contribuir significativamente para a resolução de disputas e a promoção de um uso sustentável e equitativo da água. Somente através de esforços conjuntos e coordenados será possível garantir que todas as populações tenham acesso a água limpa e segura, promovendo a paz e a estabilidade global.

Referências:

AMNESTY INTERNATIONAL. *The Occupation of Water: Amnesty Report on Water Access in Palestine*. 2017. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/documents/mde15/0007/2017/en/. Acesso em: 24 jul. 2024.

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FALKENMARK, M.; Rockström, J. Building resilience to drought in desertification-prone savannas in sub-Saharan Africa: The water perspective. *Natural Resources Forum*, v. 42, n. 3, p. 186-201, 2018.

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GHAFFOUR, N.; Missimer, T. M.; Amy, G. L. Technical review and evaluation of the economics of water desalination: Current and future challenges for better water supply sustainability. *Desalination*, v. 309, p. 197-207, 2013.

GLEESON, T.; VILLHOLTH, K. G.; BERKOFF, J.; CLARKE, J.; et al. Transboundary aquifers and integrated water resource management. *Nature Sustainability*, v. 3, p. 944-950, 2020.

GLEICK, P. H. Water, Drought, Climate Change, and Conflict in Syria. *Weather, Climate, and Society*, v. 6, n. 3, p. 331-340, 2014. Disponível em: https://journals.ametsoc.org/view/journals/wcas/6/3/wcas-d-13-00059_1.xml. Acesso em: 24 jul. 2024.

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JONES, A.; THOMPSON, R. *Flood Resilience in Urban Water Systems: Lessons from Recent Disasters*. Environmental Science & Technology, v. 53, n. 8, p. 4571-4583, 2019.

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