Bioeconomia em uma Amazônia sem bio

Sem ações para punir e frear os culpados pela devastação, narrativa de sustentabilidade é “esparadrapo em alguém com traumatismo craniano”. É preciso tocar na ferida: a produção agrícola subordinada à política reacionária e ao domínio do capital financeiro

Foto: Mayke Toscano/Secom-MT/Fotos Públicas
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Como diz o ditado, ninguém morre de tédio no Brasil. Pelo contrário, novos problemas surgem, sem que os velhos desafios tenham sido enfrentados. Entre as últimas urgências, vemos que a degradação ambiental se tornou crônica e incontrolável, a população tem um entendimento precário do que fazem e de quanto ganham os políticos, e a economia é cada vez mais dependente de atividades primárias (agricultura e mineração) e primitivas (garimpo, apostas virtuais e investimento especulativo). Relacionado a tudo isso, juros altos, privilégios crescentes e tecnologias antigas deixam o futuro cada vez mais distante e o presente menos convincente.

Esses são temas fundamentais e serão tratados no seminário internacional “Questões Sócio-Ecológicas e Alternativas Bioeconômicas: Novas Perspectivas para o Desenvolvimento da Amazônia e Fronteiras da Justiça Ambiental”, que acontecerá de 6 a 11 de julho no campus de Sinop da Universidade Federal de Mato Grosso, com apoio do IFMT e organizado conjuntamente com a Universidade de Cardiff, no Reino Unido. O evento, que reunirá pesquisadores provenientes de diversas universidades brasileiras e britânicas, é parte da iniciativa Amazônia+10, a qual tem como meta apoiar a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico sobre a floresta tropical, as interações natureza-sociedade e o desenvolvimento sustentável e inclusivo da região Amazônica.

A importância de tais debates é ainda maior agora, uma vez que estamos chegando mais perto da COP30 em Belém, o encontro anual para tratar da emergência ambiental e da devastação causada pelas mudanças artificiais do clima. A pouco mais de quatro meses da grande conferência, fica a pergunta: o que o Brasil poderá apresentar como resultado concreto e prova de sua pretendida liderança internacional através do exemplo e não da força?

A agenda de bioeconomia poderia ser mencionada como prioridade das políticas públicas do atual governo. Foi inclusive criada uma secretaria na estrutura do Ministério do Meio Ambiente (pelo Decreto Presidencial 12.254 de novembro de 2024), dedicada especialmente a promover tecnologias e processos produtivos que sejam coerentes com a preservação dos ecossistemas e levando em conta as muitas necessidades dos moradores locais.

A bioeconomia é geralmente relacionada à produção de biocombustíveis, ao uso de biomassa de origem vegetal ou animal, à e exploração de produtos da biodiversidade, que incluem uma variedade de itens derivados da natureza, tanto diretamente, quanto por meio de processos biotecnológicos. Como se vê, são muitos conceitos derivadas do antigo sufixo grego ‘‑βίος’ que foi incorporado ao português através da expressão latina pós-clássica ‘bio’. Contudo, muitas dúvidas persistem e serão exploradas durante o nosso evento no Mato Grosso.

Em vista disso, a contribuição da bioeconomia não pode estar restrita a aspectos tecnológicos e comerciais, mas precisa também considerar as severas responsabilidades pela devastação ambiental e pela falta de aplicação da legislação existente. Em outras palavras, é muito pouco insistir em novas técnicas bioeconômicas sem se levar em conta que a Amazônia passa por um período de ruína, marcado pela extinção em massa de plantas e animais, genocídio indígena, perseguição dos mais pobres e ‘menos brancos’, mineração ilegal, ou mesmo legal, e exploração bastante questionável de petróleo.

Arruinamento é hoje a marca da Amazônia e qualquer argumento em favor da bioeconomia ou de um desenvolvimento presumidamente sustentável não pode simplesmente sobrepor aspectos gerencias a tendências destruidoras e que basicamente enriquecem as elites regionais e seus aliados políticos. Não é possível aceitar uma bioeconomia em que o ‘bio’ seja menor que o ‘econômico’ e distante do ‘político’, resultando assim em medidas que se demonstram, na verdade, anti-natureza, porque anti-povo e anti-vida.

Como fica o agronegócio nesse debate? Muitos produtores de commodities agrícolas e suas associações defendem que o setor utiliza práticas agronômicas avançadas com mínimo impacto ambiental, tais como o plantio direto, sucessão de culturas (ou mesmo rotação) e controle integrado de pragas. Tais procedimentos não deixam de ter algum valor agroecológico, mas o que dizer da grilagem e do desmatamento que precederam a instalação de pastagens e campos de monocultura? Por que a falácia do marco temporal que apenas serve quem há muito pouco tempo está na terra e a utiliza de forma predatória? Por que o agronegócio prefere produzir soja para exportação, sem pagar imposto, ao invés de alimentos para a população regional e nacional? Por que o código ambiental e outras legislações precisam ser constantemente emendadas para dar ainda mais liberdade para a ampliação de desertos plantados? Por que tanto pesticida e maquinário de alto custo, se o desastre climático e a destruição de ecossistemas e bacias hidrográficas seguem, na prática, ignorados?

Uma explicação óbvia é o interesse imediatista e individualista de cada fazendeiro que quer sua propriedade valorizada e sua colheita exportada em dólar. Mas existe um fator ainda mais básico e muito mais perturbador: a subordinação da produção agrícola e do desenvolvimento nacional a uma política reacionária e ao domínio do capital financeiro. O Brasil tem deputados e senadores caríssimos, juízes com ‘notório saber se beneficiar’ e militares que lutam bravamente para garantir a pensão de viúvas e filhas com casamentos fictícios, mas o verdadeiro centro de poder é evidentemente o setor financeiro, aliado histórico do latifúndio.

Algo muito parecido acontece no Reino Unido desde 1979, com a sucessão de privatizações, demissões e falências desencadeadas pelo governo da Baronesa Thatcher. Nas suas palavras, “a economia é apenas um método, o objetivo é mudar a alma das pessoas”, que deveriam atuar de acordo com o interesse individual e buscar o máximo lucro pessoal. O resto… bem, o resto não importava. O desastre foi imediato e continua a ser sentido, com milhões sem emprego, empresas privatizadas e arruinadas (por exemplo, água, saneamento e trens sem investimento por décadas) e vasta destruição da agricultura, indústria, hospitais e, finalmente, das universidades.

Tudo em nome de um setor financeiro que, em grande medida, controla a vida privada e a atividade econômica do Reino Unido. Nem o parlamento em Westminster, nem o governo, nem ninguém consegue impor qualquer limite à autonomia e à voracidade dos bancos. Quase toda a atividade nacional serve para concentrar mais poder e lucros exponenciais nas mãos de cada vez menos gente. Parafraseando George Orwell, todos são desiguais, mas alguns poucos são muito mais desiguais e avantajados que os 99% restantes.

O Brasil vai cegamente por esse caminho suicida, já que insiste no mesmo equívoco de conceder independência ao Banco Central (verdade seja dita, emancipação do povo, mas total dependência da agiotagem bancária) e manter uma desorganização produtiva, que concentra quase todas as cartas no uso de sol e água (bens da natureza, roubados dos povos originários) para a produção de soja, carne, milho e algodão. Insiste-se, desse modo, em um progresso duvidoso e controlado por políticos demagógicos a serviço do rentismo bancário e da exportação primária.

Em vista de tantas distorções, propugnar de forma simplista por uma transição bioeconômica é colocar esparadrapo em alguém com traumatismo craniano. Sem que se repense seriamente as razões e responsabilidades pelas ruínas da Amazônia, bioeconomia não passa de “sonho de uma noite de verão” (expressão da comédia de William Shakespeare).

A democracia brasileira e o futuro do Brasil como nação dependem, cada vez mais diretamente, de uma preservação ambiental justa e de justiça socioeconômica em um ambiente de todos. Economia sem justiça ambiental não é simplesmente a carroça na frente dos bois, mas carroça sem bois, sem rodas e sem rumo.

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