Por uma soberania popular de dados

Experiências do Núcleo de Tecnologia do MST mostram: dados não são “ativos”, mas fruto de relações sociais complexas. Protegê-los não é apenas mitigação de riscos, mas uma forma de promover direitos coletivos, com consentimento claro e transparência em todo o processo

Foto: Correio Braziliense
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A sociedade está cada vez mais convencida de que o capitalismo é uma força natural e que o modo de produção voltado para a acumulação atende às necessidades sociais. A prosperidade individual é vista como resultado direto do trabalho duro, enquanto a contradição entre capital e trabalho é tratada como uma invenção ideológica. Esse senso comum retrata bilionários como seres humanos geniais, cujos intelectos e iniciativas geram emprego e prosperidade, como visionários que libertam a humanidade do atraso. Ao estigma da pobreza, junta-se a ideia de fracasso, sob o peso da responsabilidade individual. Os bilionários da tecnologia, por sua vez, construíram a imagem de visionários que libertam a humanidade do atraso. A desigualdade, portanto, seria o resultado desejável de um processo algumas vezes referido, timidamente ou não, pelo conceito funesto de evolução.

O senso comum facilita a disseminação do pensamento da classe dominante ao povo, mas este fenômeno está atrelado ao ritmo acelerado dos processos produtivos. A circulação de dados e informações tornou-se essencial para a produção, serviços, transporte, identificação de mercados e propaganda, promovendo ganhos financeiros. O capitalismo busca constantemente otimizar esses ciclos, incentivando a geração massiva de dados pelas empresas. Contudo, para nós, os dados são fruto de relações sociais complexas, analisadas a partir da prática dos movimentos populares, que valorizam elementos dinâmicos na vida das pessoas. Encaramos os dados como um fenômeno social relevante.

Portanto, vamos apresentar como o Núcleo de Tecnologia trabalha com a pauta dos dados, assunto que viaja na mente das pessoas e constrói diferentes imaginários a respeito da sua existência e efeitos na vida material cotidiana, coberto de misticismos neoliberais e, sobretudo, distante do conhecimento popular. Mas, se “dados” são tão relevantes para as sociedades do nosso tempo, por que é algo tão distante da população? São as pessoas que criam dados, que são afetadas pela aplicação deles por corporações e estados. A quem deveríamos nos reportar, não a uma ou outra empresa que tem em seus modelos de negócio a apropriação de dados. Excelentes pesquisadores e pesquisadoras abordam cada uma das dimensões de como os dados operam, por diferentes caminhos e bases teóricas que enriquecem o debate e a luta política (Grohmann, Lippold, Faustino, Figaro, Amadeu, Dantas). Mas, há alguns elementos centrais na interpretação de como a apropriação dos dados por corporações e estados afeta a vida do povo e o papel dos movimentos sociais exemplificado pelo Núcleo de Tecnologia do MTST.

Os dados não existem a priori; não são um fenômeno da natureza. Apesar de sua estrutura organizada de silício, fósforo e boro, eles não podem ser “extraídos” nem “minerados” — expressões muito utilizadas, talvez relacionadas à ideia popular de que “dados são o novo petróleo”. Dados são produtos das relações sociais e das intenções que permeiam essas interações. Toda informação digitalizada em um aplicativo (na interação humano-máquina), transmitida pela internet, armazenada em bancos de dados e processada por algoritmos e modelos de grandes corporações revela uma relação de poder: de um lado, quem controla as infraestruturas tecnológicas; de outro, a população que consome serviços digitais e tem suas vidas digitalizadas em forma de dados a partir das mediações que esses serviços plataformizados proporcionam. Nesse contexto, ao utilizar aplicações como o Aplicativo da Vitória ou o Contrate Quem Luta (CQL), dados são coletados e cabe ao Núcleo protegê-los e utilizá-los de forma adequada para fins relacionados a esses trabalhadores e trabalhadoras.

Assim, a reflexão sobre o valor social dos dados se materializa nas práticas cotidianas de geração e uso dessas informações, evidenciando a importância de políticas e estratégias que coloquem os dados a serviço das lutas do povo. No CQL, a geração de dados pessoais é fundamental, pois o ponto de partida para o uso desses dados está diretamente ligado ao interesse dos próprios prestadores. O controle dos dados permanece nas mãos dos trabalhadores e trabalhadoras, de forma protegida e a serviço dos seus interesses. Dentro dessa perspectiva, há informações relevantes, que permitem realizar avaliações de satisfação sobre os serviços oferecidos, além de garantir um ciclo constante de feedback para avaliar e melhorar a organização e distribuição do trabalho. Somado a isso, adaptamos a coleta de dados para mitigar a desconfiança dos usuários em relação à solicitação de localização. Em vez de requisitar a localização imediatamente, o bot contextualiza a finalidade do dado por meio de mensagens explicativas. Além disso, os dados dos trabalhadores são coletados exclusivamente durante conversas presenciais prévias, garantindo consentimento claro e transparência em todo o processo.

Coordenadores da base do Contrate Quem Luta mantêm um diálogo contínuo com a equipe de desenvolvimento do Núcleo, discutindo possíveis melhorias para o software de acordo com as necessidades reais dos trabalhadores organizados. Essa interação constante reforça a adaptabilidade da ferramenta e seu alinhamento com os objetivos coletivos. Assim, os trabalhadores organizados no movimento puderam se beneficiar desses dados. Acreditamos que o desenvolvimento do projeto contribuiu para a conscientização e o letramento de dados dos participantes, ampliando sua compreensão sobre o uso de tecnologias digitais. As informações coletadas no APP da Vitória desempenham um papel estratégico na organização de atos e mobilizações, otimizando a logística e o engajamento das ações. Essa ferramenta reduziu o tempo gasto com tarefas de organização dos militantes e acampados.

Implementamos uma política de minimização de dados no WiFi das Cozinhas Solidárias, coletando apenas uma informação essencial por conta de exigência legal. Embora possamos identificar usuários únicos e reconhecê-los em diferentes períodos, os dados são projetados para impossibilitar a vinculação a identidades reais, assegurando conformidade com a LGPD e evitando riscos de exposição indevida. Mesmo com a minimização de dados no seu limite, foi possível analisar esses dados e identificar qual era a dinâmica de utilização e outras aferições que apoiam as cozinhas solidárias. Poderíamos propor coletar os dados pessoais como condicionante para utilizar a internet, com a intenção legítima de estabelecer proximidade com as pessoas, mas em vez de depender de informações pessoais sensíveis, investimos na ideia de que ter acesso de qualidade a internet já era o suficiente, e que o relacionamento orgânico com as pessoas seria a chave para construir uma rede de conexões.

A partir desse acúmulo de reflexões resultou em uma política de proteção de dados que foi pensada para que refletisse a perspectiva do Núcleo. Desenvolvemos uma política de privacidade transparente e termos de uso sem pegadinhas que serviu de modelo para as demais aplicações. A premissa foi garantir conformidade legal sem jargonismo técnico: explicamos de forma direta a finalidade dos dados coletado, sem se escorar na retórica de um texto, mas garantindo que o valor social do dado da pessoa de fato a beneficie. Isso se reflete até na interface: o botão “Conectar” só libera o acesso após o usuário passar pelos termos de uso. O sistema exige a leitura e a confirmação de um check, uma medida que, embora desafie a chamada “experiência do usuário”, reforça o letramento digital. Essa iniciativa resultou na elaboração de uma cartilha de letramento digital, destinada a informar os usuários sobre privacidade e uso consciente da tecnologia. Também foi redigido um Documento Base de Aplicação de Proteção de Dados Pessoais, de circulação interna, para orientar os projetos do Núcleo no entendimento e incorporação dos princípios de proteção de dados nos processos de concepção, implementação, modificação e manutenção das tecnologias.

Esses princípios também são levados para fora do Núcleo, ao atuarmos na promoção e defesa da geração e utilização de dados orientados pelo interesse público nas instituições. O Núcleo de Tecnologia do MTST ocupa uma cadeira no Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais (CNPD) pelo Setor Laboral, conselho consultivo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD), sob o comando do Ministério da Justiça. Somos o único movimento de luta urbana a ocupar esse espaço. Tanto a Autoridade quanto o Conselho existem para garantir que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) seja aplicada de forma adequada, por isso, uma das missões do Núcleo dentro desse conselho consultivo é fazer o debate e incidir sobre os dados que os trabalhadores e trabalhadoras geram durante sua atividade, sobretudo os plataformizados. Observa-se que a assimetria de poder entre empregador e empregado intensifica o uso de dados pessoais em desrespeito com a legislação, fazendo-se necessário lutar para que as pessoas trabalhadoras tenham seus direitos respeitados e que sejam levados a sério como um titular de dados.

Os contornos da proteção de dados no país vêm sendo disputada em um embate protagonizado por empresas, pela academia e ONGs de direitos humanos atuantes nas frentes de proteção de direitos digitais. Enquanto essas instituições deram cara e corpo ao regime de proteção de dados pessoais no país, não vimos movimentos populares pautando esse debate. Vimos, por outro lado, a instrumentalização da LGPD por grandes empresas “latifundiárias de dados” em consonância com o fenômeno capitalista denominado colonialismo digital ou colonialismo de dados, liderado pelo oligopólio tecnológico estadunidense, as Big Techs, e impulsiona, em relação à LGPD, uma visão voltada à gestão de riscos corporativos, consolidando um lobby que se alinha a essas grandes corporações, setores da economia brasileira, como Fiesp, Fecomercio, CNI e Febraban. Sob o discurso de estímulo à inovação e ao desenvolvimento, adornado com termos como ‘ético’ e ‘responsável’, essas corporações buscam camuflar as reais implicações da produção massiva de dados e a ausência de transparência, cultivando uma falsa percepção de ‘boa fé’ no tratamento das informações pessoais. Por trás de discurso de busca por ‘segurança jurídica’, esconde-se uma agenda de flexibilização das salvaguardas que deveriam proteger os cidadãos. Defendemos que a proteção de dados não seja uma mera questão de mitigação de riscos privados, mas um direito coletivo de pessoas trabalhadoras que produzem grandes volumes de informação em seus cotidianos, e compreendemos que a LGPD não oferece uma proteção coletiva que garanta privacidade e proteção de dados. Apesar do caráter individualista, entendemos que a Lei Geral de Proteção de Dados estabelece regras importantes no que tange a garantia de direitos e soberania popular de dados. Isso não quer dizer que não devemos nos posicionar em relação à legislação vigente. No entanto, o mais importante é participar da disputa pela influência dos contornos da sua aplicação, para que a LGPD possa ser orientada pela promoção e proteção de direitos das pessoas, de forma coletiva e protagonizada pelo povo trabalhador.

Em outros espaços o Núcleo também busca para promover transparência e fortalecer a participação popular. Desenvolvemos análises que expõem contradições sociais, como o estudo sobre ataques israelenses à Faixa de Gaza, apresentado na CryptoRave 2024. Para democratizar o acesso, criamos um tutorial público de análise de dados, incentivando movimentos populares no uso crítico dessas ferramentas. Também produziu visualizações acessíveis nas experiências do Cuidar de São Paulo e “Amor por SP”, facilitando a compreensão dos processos eleitorais. O Núcleo ainda contribui em debates e projetos de lei sobre Inteligência Artificial, biometria e regulação de plataformas digitais, priorizando direitos e responsabilização de grandes empresas.

Os dados, como tecnologia social, resultam do trabalho coletivo e seu valor está em servir à construção do poder popular. Na luta social, devem ser instrumentos de fortalecimento comunitário, superando modelos de negócios predatórios e concepções comuns que afastam a população do debate central sobre dados. O Núcleo de Tecnologia entende que todo o ciclo de vida dos dados deve estar voltado aos interesses populares, promovendo justiça social. Sua atuação abrange múltiplas dimensões: os dados são usados como ferramenta de análise crítica da realidade, potencializam a organização popular, pautam disputas políticas e são centrais para compreender a economia política contemporânea. Ao adotar essa abordagem, o Núcleo confronta as assimetrias de poder informacional e constrói alternativas que colocam a tecnologia em prol das lutas populares. O futuro desejado prioriza a soberania popular sobre os dados: cada linha de código, análise ou visualização representa uma escolha política. O projeto é disputar a produção, o uso e a regulação dos dados, para que as tecnologias de informação sirvam à emancipação coletiva e à construção de uma sociedade mais justa.

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