“Gente e terra para gastar e arruinar”

Há frase mais contemporânea que esta, de Sérgio Buarque? Diante do crime da Vale, regular, fiscalizar e cobrar altos impostos são os remédios necessários. Mas não agradam ao novo governo…

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Por Roberto Andres

Infelizmente, não há novidade na tragédia de Brumadinho. Explorar até o limite recursos naturais e arruinar tudo em volta está no gene disto que chamamos Brasil. Nome que, aliás, se refere à árvore que foi praticamente extinta pela exploração gananciosa.

É preciso dizer com todas as letras: este país leva o nome de algo que foi dizimado. Em nome da riqueza fácil.

Já no século dezessete, éramos o quintal da primeira holding da história, como lembra o cientista político César Benjamin: o comércio de açúcar, feito com “administração portuguesa, capital holandês e veneziano, tecnologia do Chipre e matéria prima dos Açores – a cana”.

A parte que nos coube nesse arranjo foi fornecer a terra onde tudo dava – e o escravo sangrava de tanto trabalhar. Essa história de ganância e predação foi recontada por historiadores como Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Hollanda, e precisa começar a ser absorvida.

Sérgio Buarque foi bastante explícito quando afirmou que “sem braço escravo e terra farta, terra para gastar e arruinar, não para proteger ciosamente,” o modelo agrícola aqui implantado seria irrealizável. Os mares de lama – descaso, destruição e violência – são constituintes deste país.

Gente e terra para gastar e arruinar. Há frase mais contemporânea que esta? O que mais vem à mente quando se pensa na exploração minerária que consome nossas águas, destrói nossas montanhas, nossos rios, paga ínfimos impostos e provoca grandes desastres trienais?

Quando se lembra que o modelo perigosíssimo de barragens aqui utilizado é proibido no Chile? Que o governo de Minas está falido; as agências de fiscalização, sucateadas; mas a companhia assassina registra lucros bilionários ano a ano? Que, mesmo com o escandaloso crime de Mariana, propostas de melhorias nas regras das barragens tenham ficado paradas na Assembleia de Minas?

A Companhia Vale do Rio Doce foi criada na ditadura do Estado Novo, em 1942, e privatizada no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1997. O valor de venda da empresa, cerca de R$ 3 bilhões, é menor do que o lucro líquido anual atualmente. Os amigos do poder se deram bem.

Arautos das privatizações costumam dizer que a companhia se valorizou justamente porque a gestão privada funciona melhor. Esta frase precisa ser revista: a empresa passou a operar com mais ganância, mas uma exploração de recurso não renovável de alto impacto ambiental só é de fato positiva se gerar benefícios sociais e econômicos de longo prazo.

De nada vale a empresa faturar bilhões se ela gera relativamente poucos empregos, quase não paga impostos, destrói o ambiente e produz assassinatos em massa. A economia tem que servir à vida.

Há modelos possíveis: na Noruega, a exploração do petróleo paga 78% do lucro líquido em impostos, que vão para um fundo soberano. Este se tornou o maior fundo de investimentos do mundo, que beneficia o povo norueguês em educação e saúde.

Regular, fiscalizar e cobrar altos impostos são os remédios necessários, mas parecem não agradar ao novo governo, cujo presidente chegou a dizer em “acabar com a indústria de multas do Ibama” e nomeou um ministro do meio ambiente que vocifera barbaridades como “licenciamento ambiental automático” de empreendimentos.

O governo anuncia também uma nova onda de privatizações de empresas públicas sem o necessário debate sobre suas funções e valores na vida das pessoas, na preservação e melhoria dos territórios. Os amigos do poder agradecerão.

Em suma, seguimos sendo terra e gente para gastar e arruinar, agora de forma acelerada por quem dizia que iria “acabar com tudo que está aí” mas trabalha para beneficiar os mesmos de sempre.

O slogan de campanha de Jair Bolsonaro citava “Brasil” e “Deus” no topo de uma hierarquia, acima “de tudo” e “de todos”. O crime de Brumadinho permite atualizar esse mote e revelar os sentidos ocultos que talvez tenham essas duas palavras para a nossa elite. Acima de tudo está a riqueza fácil, a acumulação infinita para poucos. Acima de todos está a destruição que afeta todos: poluição, violência, degradação ambiental.

Ganância acima de tudo. Lama acima de todos. Este é o slogan real do Brasil hoje.

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