Clima: a vitória emblemática de Vanatu

Pequeno país insular, que está sendo engolido pelo Pacífico, obteve decisão notável na Corte Internacional de Justiça. Resultado expõe miséria de uma globalização sem democracia. Caminho é longo, mas soberania dos povos ameaçados pode entrar no centro da política mundial

Ministro de Tuvalu grava discurso para COP 26 de dentro do mar em protesto contra risco de ilha desaparecer (ilha, assim como Vanatu, compõe grupo de países insulares com risco de afundar)
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Essa entrevista faz parte do livro Expedição Climática. Você pode ler a história completa sobre Vanuatu e a Corte Internacional de Justiça aqui

A bem-sucedida campanha de Vanuatu para obter um parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça (CIJ) sobre as obrigações climáticas dos Estados abalou o cenário diplomático. A decisão unânime do tribunal, emitida em 2025, forneceu aos países vulneráveis uma poderosa ferramenta legal, afirmando que a proteção do clima é uma obrigação legal internacional, e não apenas uma meta política.

Conversamos com Ralph Regenvanu, ministro das Mudanças Climáticas do país e um dos principais articuladores dessa iniciativa. Ele explica como a equipe jurídica construiu o argumento das audiências em Haia, de que a crise climática infringe diretamente a soberania e a autodeterminação das nações, e como a decisão da CIJ desarma argumentos comumente usados por grandes emissores.

Agora, com os olhos voltados para a COP30 em Belém, ele detalha os próximos passos para transformar o parecer da CIJ em ação concreta na Assembleia Geral da ONU. Ele também comenta a “lamentável” contradição do Brasil, que sedia a cúpula do clima enquanto avança em projetos de exploração de petróleo.

Lembrando de dezembro de 2024, você foi um dos primeiros a falar para o tribunal. Como estava o clima geral no início daqueles dez dias?

Foi bem empolgante, porque, no começo de tudo, achávamos que seria algo quase impossível de alcançar. Mas pensamos: “vamos tentar”. E então, eventualmente, tornou-se algo que realmente iria acontecer.

Isso começou quando a Assembleia Geral aprovou a resolução no início de 2023. Foi como: “ok, nós vamos ter nosso dia no tribunal”. A data para as audiências orais só foi anunciada algumas semanas antes. Foi uma correria para organizar tudo e chegarmos lá, mas só de ter nosso momento no tribunal para apresentar nossos argumentos, de ter uma chance para que os juízes ouvissem as pessoas contarem suas próprias histórias, era o que realmente importava para nós, independentemente de qual seria o resultado.

Estávamos muito felizes em ver que, em nossa delegação, havia jovens representados. Em outras delegações, havia membros da sociedade civil, e isso foi muito importante para os juízes. Não apenas lerem as declarações dos países, mas também receberem todas as evidências apresentadas pelas próprias pessoas. Foi uma experiência incrível, a primeira vez nesse espaço do Salão da Justiça, no Palácio da Paz… E estávamos muito satisfeitos com a forma como nossa apresentação ocorreu. Logo depois, tivemos as apresentações de Estados argumentando contra. Imediatamente, a realidade começou a cair sobre nós: realmente existia uma oposição.

Qual foi a coisa mais importante que vocês tentaram dizer ao tribunal?

Definitivamente, uma das coisas mais importantes era que eles realmente vissem os depoimentos das pessoas dos países que estavam na linha de frente dos impactos das mudanças climáticas. Mas acho que o aspecto central do nosso argumento era que temos uma ordem internacional, uma ordem global estabelecida no pós-guerra, que deveria salvaguardar a soberania das nações e dos povos que formam os Estados.

Essa é a ordem mundial onde os países autodeterminam seu futuro por meio de um Estado que é parte da comunidade internacional, operando sob o direito internacional, em um espaço onde existem regras. Basicamente, apresentamos o argumento de que nossa autodeterminação foi prejudicada pela conduta de outros países, cuja ação tem causado as mudanças climáticas que destroem o nosso futuro, especialmente o da geração mais jovem.

Logo, toda essa ordem internacional não está operando de acordo com as leis. Há uma injustiça massiva sendo perpetuada. Essa era a essência do nosso argumento, que, no fim, o tribunal considerou correto.

Voltando aos países que falaram contra a decisão final da Corte Internacional de Justiça (CIJ), apontando principalmente que existem outros tratados internacionais que tratam do clima. Como você vê esse tipo de argumentação?

Esse argumento não é novo para nós. Temos tentado defender mais ambição dentro da UNFCCC [Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima], nessa estrutura que eles dizem ser a única capaz de abordar a mudança climática. Mas temos visto a falta de progresso e a falha em cumprir as metas com as quais todos nós concordamos. É tudo muito frustrantemente lento: ver a incapacidade de seguir os próprios órgãos que criamos para nós mesmos, como o IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] — o órgão que representa a melhor ciência disponível —, tendo essa ciência entregue aos países e esses mesmos países deixando de segui-la, tentando amenizar qualquer forma de enfrentamento adequado da crise climática.

Assim, este não é um argumento novo para nós, de que só podemos operar nesse espaço, porque fomos forçados a operar nele. Não foi inesperada a posição dos países contrários. Mas também sentimos que nosso argumento era muito mais forte em comparação ao deles. O fato é que todo o propósito do direito internacional, e toda a forma como esse sistema é configurado, teria como objetivo permitir a soberania e os direitos humanos dos povos que formam Estados como nações. E foi ótimo ver que essa visão foi validada.

Sempre falamos sobre abordar a mudança climática dentro da UNFCCC e também em fóruns fora dela. Falamos sobre isso no Conselho de Direitos Humanos, por exemplo. Toda a razão pela qual fomos à CIJ foi para questionar: esta é a única rota que podemos seguir? Ou o direito internacional é realmente mais amplo do que isso? Eles queriam nos confinar àquela mesma velha e cansada rotina em que estivemos presos por 30 anos.

Sete meses depois, a CIJ emitiu seu parecer a favor de Vanuatu e seus parceiros. O que significa isso?

Em termos de direito internacional, é realmente um marco, porque finalmente temos o mais alto tribunal das Nações Unidas — por unanimidade, todos os 18 juízes do mundo — firmando juntos uma decisão muito forte: de que todos os Estados têm obrigações legais, e essas obrigações não dependem de serem membros do Acordo de Paris ou da UNFCCC.

Todos os Estados devem tomar medidas imediatas e rigorosas para interromper a forma como estão impactando o meio ambiente. Essas obrigações se estendem ao licenciamento de atores privados em seus territórios, empresas de combustíveis fósseis, licenças de produção e exploração, e assim por diante. Antes disso, vínhamos defendendo essas posições em outros fóruns, inclusive dentro da UNFCCC, mas finalmente temos a validação de que o que vínhamos dizendo é, na verdade, juridicamente correto.

Você não pode mais argumentar, como alguns Estados fazem, que ao exportar petróleo e gás não os queima em seu território e, portanto, essas emissões não são suas. Isso é algo que a Austrália tem usado conosco no Pacífico. A Austrália diz: “temos um caminho de emissões líquidas zero até 2030 ou 2050” ou “estamos reduzindo as emissões”, enquanto suas exportações de combustíveis fósseis aumentam massivamente. Como isso não é coberto pela UNFCCC, eles podiam fazer tais declarações em fóruns como o nosso Fórum das Ilhas do Pacífico.

Agora, esses argumentos não são mais sustentáveis. A CIJ deixou claro que todas as obrigações climáticas estão cobertas por todos os aspectos do direito internacional. Isso retirou alguns argumentos da mesa, e espero que vejamos esse reflexo nas COPs, que esses argumentos não possam mais ser usados sem serem contestados pela mais alta autoridade legal, que é o parecer consultivo da CIJ.

Desde que a CIJ emitiu seu parecer, quais são os próximos passos que Vanuatu e outros países parceiros têm tomado para haver um impacto real daqui em diante?

O passo mais imediato que estamos dando é conseguir uma resolução por meio da Assembleia Geral da ONU para que se adote, reconheça e endosse o parecer consultivo, porque foi ela própria, por consenso em março de 2023, que o solicitou. A Assembleia deve recebê-lo de volta, endossar o resultado e então operacionalizá-lo. Temos trabalhado nesse rascunho de texto desde setembro.

Tivemos muitas discussões durante a semana, em encontros de alto nível na Assembleia Geral. Estive em Nova York e acabamos de concluir a Semana de Direito Internacional na semana passada. A semana inteira foi basicamente sobre o parecer consultivo — todos os países falando sobre suas ramificações e implicações. Mas estamos focados nesta resolução e em aprová-la.

Originalmente, pensávamos em fazê-lo antes da COP, em Belém, mas agora será depois. Em dezembro ou janeiro, trabalharemos para aprovar esta resolução, que basicamente endossa o parecer consultivo e o operacionaliza por meio de certas ações. Esperamos que, uma vez aprovada, a resolução exija que o secretário-geral atualize continuamente os países-membros sobre a implementação e a operacionalização do parecer, conforme estipulado na resolução de março de 2023.

E será necessária novamente uma votação na Assembleia Geral?

Sim. Da última vez, em março de 2023, quando tivemos a primeira resolução para enviar o parecer consultivo, tivemos muita sorte. Na verdade, foi sem precedentes conseguir que o pedido fosse aprovado sem dissenso. Agora, o sistema multilateral mudou completamente. Não há mais como obter unanimidade. Então, precisamos do maior número de votos possível, de uma votação com ampla maioria, sabemos que desta vez haverá Estados que votarão contra.

Sobre a COP agora: qual seria a mensagem de Vanuatu considerando a decisão da CIJ e também o rascunho que vocês estão preparando para a conferência em Belém?

É a mesma mensagem de sempre. Vanuatu faz parte do Grupo de Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento do Pacífico (PSIDS), que integra a AOSIS, a Aliança dos Pequenos Estados Insulares. Nossa posição tem sido pela eliminação rápida e imediata dos combustíveis fósseis, para reduzir a principal causa do aquecimento global; financiamento climático baseado em doações, facilmente acessível e em volume suficiente para que os Estados mais vulneráveis possam se adaptar; e que os países com alta emissão devam fornecer esse financiamento. São compromissos já assumidos em Paris e queremos que sejam implementados.

Queremos ver a finalização do Mecanismo de Varsóvia sobre Perdas e Danos, criado em 2013. A sua revisão precisa ser concluída, e o fundo precisa tornar-se mais ativo. Há progresso, mas vamos pressionar por isso também, pois a meta global de adaptação e o financiamento para ela ainda são muito insuficientes.

Quando se trata do parecer consultivo, queremos levantar essa questão em todos os fóruns possíveis. Fiquei agradavelmente surpreso na semana de alto nível em Nova York, todos estavam falando sobre o parecer consultivo. Precisamos garantir que isso se repita em todos os fóruns para dizermos: vocês têm uma obrigação legal, todos os Estados, de tomar essas ações com as quais já concordaram. Agora é uma obrigação legal, não há escolha.

Temos que agir de acordo com todos os parâmetros relevantes, seja na redução de emissões, no financiamento climático ou nas metas, que precisam estar alinhados ao que a CIJ determinou. A Corte reafirmou a meta de 1,5 ºC como meta legal. Não podemos nos afastar dela. Alguns países falam em aumentá-la, mas o 1,5 ºC foi estabelecido como meta legal, e precisamos mantê-lo e tomar medidas para torná-lo alcançável.

Também trabalharemos em coalizões de Estados em diferentes frentes como o Compromisso Global do Metano, a Coalizão de Alta Ambição e a Aliança Além do Petróleo e Gás. Temos o Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis, cuja primeira reunião ministerial ocorrerá em Belém, para começar a discutir seu desenvolvimento. Há uma série de coalizões dispostas a trabalhar paralelamente à trilha principal de negociação, basicamente como uma forma de retroalimentar e aumentar a ambição dentro do processo da UNFCCC. Esse é o objetivo final: pressionar em fóruns externos, como a CIJ, mas com foco no processo da UNFCCC.

E como está o Brasil nesse panorama das conversas?

Não conseguimos falar com o Brasil. Tentamos contato em várias ocasiões, mas sem sucesso. Nossa conclusão é que o Brasil está freneticamente ocupado organizando a COP 30 nesta fase, e definitivamente tentaremos contato novamente durante o evento. Mas, infelizmente, não conseguimos nos encontrar antes, embora tenhamos feito o nosso melhor.

Existe uma contradição entre a liderança do Brasil agora, sendo o anfitrião da COP, mas também iniciando o estudo para perfuração offshore não tão longe de Belém, na Foz do Amazonas?

É realmente lamentável. O Brasil tem a oportunidade de ser um líder mundial em ação climática e é isso que mais precisamos hoje. A CIJ chamou a mudança climática de “a crise quintessencial do nosso tempo”. Sediar a conferência da UNFCCC é uma chance única para o Brasil demonstrar inequivocamente sua liderança nessas questões.

O Fundo para Florestas Tropicais [proposto pelo Brasil], que tem sido divulgado, é um bom exemplo de uma iniciativa de liderança climática. Mas a decisão de abrir novas frentes de exploração de petróleo e gás vai na direção oposta, está completamente do lado errado da história. É realmente lamentável que o Brasil tenha decidido seguir esse caminho. É tudo o que direi sobre isso.

Considerando a COP e todas essas questões logísticas e de custos de acomodação elevados, muitas delegações do Pacífico serão menores desta vez, certo?

Sim, mas acho que os grandes países, que costumam enviar delegações maiores, serão os mais afetados, porque enviam centenas de pessoas. Nós sempre enviamos delegações menores, de qualquer maneira, estamos acostumados a isso. Pode até ser uma COP melhor para nós, pois o campo de jogo fica mais equilibrado. Nossa desvantagem sempre foi que os países grandes vinham com centenas de representantes, e nós não podíamos estar em todas as salas ao mesmo tempo. Agora isso se equilibra um pouco. Mas, certamente, as delegações serão menores do que costumávamos ter.

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