Quando a educação é derrotada
No Distrito Federal, parlamentares querem a instalação obrigatória de câmeras em salas de aula. Em todo o mundo, já há professores com câmeras corporais e reconhecimento facial dos alunos. Podem o medo e a insegurança substituir a magia da escola?
Publicado 17/10/2025 às 16:34

A despeito do que sustentava Clausewitz, onde tem início a violência, acaba a política e a possibilidade de negociação. Daí vincularmos a noção de educação com o de civilidade.
Quando dizemos que uma pessoa é educada, não estamos nos referindo à sua fluência em línguas estrangeiras ou quantidade de livros que leu na vida. Estamos nos referindo às regras de convivência e gentileza que essa pessoa observa e segue.
Muitos estudos indicam que o ambiente violento é um desarticulador da formação para a civilidade. Para as crianças, ver seus pais ou responsáveis agindo violentamente as levam a vincular situações difíceis ou adversidades com uma resposta violenta que deve dar para se defender.
Da mesma maneira, ambientes tensos ou que são marcados pela desconfiança, imposições autoritárias e excesso de controle também criam fugas e ansiedades em crianças e adolescentes. Este, aliás, é um dos dados apresentados por Jonathan Haidt, em seu livro “A geração ansiosa”. O livro, que virou best-seller, revela o quanto os pais passaram a controlar ambientes públicos em que seus filhos frequentam – como parquinhos infantis, onde os desafios e pequenos perigos são absolutamente excluídos – e se esquecem que dos perigos virtuais. O autor sugere que desafios e riscos fazem parte do crescimento humano e que é necessário a criança saber superá-los. Em outras palavras, um supercontrole não leva à segurança, mas à desconfiança.
O Distrito Federal vive justamente esta encruzilhada entre educar e controlar.
O caso é sabido. Um professor da educação infantil foi preso preventivamente pela Polícia Civil do Distrito Federal no segundo dia deste mês de outubro acusado de estupro de vulnerável. Teria abusado de uma criança de quatro anos.
Não há dúvidas sobre a gravidade do caso, o que exige o máximo de cuidado e precisão na condução das ações policiais e judiciais, além da reparação do dano à criança e sua família.
A Secretaria de Educação do Distrito Federal afastou o professor temporário dos seus quadros funcionais e o caso foi encaminhado à Corregedoria para a apuração dos fatos e adoção das medidas cabíveis.
A Corregedoria da Secretaria de Educação do Distrito Federal, por seu turno, instaurou um processo administrativo disciplinar para apurar supostas irregularidades e a direção da escola em que o professor lecionava foi afastada por tempo indeterminado por supostamente manipular os servidores a falarem a favor do professor suspeito.
Portanto, os encaminhamentos iniciais foram rígidos e procuraram recriar um ambiente de ordem na escola.
Contudo, a Câmara do DF resolveu entrar em cena de maneira açodada. Alguns parlamentares passaram a defender a instalação obrigatória de câmeras em salas de aula da rede pública, sem ouvir os profissionais da educação que protestaram contra a medida. O Projeto de Lei 944/2024, que prevê que o monitoramento seja instalado em escolas públicas e particulares do DF, foi sacado como solução imediata.
Às vésperas das eleições, é sempre importante os cidadãos ficarem alertas para arroubos parlamentares que procuram visibilidade em assuntos que geram comoção pública. Mesmo porque, tecnicamente, a defesa da representação parlamentar é justamente para se diferenciarem do emocionalismo das multidões. Os teóricos liberais sempre defenderam a profissionalização de representantes políticos que formariam uma casa heterogênea onde teriam tempo para ponderar sobre as melhores leis para os cidadãos e a paz social. Na multidão, os cidadãos podem se deixar levar pelo senso de urgência e pelos discursos mais emocionais proferidos por lideranças carismáticas. Já os parlamentares teriam que ouvir e negociar com lideranças diferentes que trazem pensamentos alinhados com muitos interesses espalhados pela sociedade. Com tempo, num clima reflexivo, o Parlamento seria o local ideal para a moderação e decisões equilibradas. Isto, em teoria.
O Projeto de Lei citado não parece marcado pela racionalidade ou equilíbrio. Sugere que todas as salas de aula devem contar com equipamentos de captação de áudio e vídeo capazes de armazenar integralmente as atividades desenvolvidas. Pelo projeto, o sistema será composto pelo monitoramento por câmeras nas dependências da instituição de ensino e o registro de atividades por meio da captação ininterrupta de áudio e vídeo das atividades desenvolvidas nas salas de aula.
Logo em seguida, a votação do polêmico projeto de Lei foi adiada para 21 de outubro.
As experiências existentes
No Brasil, uma onda punitivista e de instalação de monitoramento por câmeras de segurança parece ganhar força.
A prefeitura de Belo Horizonte lançou no dia 6 o “Muralha BH”, sistema integrado de monitoramento inteligente desenvolvido pela Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção. O objetivo declarado é combater a criminalidade e ampliar a sensação de segurança. A primeira fase já está em andamento, com cerca de 600 câmeras instaladas e testadas. A iniciativa prevê mais de 12 mil câmeras em áreas mapeadas por toda a cidade.
Em dezembro do ano passado, a Câmara Municipal de Belo Horizonte já havia aprovado em 1º turno um projeto de instalação obrigatória de câmeras de monitoramento de segurança nas dependências das escolas públicas municipais.
As iniciativas do DF e BH convergem nas justificativas e nas autorias desses projetos de lei: são todos apresentados por parlamentares ultraconservadores ou declaradamente extremistas que têm no uso da violência institucionalizada a receita para instalar a segurança pública.
Um estudo que leva o título “Tecnologias de vigilância e educação: um mapeamento das políticas de reconhecimento facial em escolas públicas brasileiras” (São Paulo: TAVARES, C.; SIMÃO, B., MARTINS, F. ; SANTOS, B., ARAÚJO, A..InternetLab, 2023), apresenta informações importantes que sugerem mais cautela no trato deste tema.
O estudo propõe aprofundar os resultados do uso de tecnologias de vigilância em ambientes educacionais.
Os pesquisadores se concentraram em quinze casos: Tocantins; Mata de São João (BA); Fortaleza (CE); Jaboatão dos Guararapes (PE); Águas Lindas (GO); Goiânia (GO); Morrinhos (GO); Betim (MG); Rio de Janeiro (RJ); Angra dos Reis (RJ); Itanhaém (SP); Potirendaba (SP); Santos (SP); Porto Alegre (RS); Xaxim (SC).
O estudo conclui que a tecnologia mais empregada é a de reconhecimento facial. Contudo, nenhum município ou estado informou sobre a realização de estudos de impacto de risco aos direitos humanos ou análises sobre o potencial de discriminação resultante de softwares de reconhecimento facial anteriormente à execução do projeto.
O reconhecimento facial foi apresentado pelas empresas e pelas escolas como uma tecnologia de educação e com finalidade pedagógica. Em outros campos de estudos, no entanto, o reconhecimento facial tem sido apontado como uma tecnologia de vigilância.
O estudo conclui como inadequado o uso de reconhecimento facial nas escolas brasileiras. Por outro lado, sustenta que tecnologias educacionais “podem ser adotadas como forma de auxiliar o desenvolvimento de estudantes no ambiente escolar, ressaltando que devem ser levados em conta pelos agentes escolares o uso responsável e afinado aos direitos humanos de novas tecnologias, considerando questões éticas, regulatórias e protetivas aos direitos das crianças e adolescentes.”
Existem dezenas de plataformas de vídeo ao vivo na China, e as transmissões das salas de aulas podem ser encontradas em várias delas. Qualquer pessoa com uma conexão de internet é capaz de entrar e escolher entre milhares de escolas. O site mais popular é o Shuidi, da gigante de segurança na internet Qihoo 360 Technology Co., que vende câmeras e softwares, entre outros produtos.
No feroz sistema educacional da China, o vídeo ao vivo também encontra defensores entre pais obcecados com as notas, que procuram novas maneiras de pressionar seus filhos, e nas escolas ansiosas para melhorar seu desempenho acadêmico.
As câmeras se tornaram especialmente populares em internatos rurais, onde os professores dizem que o vídeo ao vivo pode ser uma conexão vital entre as crianças e seus pais, frequentemente trabalhadores migrantes que moram em cidades há centenas de quilômetros de distância.
Escolas privadas e internatos dos Estados Unidos começaram recentemente a usar circuitos fechados, transmissões privadas para deter o crime e o mau comportamento. O Reino Unido está testando câmeras de corpo nos professores para reunir evidências para processos disciplinares dos alunos.
Nos EUA, 97,1% das escolas mantêm acesso controlado durante o horário escolar nos edifícios escolares; 58,9% implementam acesso controlado em terrenos escolares; 98,1% mantêm acesso controlado às salas de aula. Mesmo assim, toda esta tecnologia e controle não estão coibindo os ataques infanto-juvenis às escolas e alunos, como a ocorrida em 27 de agosto deste ano em Minneapolis, envolvendo uma escola católica que resultou na morte de duas crianças e do atirador, além de ferir mais de 20 pessoas.
Por que os sistemas e tecnologias de controle não funcionaram nos EUA? Porque não envolvem processos educativos e instalam um ambiente de desconfiança que estimula a reação juvenil.
A implantação de câmeras de segurança tornou-se quase universal nas escolas americanas, com implementação variando de acordo com o nível educacional e a localização geográfica: 77,9% das escolas de ensino fundamental usam câmeras de segurança e 93,6% das escolas de ensino médio utilizam esta tecnologia.
Nos EUA, a defesa do uso das câmeras de segurança ressalta o tamanho das escolas que apresentam maiores dificuldades de acompanhamento dos alunos. Ora, ao invés de diminuírem o número de alunos por unidade escolar e estabelecer uma relação mais personalizada, os EUA decidem aumentar a impessoalidade e o distanciamento. Isto não é educação.
O fato é que ao instalarem as câmeras de segurança nas escolas, logo são incluídas outras medidas de cerceamento de todo corpo funcional escolar. Nos EUA, onde as câmeras são instaladas, 76,8% dos professores e funcionários da escola são obrigados a usar crachás. Como se vê, o clima de desconfiança e controle absoluto vai se espraiando por toda escola, criando um clima que faria o escritor inglês George Orwell se espantar.
Todo este avanço de equipamentos de tecnologia em controle escolar se alimenta do medo que toma os pais nos últimos anos. Os EUA, novamente, são uma boa fonte de dados. Lá, 44% dos pais estão mais preocupados com a segurança escolar do que há mais de 20 anos.
O pânico alimenta uma indústria de controle escolar.
Os EUA vivem este paradoxo: o país nunca investiu tanto em medidas para aumentar a segurança escolar. E, ainda assim, nunca viu tantos massacres em escolas e universidades como nos últimos anos.
Desde abril de 1999, quando dois estudantes abriram fogo contra colegas na Columbine High School (no Colorado), em um episódio considerado o marco inicial de uma tendência de violência escolar no país (e no mundo), foram ao menos 377 ataques do tipo nos EUA, de acordo com um levantamento feito pelo jornal The Washington Post, que rastreia os casos na ausência de dados oficiais do assunto.
Em 2021, as unidades educacionais americanas gastaram a cifra recorde de U$ 3,1 bilhões (cerca de R$ 15,6 bilhões) com sistemas e serviços de vigilância e proteção, segundo estimativas da consultoria de mercado tecnológico OMDIA. O valor representa um crescimento de 14% no total de gastos se comparado ao ano de 2017, o dado anterior disponível. No ano passado, o Congresso americano aprovou um pacote de US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão) para ajudar as instituições a se equiparem contra a violência armada.
Mas por que tudo isso não reduziu ataques?
De acordo com Justin Heinze, professor de saúde educacional da Universidade de Michigan e diretor do Centro Nacional de Segurança Escolar, “não há hoje grandes evidências científicas para apoiar a ideia de que essas medidas tenham impacto definitivo na prevenção de massacres”. E conclui que este “não pode ser o único caminho para tentar combater o problema dos ataques”, em à BBC News Brasil.
Em 2016, um estudo da Johns Hopkins University concluiu o mesmo: há pouca evidência de que novas tecnologias de segurança possam impedir ou diminuir massacres.
Uma pesquisa publicada em 2019 na revista científica Journal of Adolescent Health, que revisou 179 episódios de tiroteios em escolas americanas entre 1999 e 2018, concluiu que manter guardas armados na escola não reduziu o número de vítimas em massacres.
Enfim, saídas fáceis para situações complexas e angustiantes nunca foram a melhor decisão a tomar.
O Distrito Federal tem a oportunidade de se debruçar sobre um dos temas mais espinhosos da vida nacional: a violência cotidiana. Somos campeões mundiais em linchamentos e temos altos índices de feminicídio e assassinato de jovens negros por arma de fogo. Não somos um povo pacífico.
Entretanto, podemos reverter esta tragédia. Mudando hábitos e alterando convicções. Algo que somente a educação sabe fazer.
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