O planeta em chamas e o calor das cozinhas solidárias

Crônica de Belém. No carpete dos corredores, os homens brancos batem cabeça e os lobistas bloqueiam as saídas que nos salvariam da tragédia. Mas em torno de grandes panelas, mulheres cozinham o alimento saudável de quem manterá a luta pela vida

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Belém ferveu. Se a Trigésima Conferência sobre as Mudanças Climáticas queria dar um alerta retumbante ao mundo sobre o aquecimento acelerado do planeta, não faltou nem um incêndio de verdade no pavilhão oficial, para que o recado fosse passado. A tal Zona Azul, ala das “autoridades”, esteve mais para Zona Laranja ou Zona Vermelha, nos dias em que abrigou os eventos da COP.

Antônio Nobre, cientista que tem nos alertado que é a vida que rege o clima e centrar somente na redução das emissões de carbono é uma barca furada, fez uma crônica irretocável sobre a experiência que líderes de países e delegações tiveram em meio ao calor acachapante nos espaços das atividades. Com o sistema de ar condicionado perdendo de lavada para o poder de ferveção dos trópicos, os corpos e as mentes de quem deveria tomar decisões fundamentais para o futuro da humanidade vivenciaram o que é serem tostados vivos, algo que muitos povos, sobretudo no sul global, já vêm tendo que enfrentar.

O sinceridídio cometido pelo chanceler alemão, dando graças aos céus por debandar do inferno que considerou Belém, ao pôr novamente os pés em sua terra natal, deveria entrar para os anais das conferências. Afinal, nada como habitar um país “desenvolvido”, no qual a tecnologia garante comodidades jamais imaginadas pelas pessoas que estão esturricando nos povoados dos países “em desenvolvimento”. É a velha desigualdade, companheira inseparável do imperialismo, selecionando algumas dúzias de privilegiados para que fiquem bem distantes da rapa da população mundial. 

É óbvio que o planeta é um só e será afetado em sua totalidade pelo processo de destruição em curso, mas a intensidade desses efeitos será (e já é!) muito diferente em cada local. No caso do Pará, a temperatura já aqueceu cerca de 2,5 graus e estudos mostram que a Amazônia tem se aquecido em um ritmo duas vezes mais intenso do que a média global, ameaçando savanizar a região, o que afetaria mortalmente o modo de vida de indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais, além de ferir o coração da exuberante teia biodiversa que forma o bioma, extinguindo espécies ainda nem conhecidas pela nossa pretensiosa espécie humana. 

Se caminhamos a passos largos para atingir a média global dos 2 graus acima dos níveis climáticos da época da pré revolução industrial (temperatura nunca experimentada pela nossa espécie), o modo como iremos sentir as consequências desse feito varia gigantescamente. A realização da COP na Amazônia expôs a realidade de seus habitantes, que nos últimos anos vêm sendo castigados com a fumaça de incêndios (criminosos e não criminosos) cada vez mais devastadores, e com as secas de rios que, devido ao seu imenso volume, costumavam parecer mares. E nos permitiu vislumbrar a realidade de outros lugares em que os efeitos do desequilíbrio ambiental também já são sensivelmente vivenciados. 

Mas dar um pulo no “inferno” e voltar para as regalias garantidas por recursos financeiros abundantes não é suficiente para alterar o comportamento de quem tem a caneta na mão, como o bocudo ministro da Alemanha – que, por fim, acabou investindo um bilhão de dólares no TFFF, o fundo que foi criado pelo Brasil nesta COP e é destinado à conservação das florestas tropicais… sim, sim, mais uma tentativa de esverdear o capitalismo. É um valor pífio frente aos cerca de 1 trilhão e trezentos bilhões de dólares estimados para financiar a transição energética, sobretudo nos países “em desenvolvimento”, secularmente explorados pelas potências internacionais, e segurar o clima em níveis viáveis para a civilização humana. 

A elite planetária vai tentar continuar se blindando ao máximo das tormentas, buscando ampliar seus lucros com as tais oportunidades que a agonia crescente das massas afetadas vem gerando. Já as massas… se dependerem da boa vontade dos viciados em dinheiro, vão para a panela, ou para o forno, com os molhos e temperos da ocasião. 

De quem é a culpa? 

Não há nenhuma dúvida de que o capitalismo é a “entidade” causadora do estado colapsante que vivemos. O debate sobre o nome a dar para o atual período geológico já revela essa conexão, pois uma alternativa ao mais conhecido Antropoceno é justamente o Capitaloceno. 

Mas não existe capitalismo sem os capitalistas, e podemos encontrar os CNPJs e os CPFs que estão mais envolvidos na construção do Armageddon. Essa turma é composta pelos CEOs e acionistas majoritários de imensas corporações, um bandinho de bilionários, loucos para virarem trilionários, bem acomodados em suas poltronas e salas climatizadas em países do norte global. Esse grupelho se dá o direito de emitir uma quantidade de gases de efeito estufa equivalente a 20 vezes o que a metade da população mundial emite. É o que mostra o relatório A crise ambiental como parte da crise do capital, feito pelo Instituto Tricontinental para denunciar falsas soluções e apontar saídas. 

Pachamama já os declarou culpados, mas as sentenças (que incluem a redução expressiva dos rendimentos que eles obtêm a partir de negociatas assassinas do nosso futuro, e a obrigação de arcar com os custos dos transtornos que causaram às comunidades) seguem longe de serem executadas. O que nos faz olhar para o outro lado. Se já sabemos de quem é a culpa e que há tanta dificuldade em executar as penas, existe uma outra questão no ar: de quem é a responsabilidade por essa situação de impasse? 

Sem dúvida, é de toda a sociedade, já que partilhamos a existência no mesmo planeta e sofremos as consequências dos atos uns dos outros/as. Mas essa responsabilidade tem formas diferentes de ser exercida. Uma das principais tarefas do sul global e das populações tradicionais, campesinas e periféricas é exigir condições sociais, econômicas e culturais que permitam a realização das transformações necessárias para não sucumbirem frente ao cataclisma que se anuncia. Nesse sentido, trazer a COP para o lugar em que tantos povos indígenas estão, possibilitando que se manifestem frente ao mundo, foi um feito e tanto do governo Lula.

Eles (e nós também) sabem que não dá mais para adiar nossas ações individuais e coletivas, e temos que exigir de volta os direitos que estão sendo extraídos gradualmente de nós. Entre eles, está o de sermos seres vivos plenos (humanos ou não, pois nossa voz precisa conter a voz de toda a natureza) e não objetos de exploração pelo sistema produtivo. Isso implica em termos tempo, como o movimento pela redução da jornada de trabalho reivindica. 

Tempo para conviver com nossa família e pessoas amigas. Tempo para descansar. Tempo para refletir e fazer escolhas. Tempo para cuidar da saúde física, psicoemocional, espiritual, planetária. E tempo para comer o que realmente nos alimenta, o que implica em uma relação muito mais profunda e harmônica com o ciclo alimentar – relação que passa pelo contato com a terra e com a culinária. 

Inimigo número 1 do Brasil 

Não começamos a comer quando levamos a comida à boca. Começamos muito antes. Começamos quando definimos (ou perpetuamos) um determinado Sistema Agroalimentar. É através dele, em suas muitas etapas, que será possível ingerir o que ingerimos diariamente. E nosso atual sistema, baseado no agronegócio e nas indústrias alimentícias de ultraprocessados, está nos adoecendo individual e coletivamente, está adoecendo nossa Mãe Terra e está mostrando que, aqui no Brasil, temos inquestionavelmente um inimigo principal a ser combatido, como afirma Luiz Marques, em seu livro mais recente, Ecocídio: Por uma (agri)cultura da vida, publicado pela Expressão Popular.

E o tal grande inimigo mostrou mais uma vez que sabe se infiltrar nos espaços de decisão. Com a benção da Embrapa, assentou comodamente as bundas de suas centenas de lobistas em um pavilhão chamado de AgriZone, exibindo as maravilhas de sua produção no intuito de multiplicar seus negócios, como denunciaram avidamente as organizações agroecológicas ativistas. Frases como “o Agro brasileiro é exemplo de sustentabilidade” inundaram estandes e peças publicitárias, deixando nítido que ninguém ali se constrange em espalhar mentiras das mais deslavadas. 

Como nossas inimizades não se reduzem ao Agronegócio, também ativamos nossas antenas para outros setores destruidores do presente e do futuro. Vale a pena conferir o levantamento feito pelo Observatório De Olho nos Ruralistas em parceria com a FASE, intitulado A COP dos Lobbies, para compreender o jogo jogado nos bastidores dos eventos… eventos que as mídias comerciais mostravam apenas na superfície, em seus canais fartamente financiados pelo poder corporativo. 

Mineradoras, petrolíferas e big techs sempre andaram de mãos atadas com a indústria agroalimentícia. Agrotóxicos e adubos sintéticos são feitos à base de petróleo, assim como o diesel que transporta (por longuíssimas distâncias) o que entra e o que sai das fazendas e fábricas. As latinhas de alumínio, preenchidas com refrigerante e cerveja, são uma das fontes abundantes de lucro para toda a cadeia que vai da extração do metal até à produção das bebidas e à comercialização pelas redes de fast food e plataformas de delivery, muitas vezes com generosas isenções de impostos. E, cada vez mais, o que se come é embrulhado em plástico, material que vem do mesmíssimo petróleo que lobistas defendem com unhas, dentes e muita grana nos bolsos. 

É esse novelo, com muitos nós ainda nem mencionados aqui, que é necessário desmanchar. Para isso, é preciso das mãos de todas as pessoas que não fazem parte deste pacto funesto de esgotamento dos elementos viscerais da Terra. E o tempo vem se tornando tão escasso quanto se tornaram escassos os solos, as águas e os corpos livres de contaminação por venenos. 

Licença para entrar na nossa casa 

Nosso inimigo número 1 já está definido. O Agronegócio, supremo produtor de commodities para exportação e para a indústria alimentícia, é o responsável diretamente pela maior parte das emissões de gases de efeito estufa no país, além do desmatamento, do extermínio de seres vivos, da poluição de territórios, rios, mares e ares. E conta com a cumplicidade do Congresso Nacional, como revela a recente derrubada dos vetos de Lula ao Projeto de Lei 2159/2021, chamado de PL da Devastação, decisão que irá jogar álcool na fogueira climática. Entre vários retrocessos, ele vai deixar que entes federativos se responsabilizem  pelo licenciamento ambiental. Em estados dominados pelo bolsonarismo, como Rondônia (onde há 10 bois para cada habitante!), isso tem um peso incalculável. 

Agora, é importante saber quem está na outra ponta, defendendo a Pachamama com seu modo de vida diário e sua energia de luta. E, nesta COP da floresta, o mundo pôde ver e ouvir os verdadeiros protagonistas desse embate vital. De fato, uma outra agenda, incrivelmente diversa e dinâmica, foi construída pela sociedade, sobretudo através da realização da Cúpula dos Povos. Ela mobilizou a energia de milhares de pessoas, envolveu um conjunto variado de organizações e colocou o dedo nas feridas que lideranças oficiais de países e lobistas de corporações tentam camuflar, elaborando uma “carta que segura o céu”, resposta legítima às múltiplas crises vividas. 

Unidos, organizados e determinados, os povos tradicionais se fizeram presentes, mesmo onde não haviam sido convidados, como foi o caso dos espaços oficiais de decisão. A fala inesquecível de mulheres líderes indígenas na tomada que fizeram do pavilhão da Zona Azul, de que eram os homens brancos engravatados da COP que tinham que pedir licença para estar na casa delas, botou finalmente os pingos nos iis do evento. Elas tomaram as ruas de Belém para exigir seu direito à existência, algo que só é possível com a demarcação de seus territórios (pleito que, mesmo apenas parcialmente, conquistaram com sua pressão) e a transformação do modelo produtivo atual. A essa gente guerreira, juntaram-se povos quilombolas, ribeirinhos, raizeiros e comunidades de vários locais do Brasil e até de fora dele. 

E a luta pela terra é central para outros setores da população. Os povos campesinos, enlaçados por movimentos sociais como a Via Campesina, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST), o Movimento das Pequenas e dos Pequenos Agricultores (MPA), a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), organizaram protestos, manifestos e soltaram suas vozes pela necessidade urgente de fazermos uma Reforma Agrária Popular Agroecológica no país.

Movimentos e organizações urbanas também ocuparam um papel estrutural nessa teia humana. Nós, que lutamos por um Sistema Agroalimentar baseado na justiça social, na comida de verdade, na consagração da biodiversidade, na partilha solidária do que é cultivado e na valorização da cultura alimentar da população, comparecemos não apenas em atos, em vivências e em debates, mas em um setor crucial para segurar a militância em pé: a pilotagem diária dos fogões. 

Banquete florestal

Enquanto o Agronegócio seguia com seu lobby na tal AgriZone, fingindo que ele é a solução para alimentar o mundo – e vibrava com a liberação de mais agrotóxicos pelo MAPA (um tapa na nossa cara em plena COP) -, mãos de cozinheiras e cozinheiros preparavam comidas saborosas com os alimentos que mãos de agricultoras e agricultores semearam ou pescadores e pescadoras retiraram das (ainda) fartas águas amazônicas.

Uma efervescência de aromas, cores e sabores brotou da ativação das Cozinhas Solidárias locais e das que aportaram na região para o encontro. Pratos tradicionais, com ingredientes nativos, preparados sem o uso de ultraprocessados, foram degustados diariamente pelas pessoas que lutavam contra a lenga lenga perpetuada pelos que têm o poder para definir os rumos do planeta nas mãos. 

Foi essa energia que, durante 5 dias de muita atividade,  permitiu o sustento físico de mais de 20 mil delegados/as da Cúpula dos Povos, que receberam refeições completas e saborosas, em meio a um cenário alimentar geralmente inóspito a quem estava participando da COP, devido ao domínio das empresas que fizeram a gestão dos espaços oficiais e cobraram fortunas pelo aluguel de cada metro quadrado, inflacionando o preço de tudo o que era vendido ao público. Foi essa cozinhança conjunta que nutriu relações de confiança e companheirismo para a luta em curso. 

Lutar e celebrar ao mesmo tempo, essa é a proposta de coletivos artivistas que se articulam Brasil adentro. Comer é um ato político, já que o que comemos pode determinar o que sustentamos como modelo produtivo. Mas comer é um ato festivo, de partilha, de sacralidade. Potencializar esses elementos é um dos pilares do Coletivo Banquetaço, ação que surgiu em 2017 para dizer um sonoro, saboroso e irreverente “não” para a proposta de alimentar a população em situação de rua paulistana com uma espécie de ração feita com sobras de produtos comestíveis industrializados, na época da gestão Dória. 

Ativando dezenas ou até centenas de pessoas para cozinharem juntas receitas caseiras e inventivas, que são então compartilhadas em verdadeiros banquetes públicos, conseguimos demonstrar que outra forma de relacionamento com o universo agroalimentar não só é possível, mas é essencial para sairmos da enrascada civilizacional em que nos meteram. 

Desta vez, a exuberância da mesa coletiva que essa cozinhAção gerou e cravou em plena Praça da República, no coração de Belém, durante o encerramento da Cúpula dos Povos, revela como a integração justa e solidária desses mesmos povos, oriundos dos campos, das florestas, das cidades e das águas, é a chave para que toda a população tenha acesso à comida gostosa, nutritiva, livre de venenos e exploração. No cardápio, que poderia ser degustado gratuitamente por todas as pessoas que passaram pelo local: Salada de feijão manteiguinha, Vatapá vegano, Arroz Paraense de bode, Bolo de Macaxeira, Doce de Bacuri e muitas outras delícias, servidas com trilha musical ao vivo e muitas falas inspiradoras!

E tudo começa na terra, assim como nela recomeça, após cada ciclo vivido.

Movimentando mais que as panelas

Para recriarmos nossa AgriCultura, consideramos que a terra é o berço do alimento. O quê nela será cultivado, por e para quem se dará esse cultivo, como ele envolverá o território, os povos que o habitam, os demais seres vivos, os fluxos de matéria e energia, as formas de preparo e partilha… refletir sobre tudo isso é fundamental para que o processo possa ser feito de forma consciente e responsável. Garantir a distribuição equilibrada da terra é a base para garantir alimentos para toda a tessitura que compõe a vida. 

E as cozinhas adquiriram um papel central nesse ciclo. Elas podem ser vistas como espaços de tomada de consciência de si e do mundo, através do contato com a materialidade e a imaterialidade do universo alimentar. A cozinha familiar já traz essa abertura, mas a expansão para a coletividade, como no caso das Cozinhas Solidárias, permite que estas se tornem centros de articulação social, cultural, política e até espiritual, atuando como agentes transformadores da realidade como um todo, não apenas no território em que estão. 

Esse processo pode ser visto na atuação das redes locais, estaduais e, mais recentemente, da Rede Nacional de Cozinhas Solidárias. Elas funcionam como canais de troca de experiências, de apoio mútuo e até de tomada de decisões, marcando suas posições junto ao Estado, à sociedade civil e às empresas, de modo a influenciar os rumos que tomaremos enquanto nação. Conquistaram políticas públicas, ocuparam espaços em conselhos e teceram laços comunitários fortes o bastante para mobilizar os poderes executivo, legislativo e judiciário. 

Não é por acaso que uma organização como o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto (MTST) investiu na disseminação dessas cozinhas militantes. Elas não apenas alimentam um imenso contingente de pessoas sem acesso à comida regular e saudável, mas promovem o diálogo sobre o modelo de abastecimento que temos e o que queremos, trazendo densidade política ao ato de doar a quem tem fome. Além disso, elas fazem a ponte com movimentos campesinos. A luta pela terra e pelo teto, aos quais temos direito, seja na área rural ou urbana, é a luta pela soberania alimentar. E é a luta pela natureza viva.

O ato de cozinhar a partir de ingredientes in natura envolve uma “conversa” com os alimentos, com sua origem, com sua sazonalidade, com o uso da água e do gás para seu preparo, com o destino de seus resíduos após o consumo. Muitas das Cozinhas Solidárias já desenvolveram tecnologias sociais importantes para o cenário climático. Cisternas, composteiras, fogões solares, fornos de barro… são instrumentos que trazem mais autonomia, evitam gastos, reduzem a quantidade de lixo produzida e fazem um trabalho de educação ambiental e nutricional. 

Por isso o Programa Cozinhas Solidárias Sustentáveis, apresentado na COP 30 pelo governo federal, é um avanço na jornada pela construção de um futuro viável. Resta saber se a burocracia vai permitir que as organizações tenham acesso aos recursos anunciados. Esse é um ponto delicado para a existência das Cozinhas Solidárias, tanto na esfera nacional, como estadual ou municipal. Podemos trazer um exemplo recente de trava burocrática, ao mirar o município de São Paulo. 

Somos todas Carolinas

Quando os olhares dos movimentos sociais do país todo estavam voltados para Belém, a prefeitura de Sampa resolveu não autorizar a renovação do contrato de apoio financeiro que mantinha com a Cozinha Escola Academia Carolinas e enviou um aviso em cima da hora, sem nenhuma justificativa plausível, para comunicar a decisão negativa. Decisão que pode ser vista, no mínimo, como irresponsável, já que cerca de 400 pessoas da comunidade de Cidade Tiradentes, extremo leste do município, vão ficar sem a comida diária que recebiam, e várias mulheres vão perder seu emprego. 

Nossa rede ativista recebeu a notícia com indignação, mas não com surpresa, já que sabemos do caráter político dessa decisão, considerando a discordância ideológica das Carolinas com a gestão atual, na qual o prefeito Ricardo Nunes vem entregando a cidade às máfias imobiliárias, destruindo o restante dos tecidos sociais e de vegetação preservada. A indignação gerou uma mobilização comunitária para que a Cozinha Escola siga ativa, pois ela é considerada uma referência no setor e faz um trabalho fundamental em um território em que o alimento é escasso e a geração de empregos locais é uma necessidade inegável.

Vale muito mencionar quem são as Carolinas que nomeiam a Academia. A inspiração inicial é Carolina de Jesus, mulher negra, favelada, que transformou em palavras poéticas as dores da fome que assolavam seu ventre e sua alma. Ela é um símbolo da impressionante resistência preta feminina na história da luta por dignidade, sobretudo alimentar. E segue espelhada na população das periferias de hoje. Afinal, quantas mulheres negras ainda vivenciam o drama de não ter certeza se terão um prato de comida em seu dia a dia? Agora, com a decisão da prefeitura, muitas das que moram em Cidade Tiradentes não poderão mais contar com as refeições feitas na Cozinha Escola que as homenageia, caso esta não tenha condições de seguir na ativa. 

Igualmente vale destacar que são essas mulheres pretas que costumam preparar, dia sim e dia também, a comida que chega no prato do povo. Seja em suas casas (em grande parte improvisadas em quebradas situadas bem longe dos centros urbanos), seja em restaurantes ou empresas do setor alimentício (muitas vezes distantes quilômetros e quilômetros de suas residências) ou seja nas Cozinhas Solidárias (que sustentam quem não tem comida em casa e até quem nem casa tem), elas estão na lida, lavando, picando, ralando, refogando, fritando e assando alimentos. 

Esse recorte racial fica nítido quando olhamos para algumas redes de Cozinhas Solidárias. O Fórum Estadual do Rio de Janeiro, por exemplo, é formado por um conjunto ativíssimo de cozinhas ligadas aos povos de terreiro. Elas trazem a ancestralidade alimentar, a dimensão espiritual da comida, a luta pela liberdade religiosa e contra a discriminação pela cor ou pela fé professada. Mais uma vez, cozinhar é uma ferramenta de mobilização para a transformação estrutural da sociedade. 

Comida humana

Com o aquecimento da Terra e a destruição avassaladora de sua teia vital, será (como já observamos em muitas regiões) cada vez mais difícil produzir ou obter alimentos. Culturas básicas para o sustento de povos ao redor do mundo podem se tornar inviáveis e acelerar o processo de perda de autonomia, de identidade, de cultura, de relações comunitárias, de pertencimento aos territórios, além de contribuir para a destruição do patrimônio genético acumulado em um processo de bilhões de anos de formação do planeta e de milhares de anos de manejo humano, como no caso das sementes crioulas. 

Nesse processo, deslocamentos em massa para buscar abrigo e comida vão se tornar mais e mais frequentementes e acirrar conflitos sociais, políticos, étnicos. E a tal ajuda humanitária, que, no caso da alimentação, consiste em boa parte em produtos comestíveis industrializados, quando e se chegar, seguirá desmanchando os laços culturais alimentares dos povos migrantes. O mesmo vale para o cenário interno das cidades, onde a diferença do valor de um alimento in natura em relação a um produto ultraprocessado vai seguir, segundo pesquisas recentes, se ampliando, tornando macarrão instantâneo e salsicha cada vez mais acessíveis ao povão.

Sem acesso aos alimentos frescos, sazonais, nativos, biodiversos, o ato de cozinhar irá sofrer sensivelmente. Como preparar uma receita tradicional,  saborosa, nutritiva, se o que chega às mãos da população é maionese industrializada, biscoito do tipo cracker, doces como gelatina artificial? Como celebrar as datas culturalmente expressivas? Como manter viva a relação com o ciclo alimentar, que confere a integração das pessoas com os elementos e os ritmos da natureza? 

Mas, se a alimentação tradicional está seriamente ameaçada pela emergência climática que o Sistema Agroalimentar baseado no Agronegócio desencadeou, este último também está longe de ser imune a ela. Monoculturas repletas de venenos e fertilizantes à base de petróleo são o que temos de menor resiliência ambiental. Mesmo se a fritura climática não estivesse em curso, elas já não se sustentam e só sobrevivem através da expansão de fronteiras, após esgotarem o solo em que foram plantadas. 

As tais commodities, importadas e exportadas em zilhões de toneladas pelos países do globo terrestre, já dão sinais inequívocos de que serão vítimas de crises cada vez mais problemáticas. A própria cultura da soja, estrela da nossa exportação, deverá fechar o ano com resultados piores do que nos anos anteriores. Nas palavras de Lucas Beber, presidente da APROSOJA do Mato Grosso: “Em várias regiões, é possível observar lavouras com soja murchando ou plantas pouco desenvolvidas, evidenciando o déficit hídrico”.

Não é à toa que os subsídios governamentais a essa agronegoceira toda só crescem e que, em países como o Brasil, estamos carregando a elite rural (e as empresas transnacionais que as controlam) nas costas. E, sem commodities, não há produção de itens comestíveis ultraprocessados, já que eles são feitos de soja, milho, trigo, cana de açúcar e mais os infindáveis aditivos alimentares sintéticos. 

Sem acesso à comida de verdade e à “falsa comida” que o modelo produtivo capitalista tenta impor, restará aos seres humanos serem eles próprios devorados pela crise sindêmica em curso. Ou seja, ao invés de cozinhar, como há tantos milênios a humanidade vem fazendo, ela passará a ser cozida, em meio ao aumento das temperaturas do planeta, o que já se viu na COP em Belém, como apontou desastradamente o líder alemão. 

Cozinhar é preci(o)so!

Se há algo que caracteriza a sociedade humana é sua capacidade de criar e recriar, o que pode ser direcionado para ações tenebrosas, como a produção de armas e substâncias tóxicas, ou para atividades revigorantes, como a expressão artística através da poesia, da pintura, da dança, da música, da arquitetura e, também, da culinária. Se as artes são fundamentais para alicerçar nossas sociedades, o que dizer de suas manifestações como cultura alimentar?

É por meio da ação de semear, colher, preparar e ingerir alimentos que permitimos que cada célula do nosso organismo sobreviva. Com ou sem o uso do fogo, o processo de cozinhar é essencial para a reprodução da vida humana. Ao mesmo tempo que ele vem sendo manipulado pelas grandes corporações com seu modelo agroindustrial concentrador de recursos e destruidor das muitas esferas de diversidade, ele também tem sido um instrumento poderoso para enfrentar esse assédio.

Já anunciaram que as cozinhas caseiras estavam com os dias contados e agora tudo seria adquirido via delivery pela população. Em um artigo chamado Cozinhar ou não cozinhar: eis a questão?! , que dialoga com este artigo que agora escrevo, eu já trouxe reflexões apimentadas sobre essa polêmica. O livro Quem vai fazer essa comida, de Bela Gil, também traz questões inescapáveis em relação ao debate. As dimensões sociais, raciais, religiosas e de gênero se encontram no cerne da dinâmica que hoje envolve o ato de cozinhar. É inegável a sobrecarga das mulheres, sobretudo negras, com as tarefas domésticas, seja em suas casas ou nas casas alheias.

Mas as cozinhas não precisam ser espaços de opressão. Pelo contrário. Podem ser espaços libertários, onde compartilhamos as tarefas, as responsabilidades, as sacadas para dar conta do necessário com as condições encontradas… e, também, locais em que descobrem-se sabores, saberes, afetos e formas de resistência, ou até de celebração. Mulheres, homens, jovens, crianças, pessoas idosas: todo mundo pode participar dessa produção, de acordo com suas condições físicas e psicoemocionais. 

É nesse convívio com os ingredientes, com os apetrechos culinários, com as receitas resgatadas ou inventadas e com as demais pessoas presentes, que uma relação mais vívida com os processos da natureza relativos aos alimentos pode ser estabelecida, assim como laços comunitários mais harmônicos. Pode brotar daí uma visão mais integrada do percurso da comida, desde o solo até o solo novamente, partindo de quem planta até chegar a quem cuida dos resíduos orgânicos gerados. Pode, também, florescer uma consciência política mais aguçada e articulada. 

Se, como a COP 30 (chamada de COP da Verdade) explicitou, a humanidade está prestes a ser cozida, tostada ou frita pelo caos climático, as próprias atividades feitas em Belém durante o período do evento já apontam caminhos. É preciso rever e transformar nosso modelo produtivo, é preciso retomar nosso direito à terra, à água, à comida biodiversa e ao tempo. Tempo para semear, colher e preparar os alimentos que queremos ter em nossas panelas, em nossos pratos ou cuias, em nossos corpos ávidos por serem plenamente inseridos no ventre de nossa Mãe Terra, definindo junto a ela o futuro que ainda está por vir. 

Um grande salve às cozinhanças agroecosolidárias que brilharam em Belém, vêm brilhando nos territórios do Brasil inteiro, e nutrem, diariamente, nossas gentes, nossos sonhos e nossas lutas para impedir que a imensa fogueira climática do capitalismo nos cozinhe em suas fornalhas ecocidas!

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