Fogo e motoserra no Cerrado

“Agro” lidera o ataque a este riquíssimo bioma. Incêndios são só a ponta do iceberg. Destroem-se, com a Natureza, culturas ancestrais. Os olhos devem estar abertos em tempos de tanta fumaça: só a Agroecologia pode reverter a lógica eco-etnocida

Imagem: IBERE PERISSE/PROJETO SOLOS/AFP
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Dentro dos ambientes dos edifícios situados na Praça dos Três Poderes, em Brasília, o mobiliário, o ar-condicionado e as roupas de seus frequentadores podem enganar quem assiste as sessões do Congresso Nacional ou do Supremo Tribunal da Justiça na televisão. A própria urbanidade da capital do país, com seus eixos ortogonais e prédios de concreto armado, ainda permite confundir as pessoas quanto ao local do país em que estamos, não fosse o clima a se impor com sua secura característica e sua luminosidade singular. 

Mas é só percorrer alguns quilômetros no entorno da urbe e a constatação é inequívoca: estamos no meio de um bioma brasileiro que não tem nada a ver com ternos de tecido escuro e sapatos de bico fino. Nosso Cerrado é quente, rústico, entremeado de vegetações endêmicas que se adaptaram lentamente ao solo pouco argiloso, ao sol forte e ao relevo marcante do grande planalto central do território brasileiro. Nele, um conjunto de animais igualmente peculiares encontrou um lar e segue habitando e se reproduzindo em uma delicada teia de inter-relações, em que estratégias de sobrevivência e convívio são partilhadas. Estamos falando de ambientes com uma biodiversidade única, ainda longe de ser totalmente conhecida pela ciência humana – e que, se continuarmos nos rumos em que estamos, podemos nem ter tempo de conhecer.

Atualmente, numa região em que deveria haver milhares de espécies de plantas e de animais interagindo e renovando o poder criativo da vida, passamos a encontrar um outro tipo de cenário, diametralmente oposto. Cada vez mais, é possível ver imensas monoculturas abarrotadas de agrotóxicos (já se sabe que 600 milhões de litros são lançados anualmente no bioma), em que quase nada sobrevive, exceto a espécie vegetal ali cultivada. São as fazendas do famoso Agro, cujos representantes dominam a esfera legislativa em Brasília, impondo uma agenda que passa o trator em cima de tudo aquilo que poderia se colocar na frente (ao lado, abaixo e acima também!) da garantia da máxima e imediata pujança econômica do setor. E aqui vale reforçar o uso da palavra “imediata”, já que não se importam em destruir as condições futuras necessárias às suas próprias atividades, dando uma banana podre para seus descendentes ou até para si mesmos, quando – e se – atingirem mais idade. 

Deixo as especificações sobre o que leva a um comportamento tão sem pé nem cabeça, como o que atenta contra a manutenção da (até mesmo da própria) vida, a cargo dos sociólogxs, psicólogxs e psiquiatras – embora não desconheça o quanto a cultura do lucro a qualquer custo adoece a mente das pessoas, a ponto de gerar vícios difíceis demais de serem quebrados. O fato é que nosso Cerrado está perecendo em meio à ganância de uma elite econômica voraz, enraizada em um sistema internacional que vampiriza a natureza para se manter em expansão. 

Só que, no caso do Cerrado, diferentemente do que vemos em relação a biomas mais exuberantes, como o amazônico, a destruição sofrida não tem ganhado a devida notoriedade na mídia, nem dentro, nem fora do país. Mesmo em termos constitucionais, ele não foi reconhecido como um bioma-patrimônio pela Constituição Federal de 1988, como o foram a Amazônia, o Pantanal e a Mata Atlântica. Pelo código florestal atual, apenas 20% das áreas das propriedades privadas situadas no Cerrado devem ser obrigatoriamente preservadas, valor que sobe para 35%, no caso de estarem dentro da Amazônia legal. Para dar uma ideia do contraste, no bioma amazônico, esse percentual é de 80%, o que “empurra” muito da destruição ambiental para os estados em que nosso Cerrado predomina, como é o caso da região conhecida como Matopiba – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia -, sobre a qual a fronteira agropecuária marcha aceleradamente.

Rabo de inhambu ou cauda de pavão 

Se você olhasse para uma floresta densa, com árvores imensas e tons de verde brilhantes, entremeada por rios que chegam a parecer mares, e constatasse que há “buracos” nessa trama vegetal, nos quais as plantas tenham sido suprimidas e a terra esteja exposta, certamente ficaria em choque com o contraste gritante. Não há quem olhe para as áreas destruídas da floresta amazônica em comparação com suas áreas preservadas e não sinta esse brutal impacto. Mas, com a paisagem do Cerrado, nem sempre há essa sensibilidade. É que sua formação arbustiva, de formas mais retorcidas e tons amarronzados, compõe um cenário que não equivale ao ideal que as pessoas costumam ter de um paraíso tropical. Sua imensa biodiversidade, que o faz ser considerado a savana mais biodiversa do planeta, é muito mais discreta. Podemos dizer que é como olhar para um inhambu, avezinha amarronzada quase sem rabo, que está ao lado de um pavão. O pavão vai capturar sua atenção.

O que muitas pessoas ainda não entenderam é que, assim como no caso das aves, em que cada espécie tem um papel fundamental para a manutenção do equilíbrio da teia da vida, cada um dos nossos biomas também exerce funções necessárias para que o conjunto deles seja viável. No caso do Cerrado, ele abriga cerca de 35% das espécies de abelhas tropicais, inseto que tem a missão de polinizar muitas das plantas que comemos. E também em torno de 28% dos anfíbios, o que nos faz refletir sobre a presença da água na região. Aqui, vale destacar que, das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras, 8 têm suas nascentes no bioma, o que revela a importância que ele possui para a regulação dos fluxos hidrológicos do país, sendo considerado a nossa verdadeira “caixa d’água” – ou chamado de “berço das nossas águas”, expressão mais poética.

E é a destruição dessa delicada rede de nascentes essenciais que está sendo levada a cabo pelo que chamamos – não gratuitamente – de Ogronegócio. Suas motosserras, seus tratores, seus incêndios criminosos, seus venenos agrícolas e, principalmente, sua imensa ganância curto-prazista, têm transformado esse cenário tão único e biodiverso em gigantescas monoculturas de commodities – que ajudam o país a bater recordes na produção de grãos -, ou em meros pastos para a criação de gado – contribuindo para engordar um rebanho nacional que já chega a quase 235 milhões, mais do que a própria população brasileira, com seus 203 milhões de habitantes. 

A pergunta que não quer calar é: quem come essas toneladas de grãos e de carne? Por mais que, com as ações do atual governo federal, nosso país esteja deixando o cenário apocalíptico da fome – lapidado com esmero pelos governos que se estabeleceram após o golpe de 2016 -, e que mais de 14 milhões de pessoas já tenham saído da insegurança alimentar severa somente no ano de 2023, ainda estamos muito longe de garantir comida na mesa em quantidade e, principalmente, em qualidade, para alimentar nosso povo. Então, o destino dessa produção agropecuária monumental é mesmo a barriga dos gringos, seja de forma direta, como no caso da carne, seja de forma indireta, como no caso da soja que será usada como ração para a criação de seus animais. 

Para nós, simples habitantes da colônia, que há mais de 500 anos somos sugados pelos poderes imperialistas da vez, restam a devastação da nossa flora e fauna nativas, a perda da fertilidade do solo, a contaminação por venenos proibidos em solos europeus e a cruel desigualdade socioeconômica, já que a concentração fundiária nessas regiões é pra lá de pornográfica e ameaça o modo de vida de povos tradicionais que, há milhares de anos, vêm criando uma relação umbilical com seus territórios, na qual cada pequena erva é sagrada. 

Invasão total 

Se os animais e plantas não têm meios para enfrentar a fúria ruralista e apenas vão sucumbindo à passagem de suas motosserras, ainda há vozes que se erguem para resistir ao extermínio. Em diversas regiões do centro-oeste do país, nações indígenas seguem em busca da retomada de suas terras ancestrais. Dada a lerdeza, para dizer o mínimo, por parte do poder público em promover a demarcação dos territórios dos povos tradicionais, vem crescendo um movimento que busca realizar a chamada autodemarcação, ocupando as áreas que deveriam ser destinadas, segundo nossa Constituição, à sua habitação e reprodução da vida.

A disputa territorial é incensada pela indefinição quanto à adoção ou não do chamado Marco Temporal, proposta ruralista que defende que as demarcações de terras indígenas se dariam apenas nos locais ocupados por eles quando a Constituição Federal de 1988 foi promulgada. Acredito que nem é preciso dizer o quanto essa tese é absurda, dada a história de dizimação sofrida pelos povos originários, que fez com que migrassem constantemente para fugir do extermínio ou da perda das condições necessárias ao seu modo de viver. Mas ela foi aprovada no parlamento, segue em debate na justiça e gera insegurança para um amplo conjunto de etnias que ainda não conquistou juridicamente seu território. 

É dentro desse enrosco jurídico, que setores mais violentos do setor do Ogro têm criado milícias fortemente armadas para impor seu domínio nas áreas em disputa, aterrorizando povos do centro-oeste do país, como os Guarani Kaiowá, mas também em outras regiões, como Paraná, Ceará e Bahia. O que fazendeiros que invadiram territórios indígenas tentam fazer, através de sua brutalidade, é antecipar, na realidade prática, a definição final do debate sobre o Marco Temporal, considerando que ele será mesmo aprovado e as “propriedades” latifundiárias que eles detêm, regularizadas. Ou seja, trata-se de uma verdadeira demonstração do poder ruralista, com a desobediência escancarada aos processos determinados pela justiça, como se ela não fosse necessária para reger nossa territorialidade. 

É esse movimento típico do agrofascismo – que se desenvolveu dos anos Temer pra cá – que pariu iniciativas como o grupo que se autodenomina Invasão Zero. Organizando-se através das redes sociais – e usando-as para anunciar suas atividades e antecipar emocionalmente o terror que visam gerar fisicamente -, a turba reúne fazendeiros e capangas, muitas vezes, apoiados pelos poderes políticos, econômicos e jurídicos locais, fortemente armados e equipados de veículos de grande porte. É de dentro desses verdadeiros tanques de guerra que seus integrantes irrompem em áreas que foram ancestralmente ocupadas por certos povos indígenas – das quais haviam sido expulsos pelas forças do capital e às quais tentam agora retomar -, disparando suas espingardas, destruindo roças recém-criadas, incendiando acampamentos e apavorando homens, mulheres e crianças que somente tem maracás nas mãos. 

Se alguém tem dúvida sobre quem está invadindo o quê nesse drama, vale voltar para os tempos escolares e estudar novamente quem são os povos originários do território que foi batizado com o nome de Brasil e ler nomes como Terena, Botocudo, Tamoio, Timbira, Aymoré… Mas as palavras, sobretudo ditas em língua portuguesa, costumam servir aos donos do poder e o ruralismo martela dia e noite em todos os veículos de comunicação que controla que são os indígenas, quilombolas e camponesxs sem terra que estão invadindo a propriedade privada alheia e desrespeitando um direito que deveria ser sagrado: o da posse capitalista. O recado é nítido e revela que o Ogronegócio não vai permitir que setores da população que não agem de acordo com a lógica colonialista – em que a terra é somente um bem a ser maximizadamente explorado – atrapalhem seus objetivos financeiros. Só que, agora, ao contrário do que pregam, inclusive do termo com que batizaram uma de suas milícias, não é “invasão zero”, é “invasão total!”, dada a truculência com que eles vêm se apossando de cada metro quadrado de terra, seja em que bioma for ou sobre os corpos de que povo for. Também daria para dizer “queimada total”, já que o uso do fogo tem sido uma arma poderosa na guerra para dominar o que ainda não foi dominado, mas vamos falar sobre isso já já. 

Serrar a natureza, encerrar o futuro

Proveniente da língua espanhola, o termo cerrado faz referência a algo denso, fechado … e, no caso do nosso bioma, está ligado às características vegetais que ele possui. Pequenas árvores, arbustos e capins se enroscam entre si e criam ambientes em que caminhar não é nada fácil. Formas tortuosas, envergadas e entrelaçadas exigem que seus habitantes se adaptem a um deslocamento mais lento, o que cria uma outra fluência do tempo. Podemos dizer que o cerrado não combina com pressa e uniformidade, tão típicas do nosso modelo produtivo. Sua sobrevivência se choca com a busca por controle e velocidade por parte dos condutores da produção agrícola atual, cada vez mais acelerada e mecanizada. A lógica da mercantilização dos elementos da natureza exige que eles sejam domáveis, algo que as paisagens enrodilhadas do cerrado não permitem ser.

Para uniformizar os ambientes e extrair dos territórios do bioma as commodities que nutrem somente os bolsos de um grupelho voraz, as motosserras ruralistas rugem e a vegetação nativa, constituída por muitas espécies endêmicas, padece. As terras em que havia uma biodiversidade exuberante em fauna e flora passam a ser desertos verdes, no caso das monoculturas, ou monótonas pastagens, no caso da criação extensiva de gado. O que não é derrubado, vem sendo queimado, vítima tanto do fogo criminoso quanto do fogo gerado pela secura e alteração da paisagem na esteira da emergência climática global. 

De fato, as fogueiras implacáveis vêm se alastrando em várias regiões do país. No mês de junho deste ano, por exemplo, foram queimados mais de um milhão e duzentos mil hectares no território nacional e, deste total, mais da metade pertencia a áreas de ocorrência do cerrado – um valor que, somado aos outros meses do primeiro semestre, fez com que ele sofresse a maior queimada dos últimos seis anos para o período, segundo levantamento do MapBiomas em 2024. A integrante do WWF-Brasil Bianca Nakamato, confirma que essas queimadas estão vinculadas ao expansionismo agrícola, pois o fogo é usado para “limpar” áreas já desmatadas, abrindo espaço para a plantação vindoura, que costuma ser soja ou braquiária para pasto. 

Se a situação em junho, Mês do Ambiente, já era alarmante, ela tem se agravado ainda mais nos últimos meses. Em meados de agosto, a população brasileira foi surpreendida por um fenômeno apocalíptico: um gigantesco túnel de fumaça se estendeu, a partir das áreas incendiadas na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal, sobre outras regiões do país, chegando aos estados do Sul e do Sudeste. Como se fosse uma onda precursora do fim dos tempos, essa massa de ar seco e tóxico, contribuiu (ou foi usada como pretexto, a depender das conclusões da investigação criminal em curso) para a ocorrência de uma leva de incêndios nunca vista no estado de São Paulo, tragando regiões como Ribeirão Preto para o meio do que podemos chamar de um inferno na Terra. Que o Agro é Fogo a gente já sabia, mas queimar SP inteiro e ainda espalhar teorias da conspiração absolutamente inverossímeis, como a de que esse fogareiro foi tramado pelo MST e pelo governo Lula, é demais para qualquer estômago. 

O fato é que, além desse tipo de fake news, muitos dos vídeos repletos de cenas dantescas também pipocaram nas redes sociais, assombrando até as parcelas da população paulista que não estavam nos lugares afetados, mas que perceberam a transformação na qualidade do ar que respiramos. Menções ao filme Blade Runner pipocaram e um gostinho amargo de futuro distópico que já está aí pôde ser sentido, literalmente, no fundo das gargantas. Se a nova chacoalhada apocalíptica, desta vez constituída do elemento fogo (poucos meses após a que destruiu o Rio Grande do Sul a partir do elemento água) não despertar a sociedade para o grau de gravidade dos desequilíbrios ambientais que enfrentamos, impulsionando as transformações necessárias para não sucumbirmos frente ao colapso total da civilização, não sei mais o que poderá romper sua apatia suicida. 

Ouvir o canto da resiliência 

Voltemos ao nosso Cerrado, lembrando que ele também está presente em parte dos territórios do Sudeste brasileiro, inclusive de áreas queimadas nos recentes incêndios. Ele possui um dia nacional, 11 de setembro, e, se não podemos brindar à sua saúde, ao menos temos uma oportunidade importante para reforçar a luta contra o processo de violenta modificação de seu território pela fúria da monocultura envenenada, da pecuária extensiva e da mineração irresponsável. E aqui é necessário considerar quem tradicionalmente tem habitado o bioma e conservado sua vitalidade ao longo do tempo.

Temos que compreender que a reconfiguração de suas paisagens implica na destruição de algo extremamente precioso, que vai além da esfera material. Junto com os troncos e galhos, também são serrados e queimados os saberes e fazeres tradicionais de muitos povos. Que o digam os Guarani Kaiowá. Privados de seu território ancestral e expostos à falta das condições básicas para a sobrevivência dos corpos de sua população, eles correm o risco de perder também sua alma, que está interligada profundamente com a teia material dos locais em que suas tradições se desenvolveram. Não é por acaso que há tantos suicídios entre eles. Cada rosnar das motosserras ou chiar do fogo descontrolado significa o disparo de mais uma bala no coração das culturas originárias que floresceram junto às tramas do velho cerrado. 

E não só os povos indígenas que têm sido alvo de etnocídio. O cerrado é povoado por outras gentes; gentes que também criaram com ele uma relação visceral. Geraizeirxs, ribeirinhxs, quebradeirxs de coco babaçu, raizeirxs, vazanteirxs, coletorxs de sempre-vivas, retireirxs… são muitas as comunidades tradicionais que se nutrem dos ecossistemas do bioma sem destruí-lo, tecendo junto dele seus fios culturais que se estendem por gerações e gerações. São tesouros imateriais compostos por sabedorias amadurecidas no convívio com cada planta, com cada inseto, com cada pequena mina d’água. Alimentos, medicinas, vestimentas, utensílios e objetos ritualísticos são manuseados a partir dos seres minerais, vegetais e animais presentes nessa natureza única, sem que ela se esgarce ao longo do tempo. 

O Museu do Cerrado, uma plataforma online que traz conteúdos singulares sobre o bioma, tem denunciado essa dizimação de corpos e almas. Também propõe ações para reverter esse aniquilamento. É possível acessar campanhas, manifestos e levantamentos de políticas existentes, além de mergulhar no universo eco-histórico das regiões em que ele predomina, para compreender o que faz com que ele necessite urgentemente ser considerado oficialmente bioma-patrimônio brasileiro, algo interligado à garantia das condições vitais de seus povos tradicionais, já que, como diz Malcom Ferdinand em sua proposta por uma ecologia decolonial, a exploração da natureza e dos seres humanos ocorre conjuntamente e é preciso superar a “dupla fratura colonial e ambiental da modernidade”, que tem gerado movimentos fragmentados na defesa da ecologia ou da justiça social. 

Inserida nessa visão integrada da situação planetária, a Agroecologia traz caminhos para inverter a lógica eco-etnocida que tem predominado no mundo, ao conciliar a busca pela plenitude da bio e da sócio diversidade em suas propostas. Ela não pretende ser uma novidade que, criada pelo mundo acadêmico, majoritariamente ocidentalizado, branco e masculino, seria imposta aos povos tradicionais; mas uma porta para que os saberes ancestrais e as descobertas mais recentes sobre a situação que vivemos fluam juntos em direção à busca do equilíbrio entre gentes e ambientes, uma vez que sabemos que as integridades de ambos são indissociáveis. 

É por isso que não adianta criar um plano de reflorestamento genérico e sair plantando milhões de árvores em um bioma composto por uma uma imensa diversidade de arbustos, trepadeiras, ervas e capins nativos. É necessário olhar cuidadosamente para esse tesouro biológico, de modo a considerar as comunidades que são parte dele e atuam ancestralmente como seus verdadeiros guardiões, extraindo com equilíbrio suas castanhas, fibras, óleos, medicamentos. Elas não estão no Cerrado, elas são o Cerrado. 

Mas só olhos abertos podem não ser suficientes, sobretudo em tempos de tanta fumaça… Ouvir as vozes dos povos do cerrado, ecoando séculos de resiliência frente ao processo de opressão sofrido por parte dos representantes do capital, é questão de sobrevivência. Aliás, costuma-se dizer que o próprio inhambu, ave típica do bioma, é mais ouvido do que visto, já que suas cores se mesclam com as cores do ambiente. Seu canto peculiar é entoado quando o sol está nascendo e se pondo, marcando o tempo da natureza. Sim, ele ainda resiste, mesmo com o rugido das motosserras, o zunido dos aviõezinhos de veneno e os estouros das espingardas, barulhos humanos que não respeitam os marcos temporais que realmente importam, aqueles que regem os ciclos da vida, como o brotar do dia ou o florescer da noite. Apuremos os ouvidos. 

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