Mazzucato: a Era da Água Escassa chegou

Ataques à Natureza perturbam o ciclo das chuvas no mundo todo, provocando crises inéditas. Há caminhos para enfrentá-las. Exigem considerar a água um Comum, multiplicar investimento público e adotar feixe de saídas pós-capitalistas

Rio Negro, o 7º mais caudaloso do mundo, com seu leito dramaticamente diminuído, em razão da seca de 2024
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Por Mariana MazzucatoNgozi Okonjo-IwealaJohan Rockström, e Tharman Shanmugaratnam, em Project Syndicate. Tradução de Glauco Faria

No que diz respeito à água, o mundo enfrenta uma situação insustentável. No entanto, resolver o problema está a nosso alcance; e é o resultado mais fácil de se obter, porque permite lidar com as mudanças climáticas e gerar empregos e crescimento.

A crise da água é evidente. Ano após ano, em uma região após a outra, ondas de calor e secas recordes são seguidas por tempestades e inundações destrutivas. Os sistemas alimentares estão secando e as cidades estão afundando à medida que atingimos os limites de extração de água da terra. Mais de 1.000 crianças menores de cinco anos morrem a cada dia em decorrência de doenças causadas por água potável insegura e falta de saneamento. Centenas de milhões de mulheres passam horas todos os dias coletando e transportando água.

Esta é uma crise criada pelo ser humano, e pode e deve ser resolvida por meio de intervenções humanas. Mas para alcançar equidade e sustentabilidade em todos os lugares, precisaremos de novas formas de governo da água; de uma onda de investimentos muito maiores que os atuais; de inovação em escala e capacitação. Os custos dessas ações são insignificantes em comparação aos danos econômicos e humanitários que serão infligidos se a falta de ação continuar

O primeiro passo é reconhecer que os problemas que enfrentamos não são meramente tragédias locais. Todos os cantos do mundo estão sendo afetados, e cada vez mais, por m ciclo de água desestabilizado. As abordagens atuais tendem a lidar com a água que podemos ver – a “água azul” em nossos rios, lagos e aquíferos – e assumem que o suprimento de água é estável ano após ano. Mas isso não é mais verdade, pois as mudanças no uso da terra, as mudanças climáticas e um ciclo de água fora de controle estão afetando os padrões de chuva.

O pensamento convencional ignora, com frequência, um outro recurso crítico de água doce — a “água verde” que aparece em nossas florestas, plantas e solo; que transpira e é reciclada pela atmosfera. A água verde gera cerca de metade da precipitação que cai na terra, a própria fonte de toda a nossa água doce. E os países não estão conectados apenas por meio de fluxos de água azul (como rios), mas — o que é mais importante — por meio de fluxos atmosféricos de umidade. Como um componente essencial do ciclo global da água, a água verde precisa urgentemente ser melhor gerenciada.

O mais perigoso é que as interrupções no ciclo da água estão profundamente interligadas com o aquecimento global e o declínio da biodiversidade planetário, sendo que fenômeno reforça o outro. Um suprimento estável de água verde no solo é fundamental para sustentar os sistemas naturais terrestres que absorvem de 25% a 30% do dióxido de carbono emitido pela combustão de combustíveis fósseis.

Esse processo representa um dos aportes naturais mais significativos para a economia global. No entanto, a perda de áreas úmidas e da umidade do solo, juntamente com o desmatamento, está esgotando as maiores reservas de carbono do planeta, com consequências que podem tornar insuportável o ritmo do aquecimento global. O aumento das temperaturas desencadeia ondas de calor extremas e aumenta a demanda de evaporação na atmosfera, o que seca severamente as paisagens e aumenta o risco de incêndios florestais.

Portanto, a crise hídrica afeta praticamente todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e ameaça as pessoas em todos os lugares. A insuficiência de alimentos para uma população mundial crescente, a disseminação acelerada de doenças e o aumento da migração forçada e dos conflitos entre fronteiras são apenas alguns dos resultados previsíveis.

Missão H2O

Um problema coletivo e sistêmico de tão grande escala só pode ser resolvido com uma ação conjunta em todos os países e por meio da colaboração entre fronteiras e culturas. É fundamental que haja um entendimento compartilhado do Comum. Caso contrário, o que pode parecer bom para um país hoje pode facilmente criar problemas para esse mesmo país amanhã, bem como para outros em todo o mundo.

A situação exige não apenas maior ambição, mas também uma abordagem da água voltada para a missão. Uma abordagem que abranja vários setores e se concentre em todos os níveis, desde o gerenciamento de bacias hidrográficas locais até ao estabelecimento de uma cooperação multilateral. Podemos e devemos ter sucesso nas missões hídricas mais importantes do mundo:

  • Lançar uma nova Revolução Verde nos sistemas alimentares para reduzir o uso da água e, ao mesmo tempo, aumentar a produção agrícola para atender às necessidades nutricionais de uma população crescente.
  • Conservar e restaurar os habitats naturais que são essenciais para proteger os recursos hídricos verdes.
  • Estabelecer uma economia de água “circular” em todos os setores.
  • E garantir que todas as comunidades vulneráveis tenham serviços adequados de água limpa e segura e saneamento até 2030.

Embora essas missões devam impulsionar mudanças nas políticas, alinhar os setores público e privado e estimular a inovação, elas também exigem novas formas de governar. A formulação de políticas deve se tornar mais colaborativa, responsável e inclusiva de todas as vozes, especialmente as dos jovens, das mulheres, das comunidades marginalizadas e dos povos indígenas que estão na linha de frente da conservação da água.

A mudança política mais fundamental está na valorização adequada da água para refletir sua escassez, bem como seu papel fundamental na sustentação dos ecossistemas naturais dos quais toda sociedade depende. Precisamos acabar com a subvalorização da água em toda a economia e com os subsídios agrícolas prejudiciais que impulsionam o uso insustentável e degradam a terra. O redirecionamento desses fundos para a promoção de soluções de economia de água e o fornecimento de suporte direcionado para os pobres e vulneráveis seriam de grande ajuda.

Para corrigir o subinvestimento crônico em água, precisamos redefinir a prioridade da infraestrutura hídrica nas finanças públicas, onde ela é estranhamente negligenciada na maioria dos países. Os formuladores de políticas podem se basear nas melhores práticas de parcerias público-privadas para oferecer incentivos justos para compromissos de longo prazo e, ao mesmo tempo, atender aos interesses do público, especialmente das comunidades carentes.

Dada a natureza coletiva do desafio da água, devemos garantir fluxos financeiros maiores e mais confiáveis para ajudar os países de renda baixa e média-baixa a investir na resiliência da água. Os bancos multilaterais de desenvolvimento, as instituições financeiras de desenvolvimento e os bancos públicos de desenvolvimento precisarão trabalhar em estreita colaboração com os governos para apoiar as missões nacionais de água que refletem as necessidades locais e as condições ecológicas. Os acordos comerciais internacionais também oferecem possíveis alavancas para promover o uso eficiente da água, pois podem ajudar a garantir que a “água virtual” incorporada aos produtos comercializados não agrave a escassez em regiões com estresse hídrico.

Assim como estamos fazendo em relação às emissões, devemos compilar dados de alta integridade sobre as pegadas hídricas corporativas e criar estruturas para a divulgação do uso da água. Também precisamos desenvolver sistemas para avaliar a água como parte do capital natural. A fixação de um preço para esse recurso fundamental poderia gerar dividendos significativos para os países ao longo do tempo.

Em resumo, precisamos moldar os mercados em nossas economias – da agricultura e mineração à energia e semicondutores – para que se tornem radicalmente mais eficientes, equitativos e sustentáveis no uso da água.

O relatório preliminar de 2023 da Comissão Global sobre a Economia da Água apresentou os argumentos para buscar uma mudança fundamental na forma como o mundo gerencia a água. Nosso relatório final em outubro deste ano mostrará como podemos fazer isso por meio de uma ação coletiva transformadora.

Estamos apenas em 2024. Se não enfrentarmos esses problemas, os incêndios florestais, as inundações e outros eventos extremos causados pela água e pelo clima se tornarão mais intensos e mortais nos próximos anos. Promover a agenda de segurança hídrica pode parecer mais difícil em meio às crescentes tensões geopolíticas, mas apresenta uma oportunidade de provar que a colaboração pode beneficiar todos os países e possibilitar um futuro justo e habitável para todos. Não podemos fugir desse desafio.

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10 comentários para "Mazzucato: a Era da Água Escassa chegou"

  1. Nathan Victor Balbino disse:

    Inimaginável seria, se de outra forma a nossa verdadeira casa, mãe terra, respondesse às agressões que a nossa suposta e inconcebível percepção de auto-superioridade diante de outras mais de 3.5 milhões de espécies de animais catalogados, respondesse às tais afrontas desmedidas da nossa dita humanidade, que de humanos de fato somos poucos exemplares desde o início de nossa estadia por aqui.
    Não me correm lagrimas visíveis, mas por dentro enxurradas de desgosto e tristeza, cortam minhas flageladas sinapses diante da tragédia que se aproxima.

  2. Alex disse:

    Estamos em fazes de seca em muitos lugares sim é verdade mas o planeta água nunca ficará sem (( água))

  3. Amarildo hretsiuk disse:

    Cada cidade, do brasil deveria ter e manter plano, de preservação de recursos hidricos, e a responsabilidade maior caberia as empresas de saneamento, afinal lucram com a água que cada cidadão paga, o problema maior está no esgoto, supostamente tratado, e camuflado em ligações clandestinas, que nunca são resolvidas e o esgoto escorre a céu aberto.

  4. Sélly disse:

    Sabe o que é hilário, nasci em 1980 e na minha infância estava tudo normalíssimo, clima, calor, tudo em ordem. Depois que encheram de barragens pra geração de energia, acabou tudo isso. Não tem mais clima, e tudo uma bagunça e o calor começou a aumentar demasiadamente. Mas disse ninguém fala. A saída seria usinas eólicas, mas aí tem os pássaros… Por que placas solares, não se fala, mas quem estuda sabe que elas contribuem favoravelmente para o aquecimento global. Então vamos culpar alguém e,
    que sejam as indústrias e o capitalismo.

  5. Rafaela Pereira disse:

    O artigo é interessante, porém trazer uma nova Revolução Verde como solução é um equívoco. A Revolução Verde é a pautado em maquinária pesada, agrotóxicos e sementes modificadas, esse modelo de produção é lucrativo pq não se responsabiliza pelo ônus, um dos mais consumidores e contaminadores d’água. Precisamos de reduzir as desigualdade através de um reforma agrária, subsídio para reflorestar, implementar modelos agroecologicos de produção e incentivar a agricultura familiar sustentável ao invés de dar isenção pra agrotóxicos e pautar a economia do país em comoditides

  6. Ivonete B.C. Shockness disse:

    O ser humano se considera no topo da cadeia na natureza, em função disso temos a responsabilidade de procurar resolver problemas que nós mesmos criamos com a nossa forma de pensar e viver, estamos no topo logo a nossa queda será mais dolorosa, estar no topo significa que compartilhamos todo o processo, não estamos a cima fora e sim acima junto, acredito na nossa inteligência e na resiliência da natureza pra acharmos a saida, sem tantas perdas e extinções em massa, tudo tem sua utilidade nesse grande ecossistema (terra e oceanos), mas precisamos evoluir nosso entendimento de verdade pra continuarmos aqui.

  7. Oslim MALINA disse:

    Estocar água em centenas de milhares de pequenas lagoas pelo Brasil afora. Também pelo mundo. Assim fazendo, também aliviaremos a crescente pressão sobre o aquecimento da terra, que já está em curso. Mas isso é pra’ já. Todas as prefeituras do mundo deverão fazer esse trabalho. Já pensou em quantos milhões de empregos serão gerados? E o dinheiro que as prefeituras arrecadarão? E’ simples assim.

  8. Luiz Alberto Neto disse:

    A ganância do homem em ficar cada vez mais rico materialmente, está destruindo sua moradia quê é a terra.os governos de todos os países têm que fazer um pacto para freiar o consumismo em excesso.

  9. Frank Night de Oliveira Santos disse:

    Uma solução pra ter água e tornar os moradores ou proprietarios de local que ainda dispõe de água rios, lagoas nascentes e água subterrânea e etc em guardas protetores ambientais ganhando pra isso pra alimentar outros milhões de pessoas pro maior erro e deixar esses locais q tem agua seja privado ou ou pubico como terra de ninguem e livres liberdade pra usar as vias de agia ok ou buscar água ok porém o povo so respeita e protege se tiver quem vigie é isso

  10. José Mário Gomes Filho disse:

    Muito bom!!

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