Para escapar do Tecnofeudalismo
Entrevista com um dos pensadores que veem a emergência de um novo modo de produção, mais predador que o próprio capitalismo. Apoia-se em Habermas e Marx. Sugere: para virar o jogo, é preciso fazer das Big Techs monopólios públicos
Publicado 06/02/2025 às 18:44 - Atualizado 06/02/2025 às 18:48
Cédric Durand, em entrevista a Diego Velásquez, no Nuso
Há algo de novo em ilustrar a maneira como os futuros punks e distópicos, imaginados na segunda metade do século XX, se estabeleceram como realidade? Provavelmente não. De qualquer forma, não é aí que reside a originalidade do pensamento do economista francês Cédric Durand. Parte de sua proposta foi elaborada em seu livro Tecnofeudalismo. Crítica da economia digital 1 . Durand baseia-se no estudo da dinâmica de investimento das Big Techs, nas margens de lucro excessivas e nos métodos de apropriação do conhecimento nas cadeias de valor globais, para propor a hipótese de que uma transformação qualitativa do capitalismo está ocorrendo, realizada pelos gigantes tecnológicos. A hipótese de uma feudalização do capitalismo, que ele desenvolve nesta entrevista, serve para detalhar esse repertório reacionário, mas também para propor novas formas de intervenção pública e repensar o papel do Estado nesse campo.
Lendo seu livro, a primeira coisa que se torna evidente é o paradoxo temporal em que nos encontramos. Ou seja, as discussões intelectuais tendem a caracterizar o tempo presente entre o aceleracionismo e a hipermodernização, mas você sustenta que devemos olhar para as tendências feudalizantes da acumulação. Como chegamos a esse ponto?
Uma das grandes lições do século XX é que a história não tem um significado determinado, nem no nível teleológico nem nos seus ritmos. Há o que o filósofo francês Daniel Bensaïd chamou de discordância dos tempos 2 : diferentes temporalidades com diferentes lógicas. Por outro lado, a segunda questão que é importante mencionar é que o que o capitalismo certamente produz é uma maior socialização objetiva do trabalho e, em última instância, as condições para que a humanidade progrida em direção a uma maior capacidade de controle de seu destino coletivo. Sim, o capitalismo produz isso. Mas o capitalismo também gera tendências reacionárias e ambas podem coexistir. De fato, há dimensões de socialização que são progressivas e, ao mesmo tempo, outras dimensões que são mais reacionárias.
A tese que defendo no livro pretende romper com essa visão irônica que se difundiu nos anos 1990, como se fosse de direita, que dizia: “Voilà , caminhamos para um novo capitalismo: uma nova economia regenerada, com muita competição, muita criatividade”. Mas, no final das contas, o que temos são supermonopólios hiperpredatórios. Mas também era um discurso que se encontrava em certos setores da esquerda, especialmente na corrente aceleracionista, próxima de Toni Negri, que era muito otimista quanto à ideia de que o general intellect que emergiria de tudo isso seria a base de uma democracia radical que já estava ali. E isso também não aconteceu… essa é a questão. De qualquer forma, não sou o primeiro a fazer essa analogia entre feudalismo e capitalismo, nem a apontar as tendências feudais que existem dentro do capitalismo.
Se a crescente acumulação de poder por setores técnicos dentro da estrutura empresarial também foi trabalhada por John K. Galbraith na década de 1960, em sua análise da formação de uma tecnoestrutura empresarial, o que você descreve é uma dinâmica generalizada fora do circuito empresarial?
Absolutamente. Mas se formos específicos sobre a questão do feudalismo, Karl Marx já retomou Charles Fourier e falou de feudalismo industrial para se referir às grandes concentrações financeiras que eliminavam a concorrência e organizavam os diferentes ramos da indústria de uma maneira altamente monopolista. Em particular, Marx tinha em mente o desenvolvimento do crédito sob o regime de Napoleão III na França, com os irmãos [Émile e Isaac] Pereire. No campo da filosofia política, temos Jürgen Habermas, que falou da refeudalização da esfera pública, ou seja, a falta de autonomia dos agentes impede a sustentação de uma conversa pública autêntica, que é, em última análise, onde emerge um processo deliberativo substancialmente rico. Segundo Habermas, esse afastamento levou à ausência de uma esfera pública, à sua atrofia, o que resultou na refeudalização 3 . Na década de 1990, também foram realizados estudos sobre o recuo pós-soviético em direção às formas feudais. Mais recentemente, no campo digital, tem-se trabalhado de forma semelhante à de Habermas em referência à existência de um feudalismo digital.
Então, há várias ideias que vão nessa direção. Penso que o que há de original no meu trabalho é partir dessa abordagem, mas insistir na estrutura de custos e no tipo de estratégia econômica associada, bem como no que isso implica nas relações de produção. Então poderíamos dizer que no meu trabalho há um tratamento da economia política hardcore, presente em particular a partir da segunda parte do livro, e isso é algo único em comparação com outros estudos, que tendem a ser bastante alusivos ou focados no campo da ciência política.
Qual seria a especificidade que esse ângulo de análise proporciona?
Para ser mais preciso, o feudalismo não é um retorno às formas individualizadas de produção. Afinal, o feudalismo certamente implica a dependência de servos, mas também pressupõe a existência de camponeses autônomos e independentes, trabalhando com seus próprios meios de produção, suas próprias ferramentas, etc. Não é disso que estou falando. No que me diz respeito, o que estou descrevendo aqui é uma forma extrema de socialização do trabalho, mas que assume uma característica particular: a monopolização do que chamo de gleba digital. O paralelo com o sistema feudal surge quando vemos que a lógica da produção é substituída pela da predação. E se nos tempos feudais isso estava estritamente ligado ao controle da terra, hoje se trata de monopolizar o conhecimento.
Em termos gerais, isso inclui os dados, os algoritmos, a infraestrutura necessária para operar (incluindo elementos físicos como data centers, cabos, etc.) e as habilidades necessárias para organizar tudo isso. Então é uma espécie de monopolização dessas ferramentas, que não são meios de produção no sentido tradicional, mas meios de coordenação. E toda coordenação social, seja nas relações privadas entre indivíduos, nas empresas produtivas ou mesmo nos Estados, depende do acesso a recursos extremamente concentrados.
Sua concentração é explicada por razões muito simples. Primeiro, a produção desses recursos exige economias de escala extraordinárias, que assumem duas formas. A primeira é que as fontes originais de dados – ou seja, os primeiros pontos de coleta – são extremamente raras. Já transformamos quase tudo no mundo que poderia ser transformado em dados, e agora obter novos dados significa principalmente encontrar dados de alta qualidade. Portanto, aqueles que conseguiram capturar esses pontos de acesso a dados posicionaram-se como um monopólio que pode ser comparado, de forma tradicional, à concentração de terras. Em segundo lugar, há uma dinâmica de custos inerente ao mundo da informação. Isso significa que, uma vez criado um banco de dados, algoritmo ou serviço digital, os custos operacionais diminuem continuamente. O custo marginal é praticamente zero. E, claro, aqueles que estão em primeiro lugar – os chamados hiperescaladores – podem se avançar extremamente rápido.
A combinação desses dois elementos – uma lógica rentista associada à terra e, ao mesmo tempo, uma lógica industrial radicalizada – se conjuga nessas novas ferramentas, e isso gera uma tendência à monopolização extremamente forte. Essa monopolização extrema se traduz na existência de um pequeno grupo de agentes digitais que poderíamos chamar deknowledge agents [agentes do metaconhecimento], que capturam diretamente a mais-valia e se tornam indispensáveis, e por meio dessa centralização adquirem, sem dúvida, um papel econômico muito importante, mas fundamentalmente político. Por que um papel político? Porque organizar conhecimento e coordenação não é a mesma coisa que vender meias; trata-se de algo vital que constitui uma comunidade.
Outro dos paradoxos que você aborda é o fato de que essa acumulação monopolista da estrutura e do conhecimento digital contradiz fortemente as promessas feitas pelo Vale do Silício desde sua criação, mas também os dois mitos fundamentais na articulação da narrativa neoliberal. Nesse sentido, o que o momento atual nos diz sobre as ideias que sustentam que o melhor meio de coordenação é por meio do mercado e que a propriedade privada é a melhor maneira de garantir a liberdade?
De fato, o momento em que a narrativa do Vale do Silício se tornou o discurso econômico dominante foi no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Antes disso, havia um discurso sobre a “nova economia”, mas era mais uma observação das mudanças em andamento do que uma doutrina econômica consolidada. No entanto, esse momento do final da década de 1990 é bastante paradoxal porque coincide com as primeiras grandes crises financeiras nos países do Sul. Já tivemos a crise asiática na década de 1980, a crise mexicana em 1994, a crise asiática novamente em 1997 e a crise russa em 1998. Tudo isso começa a abalar seriamente o que deveria ser o grande e novíssimo projeto do neoliberalismo: a abertura completa dos mercados de capitais.
Ao mesmo tempo, a transição pós-socialista ocorria nos países do Leste Europeu, o que se revelou um fracasso monumental em termos de impacto socioeconômico. Vale lembrar que a Rússia, por exemplo, reduziu seu PIB pela metade nesse período. As vantagens aparentes da abertura do mercado geralmente se traduziam em uma espécie de selvageria brutal que empobrecia quase todo mundo. Portanto, a ideia de que simplesmente liberalizar e privatizar seria suficiente está começando a perder credibilidade.
É nesse contexto que a narrativa do Vale do Silício é apresentada como novidade. O que eles nos dizem é: “Ok, não se trata apenas de abrir o mercado, mas de criar condições necessárias para a inovação. As novas empresas não são como as de antes”. Assim, a regeneração do tecido produtivo das startups, que eventualmente se transformam em grandes empresas, fecharia o círculo virtuoso de um processo muito schumpeteriano de destruição criativa. É justamente nesse ponto que se constrói a doutrina do Vale do Silício, ou o que poderíamos chamar de “consenso do Vale do Silício”. Que é basicamente o mesmo que o neoliberalismo, mas com uma adição fundamental: o reforço da propriedade intelectual para proteger os inovadores. A ideia é simples: para que a inovação ocorra, é preciso proteger a renda de quem a desenvolve. O que isto significa? Primeiro, fortalecer a renda associada à propriedade intelectual. Em segundo lugar, reduzir os impostos sobre o capital, pois considera-se que isso recompensa fundamentalmente a inovação e o empreendedorismo. Então temos como resultado uma história schumpeteriana, inovadora, que se sobrepõe ao discurso neoliberal clássico e cuja melhor ilustração são as startup, que é algo extremamente cool. Você começa com amigos, tem uma boa ideia e talvez fique muito rico ou até mesmo mude o mundo. É, em essência, o sonho.
Pura diversão na garagem de casa…
A realidade é que a maioria das startups, obviamente, fracassam. Existem pouquíssimas histórias de sucesso e, quando startups têm sucesso transformam-se em grandes e velhas empresas extremamente agressivas.
O termo “inovação” está constantemente presente em seus textos porque parece estar localizado no cerne da narrativa do Vale do Silício. Nesse sentido, correntes libertárias parecem usar a tentativa de vários governos latino-americanos de ampliar a presença do Estado na economia para sugerir que o planejamento estatal não funciona e é contrário a toda inovação. Algo semelhante à queda da União Soviética, decisiva para consolidar a racionalidade do Consenso de Washington. É possível pensar em inovação e planejamento de forma não excludente?
Essa é uma ótima pergunta. Na verdade, é muitas vezes o que se opõe à ideia de planejamento. A resposta pode ser bem simples: o planejamento não é exclusivo da URSS. Planejamento também é China. Hoje em dia na China, há muito planejamento e, do ponto de vista da inovação, é o lugar mais dinâmico depois dos Estados Unidos. Ainda não estão no limiar, mas…
É, no entanto, um exemplo que pode causar receios ou objeções devido à lógica autoritária que existe no país…
Bom, esse é outro problema que não tem nada a ver com inovação, mas com ditadura. Podemos pegar outro exemplo: a Coreia do Sul. Na época, era uma ditadura, mas a economia era profundamente planejada. Era uma ditadura pró-capitalista. De fato, a França do pós-guerra também teve um planejamento significativo. Não era uma superdemocracia, mas também não era uma ditadura. Outro exemplo: a social-democracia sueca.
Quando falamos de planejamento, é um conceito muito vago. Do que exatamente estamos falando? No fundo, estamos falando da socialização do investimento e é isso que é decisivo. E a socialização do investimento existe mesmo dentro do capitalismo, em graus variados. Em sua forma mínima, ele é regulamentado para proibir certos tipos de investimento. No seu extremo, encontramos formas muito fortes de socialização de investimentos, como na França do pós-guerra ou na Coreia do Sul. Isso implicava alta tributação sobre os lucros e, ao mesmo tempo, controle rigoroso do crédito, indicando quais tipos de projetos eram permitidos e quais não.
Essas são formas muito avançadas de planejamento, mas isso não significa que o mercado desapareça completamente ou que a inovação dos produtores seja eliminada. O objetivo é estabelecer setores prioritários para o desenvolvimento, mas a forma como os investimentos são feitos nesses setores fica a cargo dos produtores. Em outras palavras, o planejador pode dizer: “Construam uma linha de produção para roupas esportivas de alta qualidade”. Mas o tipo específico de têxteis, as máquinas utilizadas ou a organização do trabalho são decisões tomadas pelos produtores, que geralmente são empreendedores, embora também possam ser cooperativas ou empresas locais.
Na minha opinião, a chave está aqui: a inovação efetivamente requer uma forma de indeterminação e é necessário deixar espaço para essa flexibilidade. Mas essa indeterminação não é de forma alguma incompatível com formas de socialização que definem a direção onde se deve avançar. De fato, o planejamento de inovação existiu e continua existindo em uma escala muito ampla. No setor público, isso é evidente. Tomemos o caso da França: os TGVs [trens de alta velocidade] são o resultado de grandes programas públicos. Há muitos exemplos assim, alguns bem-sucedidos, outros nem tanto, mas muitos deles funcionaram muito bem. Se tomarmos o caso dos Estados Unidos, como mostra o trabalho de Mariana Mazzucato 4 , toda a pesquisa fundamental por trás dos produtos tecnológicos do Vale do Silício foi financiada pelo Departamento de Defesa.
Isso significa que houve uma direção quando se decidiu trabalhar em mecanismos de geolocalização, veículos autônomos e outros avanços. Então, o passo final para a implementação foi dado pelos empreendedores. O que eu quero enfatizar é que, claro, há gênio e criatividade humana, mas eles não estão necessariamente ligados ao mercado. É preciso haver espaço para flexibilidade. O mercado, no campo dos bens de consumo, ajuda a selecionar o melhor modo de produção, mas grande parte do esforço inovador ocorre fora do mercado, realizado por cientistas ou mesmo burocratas, em menor grau, que decidem em que direção seguir. No caso dos EUA, fala-se até de um “Estado desenvolvedor secreto”, porque não existe apenas a DARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa), mas também programas de saúde e outros projetos locais, embora alguns sejam redundantes entre si. Em resumo, para encerrar este tópico sem entrar em muitos detalhes, é verdade que inovação requer flexibilidade e indeterminação. Mas a ideia de que o mercado é o único impulsionador da inovação é em grande parte falsa. Isso é só na fase final de comercialização, mas tudo isso é apoiado por estruturas burocráticas que sustentam a inovação, mesmo em um país como os Estados Unidos.
Muitos podem dizer que a competição é a melhor maneira de evitar a concentração de poder das Big Techs. O que você acha?
Com a eleição de Donald Trump, parece que já não iremos mais nessa direção, mas antes de ele chegar ao poder havia um argumento bastante forte, especialmente nos EUA sob a liderança da presidente da Comissão Federal de Comércio, Lina Khan 5 e, até certo ponto, na Europa, que assumiu uma postura muito dura contra Big Techs. É bastante correto que os reguladores estejam preocupados com o impacto das Big Tech, dizendo: “cuidado, isso é perigoso para o futuro das nossas economias porque criará desigualdades extraordinárias, mas também representa desafios políticos porque seu poder ameaça a autonomia das instituições públicas ”. Esta análise é completamente correta e necessária, temos razão em nos preocupar com isso.
No entanto, a resposta que propõe enfrentá-las por meio do desmantelamento das Big Techs e promovendo uma maior concorrência, parece-me insuficiente, ou poderíamos dizer, subótima. Claro, pode ser melhor ter muitas pequenas empresas privadas do que um grande monopólio privado sobre o qual não temos controle. Mas o ideal seria ter um grande monopólio sob controle público ou pelo menos fortemente regulamentado.
Porque? Simplesmente porque existem lógicas naturais de monopólio que mencionei antes. Se uma empresa como o Google funciona tão bem, é justamente graças à fertilização cruzada entre seus diferentes serviços. O que acontece no Gmail influencia o que acontece no Google Maps, e vice-versa. Então a grande questão é como o Google ganha dinheiro… por meio de publicidade personalizada. Mas ele faz isso distribuindo anúncios por todo o seu ecossistema de serviços, mantendo os custos relativamente baixos. Se fragmentarmos esses serviços, isso significaria ter vários provedores que teriam que buscar sua remuneração em cada um desses serviços. O resultado? Mais comercialização de cada serviço. É realmente desejável? Eu não acho. É verdade que ao desmembrar o Google poderíamos reduzir seu poder concentrado e isso seria positivo, claro. Mas, por outro lado, teríamos serviços de menor qualidade e mais comercializados e isso, do meu ponto de vista, não seria um resultado positivo. Não há razão para impor algo assim a nós mesmos. Acho isso importante. Talvez eu possa dar um exemplo para ilustrar isso melhor.
Sim, vá em frente…
Agora na Europa, ao comprar um celular Android, você tem a possibilidade de escolher entre diferentes mecanismos de busca. Ao configurar seu dispositivo pela primeira vez, ele pergunta se você prefere Google, Bing ou outros, dependendo do país. Mas a questão importante é: como os mecanismos de busca entram nessa seleta lista? Por trás das opções que seu telefone oferece, há um sistema de leilão: as empresas devem pagar e aquelas que oferecem mais dinheiro ficam nos quatro primeiros lugares que são mostrados em cada país.
O problema é que os melhores mecanismos de busca, aqueles que mais respeitam a privacidade do usuário, são aqueles com menor capacidade de gerar receita. Portanto, eles têm menos chances de competir nesses leilões. É o que explica o buscador DuckDuckGo: eles dizem que não têm chance de ganhar o leilão porque, justamente por exercerem uma prática ética, a renda que geram é mínima. Isso não significa que eles não sejam úteis para os usuários, mas eles não podem se financiar por meio de publicidade na mesma medida que os outros. Aqui fica evidente a clara contradição entre valor de uso e valor de troca, uma vez que a mercantilização dos serviços digitais, associada à sua extrema fragmentação, acaba destruindo o valor de uso. Penso que esta é a contradição fundamental.
Vamos agora dar um grande salto: acontece que o reino digital é, em essência, uma objetificação do social. Em parte, mas é basicamente isso. Retomando os termos de Frédéric Lordon, poderíamos chamar de “transcendência imanente” 6 . O que é digital, realmente? Não são seus dados ou os meus separadamente, mas a inter-relação entre os nossos dados. E isso é o social! Uma substância social. E aqueles que controlam essa substância social conseguem se apropriar da renda que ela gera. Agora, se fragmentarmos essa substância e colocarmos essas partes no mercado, estaremos agindo de forma absurda porque essas conexões já existiam naturalmente. É por isso que sou a favor de opções públicas e regulamentações fortes.
Aí podemos entrar em outra discussão, por exemplo: até que ponto os dados devem ser acessíveis e para quem? Acredito que deveriam ser acessíveis, mas regulamentados. Algo semelhante acontece com os arquivos nacionais: é possível acessá-lo se você faz uma solicitação a um Comissão e pode usá-los para pesquisa, projetos públicos ou, inclusive, empresariais, sob licenças específicas. Construir dados como um bem comum não significa torná-los irrestritamente disponíveis no mercado, mas sim tratá-los como um bem comum. Outra abordagem promove a discussão sobre a responsabilidade dos algoritmos. Algoritmos criam efeitos reais: de engarrafamentos à depressão entre os adolescentes, passando por diferentes formas de contaminação. Se formos capazes de demonstrar a relação entre o uso do algoritmo e esses efeitos, a responsabilidade criminal deve recair sobre aqueles que os desenvolveram ou implementaram. Isso não significa que temos que entender como cada algoritmo funciona, mas sim responsabilizar legalmente aqueles que os implementam pelos resultados que geram. Um terceiro mecanismo seria o modelo golden share (ação de ouro), muito utilizado na China. Esse mecanismo implica que o Estado tenha poder de veto sobre os conselhos de administração de determinadas empresas. Isso permite que as autoridades antecipem os movimentos de inovação tecnológica, em vez de sempre correr atrás deles tentando regulamentar depois que os efeitos já estão presentes. Para a América Latina ou mesmo para países como a França, esse sistema não será de grande utilidade, mas nos Estados Unidos é um debate que pode ser muito importante. Por fim, outra opção é construir alternativas públicas. Hoje, um mecanismo de busca público pode ser uma resposta viável…
Algo semelhante ao que o Brasil está fazendo atualmente com o Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO).
Exatamente. O que o Brasil está fazendo é muito bom, mas mesmo para o Brasil, que é um país grande e com recursos significativos, será difícil alcançar os mais avançados nesse campo. O que sustentamos é que todos os países, exceto os Estados Unidos e, em menor grau, a China, hoje dependem do sistema digital. Portanto, todos esses países deveriam ter interesse em criar uma infraestrutura pública global mínima no campo digital.
Isso pode parecer utópico, mas acho necessário levantar a questão, mesmo que isso não pareça viável hoje. Seria algo como o que surgiu com a União Postal Universal: uma coordenação internacional no campo digital, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU); e se isso não funcionar, pode ser por meio de uma organização paralela, que pode fornecer um conjunto de serviços digitais básicos. Estamos falando de coisas como poder de computação, sistemas de alocação de endereços, mecanismos de busca — serviços que podem não ser extremamente sofisticados ou avançados, mas que oferecem uma forma de infraestrutura robusta, acessível e relativamente neutra. Algo como uma estrutura acordada entre diferentes Estados em nível internacional. Essa seria uma das condições necessárias para seguir em frente.
Nas décadas de 1950 e 1960, houve muito debate sobre a ideia de computer as public utility [o computador como serviço público] e acredito que precisamos reavivar essa discussão hoje, porque agora vemos como os monopólios privados estão cumprindo funções que deveriam ser de utilidade pública. E isso é muito perigoso, por um conjunto de razões que poderíamos detalhar, mas principalmente porque coloca em xeque a soberania dos Estados. Assim como o exemplo da América Latina é útil, o da Suíça, por exemplo, também o é. Eles percebem que dependem das Big Techs para serviços essenciais e não gostam muito disso. Ninguém quer estar nessa situação.
Parece que a resposta às grandes empresas de tecnologia está focada na via legal, com as medidas antimonopólio promovidas nos EUA e as tentativas de regulamentação pela União Europeia, mas me pergunto que outras respostas políticas podem ser formuladas, porque a união interestatal parece ser o ideal, mas muito longe das reais possibilidades no momento…
É verdade que pode parecer utópico, mas quando vemos o Brasil tomando uma iniciativa… É ótimo que o Brasil faça isso. Mas o que o Brasil deveria fazer é aproveitar essa iniciativa para propor a união de outros países. Obviamente, não será um acordo global com todos os países. Mas o que eu quero dizer é que é importante levantar a questão, o Brasil está considerando isso, na Europa alguns países estão refletindo sobre isso, a Suíça também está se fazendo a mesma pergunta.
Em algum momento essas opções devem ser fortalecidas por meio da cooperação. Se os Estados perceberem que há uma ameaça existencial à sua capacidade de autonomia política, ou seja, que sua capacidade decisória e soberania estão em jogo, em algum momento isso os fará reagir. Então, embora não esteja sendo implementado agora, é uma questão tão imediata e realista do ponto de vista da capacidade dos Estados de autonomia de ação que inevitavelmente será pleiteado.
Há uma questão que permanece latente e sem resposta: a desconexão entre a ameaça aos Estados como entidades abstratas e a ameaça aos indivíduos em um nível mais específico. Se as grandes empresas de tecnologia em sua forma atual são onipresentes em nossas vidas, apropriando-se de dados e conhecimento coletivo, como podemos politizar essa questão? Ou seja, como poderíamos construir uma “consciência de classe tecnológica” para enfrentar esse tipo de exploração?
Na minha opinião, não existe uma solução única que valha a pena. De fato, muito tem sido tentado através de software livre, plataformas alternativas, etc. E não tem problema tentar. Mas, na realidade, a maioria desses dispositivos está associada às Big Techs ou é usada por elas. Por exemplo, grande parte dos projetos de software das Big Techs são lançados na forma de software livre, para o qual a comunidade de pesquisadores, engenheiros, etc. é mobilizada. E, no final, como as empresas são donas das infraestruturas e serviços complementares, elas acabam concentrando as soluções desenvolvidas pela comunidade de software livre em seus produtos comerciais. Ou seja, eles se apropriam do trabalho realizado pela comunidade. Se tomarmos, por outro lado, os serviços digitais desenvolvidos fora do radar das Big Techs, é verdade que eles podem oferecer certas garantias em proteção de dados, mas invariavelmente também dependem de uma série de serviços produzidos pelas Big Techs. Existem pouquíssimos espaços que são completamente autônomos dessas empresas. Porque? Porque são habilidades gerais. No pior dos casos, estamos falando de cabos e infraestrutura física básica, etc.
Então, como você politiza isso no nível individual? Acredito que há várias maneiras. Isso pode me desviar um pouco do assunto, mas acho que chegamos a um ponto de ruptura na digitalização do mundo. Percorremos um longo caminho, e até as Big Techs percebem que estamos atingindo certos limites. Ou seja, mesmo que as tecnologias continuem a ser implantadas, já sabemos o que elas podem fazer. Percebemos que elas de fato cumprem certas funções, mas também não vão mudar tudo. E, por outro lado, há um sentimento de que as Big Techs são muito invasivas: há problemas de saúde pública, problemas ecológicos. Acredito que todos esses elementos nos levarão a questionar qual é realmente o lugar do mundo digital em nossas vidas, nos sistemas educacionais, nos tipos de interação, etc. Acredito que essa será uma das conversas principais. Quanto espaço damos ao mundo digital? Quais tarefas atribuímos ao mundo digital e quais decidimos fazer de forma diferente?
Por exemplo, poderíamos criar espaços livres de recursos digitais nas cidades, onde as pessoas irão interagir fora do mundo digital? Nos sistemas educacionais, definiríamos que até certa idade não há acesso ao mundo digital porque entendemos que existe um mundo além da tela? Essas são as conversas que precisamos ter sobre o lugar do mundo digital. Na minha opinião, elas são importantes, primeiro de uma perspectiva epistemológica, porque vemos que há um efeito de reificação e empobrecimento das interações devido à digitalização, mas também de uma perspectiva ecológica.
Estamos percebendo que a implantação de todas as soluções digitais possíveis é tal que não é possível sustentá-las a longo prazo. Teremos que decidir onde o uso do digital é útil e onde não é, onde é frívolo e onde é supérfluo, onde é prejudicial e onde é positivo. Ou seja, uma deliberação sobre os usos do mundo digital é absolutamente necessária. E não é tão louco quanto parece. Durante a pandemia da covid-19 na Europa, houve um acordo entre a Comissão Europeia e a Netflix para reduzir o uso de banda larga para que houvesse o suficiente para permitir o teletrabalho. Isso mostra que em algum momento houve uma decisão política sobre o uso dos recursos digitais disponíveis. A Netflix concordou (ou foi forçada a) se adaptar a essa necessidade. Esse tipo de reflexão, na minha opinião, deve ser multiplicado, tanto por questões de emancipação, democracia e saúde, quanto por questões ecológicas. E essa conversa é muito interessante porque não é só sobre tecnologia, nem é só sobre regular as Big Techs; também se trata de decidir qual papel queremos que o digital desempenhe em nossas vidas, independentemente das formas como as tecnologias são desenvolvidas ou implementadas.
Como diria Wendy Brown, trata-se de “refazer o demos” ou, mais precisamente, de uma forma de “reincorporar a economia”, seguindo Karl Polanyi?
Sim, exatamente. Há algo que não mencionei, mas se entendermos que o digital é uma forma de coordenação – uma coordenação algorítmica, como Katharina Pistor menciona 7 – é importante reconhecer que essa coordenação lógica, algorítmica, também tem efeitos de reificação semelhantes aos da burocracia ou do mercado. Então temos que decidir quando, onde e como vamos pará-lo.
Nesse sentido, se temos a possibilidade de socializar as decisões do Estado, em maior ou menor grau, como podemos traduzir essa participação para a esfera privada quando se trata das Big Techs? Principalmente neste momento em que, como ele explica no livro, a concentração de poder nessas empresas está no mito da propriedade privada.
O que eu gostaria é que as Big Techs padronizadas fossem monopólios públicos.
Uma espécie de nacionalização?
Basicamente, estamos falando de infraestrutura geral, como serviços postais ou trens. É uma forma de coordenação social generalizada. O mecanismo de busca, hoje, é como um serviço básico. Google Maps, todo mundo precisa dele. Quero dizer, realmente existe uma lógica de sistemas universais. Isso não significa que não haja espaço para iniciativas privadas, cooperativas ou similares, mas grandes coisas que são padronizadas devem ser gerenciadas sob controle público. Obviamente o problema é que essas são empresas que estão sediadas em um país, portanto, há uma lógica que é muito difícil de gerenciar. Você não pode dizer: “Estou nacionalizando o Google na França”, isso não faz sentido algum. Há uma dificuldade específica aí. Podemos imaginar, por exemplo – e esta também é uma das soluções possíveis – que nas negociações entre as Big Techs e sua autorização para operar em diferentes países sejam estabelecidas condições nesse sentido. Ou seja, uma licença é basicamente concedida ao Google, Amazon, etc., e nessa licença os Estados reservam certos direitos de supervisão sobre certas questões. Não se trata de nacionalização, mas há maneiras de conter isso de forma bastante significativa.
Parece que com a eleição de Trump o cenário é bastante sombrio, principalmente se levarmos em conta que Elon Musk esteve muito presente na campanha política e agora faz parte do governo Trump. Será este um período de ouro de acumulação para as Big Techs?
Sim, acho que será assim. Os apoiadores de Trump vieram do lado das Big Techs mais agressivas, mais libertárias, mais antirregulamentação, etc. Então, nós realmente temos esse tipo de aliança entre a extrema direita e visões muito libertárias e também, poderíamos dizer, com todo esse movimento transumanista, uma espécie de hubris, completamente delirante, em torno do solucionismo tecnológico, em torno de empreendedores como esses grandes cavalheiros. Então aqui estamos realmente em um delírio absoluto que está dando um passo além. Obviamente, isso não vai de forma alguma seguir na direção desejada e está claro que a vitória de Trump reforça essas tendências. Não quero entrar em muitos detalhes porque não é minha área. Mas acho que, de fato, existem, associadas ao diálogo digital, formas de politização que a extrema direita entendeu melhor do que nós.
Uma questão que esqueci, mas que acho importante antes de terminar, é sobre a crise do sistema atual. Em seu livro, você menciona duas lógicas que acabam provocando e acelerando a crise do modelo feudal: a lógica rentista das elites, mas também o gasto ostentoso que elas fazem dessas rendas. Neste momento, quando falamos de tecnofeudalismo, quais são os sinais que podem nos alertar sobre um colapso do sistema?
Bem, a tendência geral não é a de um capitalismo particularmente estável, que funcione bem, que cresça de forma sustentável, etc. Há um tipo de instabilidade persistente. Isso não significa que estamos na década de 1930… é algo ambivalente. Mas há tendências de crise que são evidentes. Então, uma das minhas hipóteses é que o tipo de investimento que é feito é importante, mas sua lógica principal não é aumentar a produtividade. Em vez disso, sua lógica é amplamente orientada para a geração de renda, ou seja, uma lógica de depredação. E a lógica de depredação é um jogo de perde-perde. Isso leva a tensões extremamente fortes.
Então, quando falo de uma crise associada ao feudalismo, quero dizer que essa lógica de depredação pode gerar novos antagonismos que podem ir além dos clássicos conflitos de classe. É por isso que a questão dos Estados é tão importante. Também é possível imaginar que uma parte do capital que não está diretamente ligada a tudo isso esteja em uma posição subordinada, de tensão. Novas crises podem surgir aí. Por outro lado, é igualmente importante notar que, da minha perspectiva, o setor digital não cria muito valor. O setor digital, em essência, apropria-se de valor. Nesse sentido, minha abordagem continua bastante clássica do ponto de vista marxista: a produção de valor está ligada ao trabalho e ao trabalhador. Agora, a forma como a mais-valia é distribuída é um jogo entre capitalistas, no qual os gigantes tecnológicos ficam com grande parte dos benefícios. Em outras palavras, você pode ser explorado em uma pequena ou média empresa que produz máquinas de alta precisão; nesse caso, seu empregador ficará com apenas uma pequena parte dos ganhos de capital que você gerar, pois ele terá que pagar por muitos serviços digitais e outros benefícios para empresas maiores. Assim, parte desse valor excedente será apropriado mais acima na cadeia. É crucial entender isso. Portanto, há contradições que estão associadas tanto à produção da mais-valia em si quanto à sua forma de distribuição. Não é nada antinômico.
Voltando à questão da crise, o primeiro elemento é que essa lógica de depredação leva a uma lógica de estagnação, um jogo de perde-perde que exacerba as tensões políticas. Esse é um primeiro elemento. O segundo elemento é mais político: há uma espécie de banalidade na ideia de as Big Techs assumirem a liderança política da humanidade. Elas gostariam de fazer isso. No entanto, elas encontram resistência, inclusive por parte dos Estados. Um exemplo disso foi quando o Facebook quis lançar sua Libra, seu projeto de moeda. Se essa moeda existisse, ela seria a mais usada no mundo. Agora imagine o poder político que isso implicaria, mas os bancos centrais disseram não. O que quero deixar claro é que os Estados ainda têm capacidade de decidir. Outro exemplo: os cabos submarinos, que hoje pertencem em sua maioria às Big Techs, poderiam ser declarados infraestrutura crítica para o funcionamento das sociedades. Os Estados poderiam decidir que sejam públicos, como eram no passado. Existem maneiras mais ou menos sofisticadas de elaborar uma regulamentação. Mais uma vez, o que aconteceu na China com as golden shares foi um caso em que o governo demitiu os líderes do setor e retomou o controle político. Portanto, embora a tendência ao tecnofeudalismo seja latente, isso não significa que ela se materializará plenamente. Os atores políticos, pelo menos nos grandes Estados, ainda têm meios para retomar o controle.