Para compreender a galáxia transhumanista
Nascida na contracultura dos anos 1960, teoria involuiu quando se ligou à busca de “outras vidas” para bilionários. Mas uma de suas noções perdura: a tecnologia modificará o humano e a sociedade – cabe-nos determinar o rumo desta mudança
Publicado 05/05/2025 às 20:10 - Atualizado 05/05/2025 às 20:26

Por Flávia Costa, no Nueva Sociedad | Tradução: Roney Rodrigues
Vejamos a série Stranger Things, uma produção para crianças e adultos que mostra em detalhes esse revisionismo de dupla camada: a ação se passa nos anos 1980 na cidade hipotética de Hawkins, no Meio-Oeste dos EUA. A protagonista, a adolescente conhecida como Eleven (“Onze” em inglês), que irrompe e perturba o bucolismo manifesto da cidade, é um segredo militar, um artefato biológico de altíssima segurança, criado no calor daquelas épocas de experimentação que combinavam Guerra Fria, ambição tecnocientífica, psicodelia, amor por máquinas, corrida espacial, xamanismo new age, culto à academia, anticomunismo de Estado, orientalismo yogue, espionagem sentimental e viagens interdimensionais. Utopias distópicas, “distoutopias” de quadrinhos, entre fantasiosas e burlescas, mas cheias de significado, que coexistem sem distância e sem conflito com sua própria paródia, e que constituem um modo tipicamente norte-americano de tecnocatologia. Em suas primeiras formulações nos anos 1960, o transhumanismo foi o esboço conceitual, oculto, mas não irrelevante, dessa matriz cultural e dessa estrutura de sentimento.
No entanto, o termo não nasceu nos EUA nem se limita a essa forma mentis. Diferentes fontes afirmam que o primeiro a usar o termo “transhumanismo” foi o biólogo internacionalista britânico Julian Huxley, primeiro diretor da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e irmão de Aldous, autor de Admirável Mundo Novo. Ele o usou em 1957 em seu livro Novos Odres para Vinho Novo, para defender a possibilidade de a espécie humana poder, “se assim desejar, transcender a si mesma, não apenas esporadicamente, um indivíduo agora, outro depois, mas como um todo, como humanidade. Precisamos de um nome para essa nova fé. Talvez ‘transhumanismo’ sirva bem: um ser humano que continua humano, mas se supera ao realizar novas possibilidades de e para sua natureza humana”[1]. Nesta primeira versão, transhumanismo indica evolução por meios tecnológicos e implica uma projeção para a humanidade como grande família que, desde então, vai e vem como uma onda que alternadamente apaga, às vezes o homem, às vezes a comunidade humana, “um rosto de areia na beira do mar”.
O termo reapareceu em Hacia una psicología del ser (1968), do psicólogo transpessoal Abraham Maslow, e depois nas aulas sobre Novos conceitos do humano do futurista de origem iraniana Fereidoun M. Esfandiary, que mais tarde mudou oficialmente seu nome para FM-2030, na New School for Social Research de Nova York. Para Esfandiary, “transumano” significa “humano em transição” rumo a uma nova era evolutiva na qual, graças a tecnologias de otimização, seremos mais livres, sofreremos menos, seremos mais felizes, inteligentes, capazes de controlar nossas emoções e, por fim — mas não menos importante —, imortais.
Hoje, noções como “transhumanismo”, “pós-humanismo” e até “metahumanismo”, como propôs recentemente o alemão Stefan Sorgner, designam um conjunto de perspectivas díspares que compartilham a ideia de que a noção tradicional do humano precisa ser redefinida e, portanto, também é necessário reposicionar o papel do velho humanismo literário, filosófico e talvez social e político. Ao mesmo tempo, essas perspectivas disputam o sentido dessas redefinições.
“As especulações sobre o destino do corpo e os debates sobre as promessas e ameaças do pós-humanismo ressoam por toda a cibercultura”, escreveu em 1995 o crítico norte-americano Mark Dery em seu magnífico Velocidad de escape. La cibercultura en el final del siglo, o melhor tratado de crítica cultural sobre as diferentes tribos techno já escrito até então[2]. Pois bem: aquilo que nos anos 90 surgia como uma zona cinzenta de instabilidade lexical — onde pós-humanismo e transhumanismo mal se distinguiam, ou o faziam com dificuldade, em um clima milenarista que impôs a semântica dos pós: pós-história, pós-modernidade, pós-fordismo, pós-democracia — hoje se reconfigurou em corpos teóricos compactos (“tecnodiversidades” dentro do próprio Ocidente), com uma literatura profusa, na qual cada termo designa posições distintas e, por vezes, inconciliáveis: o pós-humanismo crítico, os estudos críticos animais, as humanidades ambientais e os novos materialismos, no caso do pós-humanismo; e o transhumanismo libertário, o transhumanismo democrático, o transhumanismo mórmon, o extropianismo e os partidários da Singularidade, no caso do transhumanismo — para mencionar as correntes principais.
O transhumanismo e o pós-humanismo começaram a divergir precisamente nos anos 1990, devido a diferenças em suas abordagens ontológicas, éticas e políticas. Embora compartilhem um interesse comum pelo futuro da humanidade em um mundo-ambiente tecnonatural, seus caminhos se separaram. O transhumanismo passou a se concentrar no aprimoramento tecnológico do ser humano e na superação de suas limitações biológicas, sem importar como, para quem e a que custos esse objetivo poderia ser alcançado, assumindo — não sem resistências internas — o modelo de clube privado. O pós-humanismo, por sua vez, questiona as noções tradicionais do humano (em especial a perspectiva androcêntrica, eurocêntrica, racista e colonial) e propõe uma visão mais crítica, ecológica, referente a todo o continuum do vivente, social e culturalmente situada, e em coevolução com cognições não conscientes — sejam humanas, animais, vegetais ou maquínicas.
Passageiros em trânsito
Por transhumanismo entendemos hoje um movimento heterogêneo que busca melhorar e transcender as limitações biológicas do corpo humano — sua fragilidade, sua tendência a envelhecer, adoecer, perder o rumo, sua condição mortal — por meio do uso de tecnologias de aprimoramento (enhancement technologies) e intensificação que vão além do exclusivamente terapêutico.
O objetivo explícito de todo transhumanismo conhecido é alcançar uma condição “pós-humana” (e este termo, usado precocemente por autores como Max More e Nick Bostrom, passou por um processo de desambiguação nas últimas duas décadas) na qual os seres humanos tenham derrotado as marcas do tempo na própria carne, o sofrimento e a morte. Este movimento, cuja principal linha — fundada pelo próprio Bostrom — é hoje conhecida como Humanity+ (h+, Humanidade Aumentada), concentra-se no progresso tecnológico como ferramenta para superar literalmente a “condição humana”.
Foi a filósofa Hannah Arendt quem afirmou que este estar condicionado do vivente humano, esta existência condicionada que é sua essência, implica três limitações fundamentais: o fato de sermos mortais (“Os homens são ‘os mortais’, os únicos mortais que existem, porque os animais existem apenas como membros de sua espécie e não como indivíduos”, escreve Arendt em Entre o Passado e o Futuro e, com mínimas diferenças, em A Condição Humana, alheia ao incômodo que esta frase poderia suscitar em alguns leitores do século XXI[3]); não poder estar em dois lugares simultaneamente; e, finalmente, não poder retroceder no tempo. Esses três condicionamentos fundamentais, que coincidem com o fato de sermos um corpo, são os que o transhumanismo buscará transpor. Resume-se numa fórmula cunhada por Esfandiary e depois retomada, entre outros, pelo artista Stelios Arcadiou, mais conhecido como Stelarc: “O corpo é um dispositivo obsoleto”.
Os transhumanistas não apenas acreditam na possibilidade de aperfeiçoamento por meio das tecnologias — informática, robótica, biologia molecular, química e farmacologia, ciências cognitivas, engenharia genética, nanotecnologia, neurocirurgia —, mas veem a natureza humana como um trabalho em progresso, um começo inacabado que podemos aprender a remodelar de formas desejáveis. A humanidade que conhecemos hoje não precisa ser o ponto final da evolução. Os transhumanistas esperam que, mediante um uso responsável da ciência, da tecnologia e de outros meios racionais, possamos finalmente nos tornar pós-humanos, seres com capacidades muito maiores que as dos humanos atuais.[4]
Sempre nas palavras do filósofo sueco e professor em Oxford Nick Bostrom, acrescentam:
“Assim como usamos meios racionais para melhorar a condição humana e o mundo exterior, também podemos usar esses meios para nos aprimorar, o organismo humano. Ao fazê-lo, não nos limitamos aos métodos humanísticos tradicionais, como educação e desenvolvimento cultural. Podemos também usar meios tecnológicos que, com o tempo, nos permitirão ir além do que alguns considerariam ‘humano'”.[5]
Após o choque da Segunda Guerra Mundial, a contracultura emergente começou a defender curas alternativas e tecnologias apropriadas e vislumbrando o potencial revolucionário dos psicofármacos. Entre as possibilidades estão máquinas superinteligentes e o controle dos centros de prazer através de novas drogas que prometem permitir às pessoas reduzir drasticamente a incidência de emoções negativas em suas vidas, sem efeitos colaterais ou risco de dependência. Junto com um revival das medicinas alternativas, surgiu uma subcultura antienvelhecimento, que acreditava que vitaminas, reposição hormonal ou suspensão criogênica ofereciam melhorias radicais na longevidade. Os futuristas passaram a debater seriamente ramificações de tendências antes restritas à ficção científica, como engenharia genética, colonização do espaço exterior, expansão radical da expectativa de vida, clonagem, tecnosexualidade, redes neurais e engenharia neuromórfica.
Já no final dos anos 1960, Esfandiary/FM-2030 defendia a transcendência tanto do capitalismo quanto do socialismo através da automação do trabalho e da expansão do ócio. Em vez do autoritarismo ou da democracia representativa, argumentou a favor de uma governança mundial por meio de democracia eletrônica direta e propôs uma expansão generalizada das liberdades humanas. Ele não se referia apenas a liberdades psicológicas, econômicas ou políticas: “estamos tão focados nessas condições que não consideramos a liberdade humana mais básica – escreveu em seu livro Up Wingers, de 1973. Somos como o passageiro que exige veementemente uma cabine melhor ou a liberdade de passear no convés da primeira classe… em um navio que está afundando”[6]. O navio que afunda é, como já adivinharam, a própria existência, e em particular, o corpo. Para Esfandiary, o corpo é uma “camisa de força biológica” da qual precisamos nos livrar o quanto antes. O organismo humano é estruturalmente um robô, afirmava. Um mau robô. Rígido, dominado por sua biologia e por seu ambiente. E o pior: não é possível controlá-lo. “Tente dizer a ele para não respirar por alguns minutos. Você não manipula seu corpo: ele te manipula”, escreveu Esfandiary, que propunha redesenhá-lo completamente. Desanimalizá-lo. “Exceto o cérebro – dizia – todo o resto é primitivo e está se tornando supérfluo”[7].
Extropianos
Esfandiary/FM-2030 integra, junto com o casal formado pelo filósofo inglês Max More (originalmente Max O’Connor) e a artista nova-iorquina Natasha Vita-More, a linha transhumanista conhecida como extropianismo, onde o neologismo “extropia” alude a uma força vitalista capaz de contrabalançar a leviatânica lei da entropia. Os extropianos estavam especialmente entusiasmados com a possibilidade de que a nanotecnologia permitisse estender indefinidamente a vida e com transferir a consciência para corpos-máquina. É a fantasia primeiro cibernética de Norbert Wiener, em Cibernética e Sociedade (1958), e depois transhumanista de Hans Moravec, em Mind Children (1988), de que em breve seremos capazes de fazer um “download” de nossa consciência em computadores e deixar nossos corpos para trás.
Esta linha interna, a mais experimental em termos de estilos de vida, baseia-se em sete princípios, redigidos por Max More em 1998: progresso indefinido, autotransformação por todos os meios disponíveis, otimismo prático (ou seja, evitar todo princípio precaucionário), tecnologias inteligentes, sociedade aberta, autodireção e pensamento racional[8]. Entre os autores recomendados na última revisão do documento disponível aparecem Ayn Rand e David Friedman: ela, uma autora ciclicamente redescoberta em cada onda da moda anarcocapitalista retrô; ele, filho do Prêmio Nobel Milton Friedman e pai de Patri Friedman, o idealizador de um projeto libertário de cidades flutuantes em mar aberto, ou seasteading, cuja empresa tem como principal investidor o empresário tecnolibertário Peter Thiel, fundador do PayPal9.
Foi no final dos anos 80 e início dos anos 1990 que o transhumanismo teve seu primeiro grande Nachleben: um retorno à vida pública que chegou a ser sua instalação como corrente de pensamento e de ação cultural e política, coincidindo com a implantação de infraestruturas de internet em escala global, a ciberdelia que acompanhou esse desembarque – que incluía a literatura cyberpunk, com sua imagem visionária do “ciberespaço” – e a nova ordem informacional emergente, cujo porta-voz, Nicholas Negroponte, sintetizou em uma promessa sedutora e ao mesmo tempo ameaçadora: “o futuro já chegou e só há duas opções: ser digital ou não ser”[10].
Com epicentro no Vale do Silício e com as revistas Mondo 2000 e Wired como espaços de difusão e discussão, esta corrente desenvolveu um híbrido entre a doutrina neoliberal do livre mercado e a teoria das redes: a internet permitiria acabar com as hierarquias acadêmicas, políticas e religiosas; o “fim da História” proclamado pelo cientista político Francis Fukuyama, assessor do então presidente George W. Bush (filho), após a queda do bloco soviético implicava que a política como a conhecíamos havia morrido e que o Estado se tornaria cada vez mais supérfluo no regime da economia de mercado global. Como lembra o filósofo e escritor de ficção científica Andrés Vaccari no artigo “A ideia mais perigosa do mundo: rumo a uma crítica da antropologia transhumanista”, a ideologia anarco-ciber-capitalista foi o motor por trás do desenvolvimento de tecnologias como Google, Windows e Meta e do crescimento exponencial da indústria de informática desde então[11]. E isso, para além das sucessivas crises baseadas neste novo ecossistema, como a bolha das pontocom, a crise financeira global de 2008 (na qual a internet não foi o centro, mas as plataformas e sistemas de trading automatizado ajudaram a propagar), a crise de vigilância e privacidade desde 2013 e a crise pela dificuldade de impor regulação adequada às grandes empresas tecnológicas que vivemos desde 2020.
Foi também o início da crise do transhumanismo “benéfico” e utilitarista, que buscava a maior quantidade de felicidade (ou a menor quantidade de sofrimento) para o maior número de pessoas, e o começo de sua transição para um modelo de empreendedorismo, de Big Tech e sustentado no marketing da tecnologia.
Naquela época, os transhumanistas europeus começaram a se organizar e, em 1998, criaram a Associação Transhumanista Mundial (WTA) que, como aponta Bostrom em seu artigo “História do Pensamento Transhumanista”, pretendia ser “mais madura, academicamente respeitável” e politicamente inclusiva que os extropianos (nessa história, Bostrom se menciona na terceira pessoa)[12]. Nos anos 2000, a WTA cresceu rapidamente com capítulos e grupos aliados em dezenas de países, e em 2009 renomeou-se como Humanity+. Enquanto os extropianos experimentavam com novos nomes e estilos de vida, a Humanity+ buscou tornar o projeto transhumanista parte da corrente principal das ideias filosóficas, econômicas e políticas da época. Tiveram, de fato, uma persistente ala de esquerda ou tecnoprogressista, como explica o sociólogo e bioeticista James Hughes, ele mesmo ex-presidente da WTA e autor de Citizen Cyborg (2004)[13]. Esta ala democrática, como Hughes prefere chamá-la, era majoritária na associação até 2009, quando apareceu, justamente, Peter Thiel. Mas antes disso, emergiram os singularitarianos.
A Singularidade
Bostrom relata que a ideia de uma Singularidade ou Superinteligência foi proposta pela primeira vez por John von Neumann (o mesmo sugere Benjamín Labatut no romance Maniac), que em um encontro com o matemático polonês Stanisław Ulam comentou que o progresso cada vez mais acelerado da tecnologia e as mudanças no modo de vida humana parecem se aproximar “de uma singularidade essencial na história da espécie além da qual os assuntos humanos, como os conhecemos, não poderão continuar”[14].
No entanto, a hipótese da Singularidade geralmente se refere hoje a uma previsão mais específica: que a criação de uma IA que aprende sozinha em alta velocidade levará a mudanças radicais. Esta hipótese de uma “explosão de inteligência” foi formulada em 1965 por Irving Good, que trabalhara como criptógrafo na equipe de Alan Turing no centro criptológico britânico de Bletchley Park[15] durante a Segunda Guerra Mundial e, depois, continuou trabalhando com ele no projeto de computadores na Universidade de Manchester. Segundo a versão mais conhecida da ideia de Good, um agente maquínico inteligente poderia eventualmente entrar em um loop de feedback positivo, que daria origem a gerações cada vez mais inteligentes em ritmo acelerado – o “acidente do tempo”. Este aumento vertiginoso de inteligência culminaria em uma poderosa Superinteligência que superaria em muito a inteligência humana.
Esta tese foi retomada em 1993 pelo matemático e autor de ficção científica Vernor Vinge em um artigo conhecido como “A Singularidade Tecnológica”[16], mas quem a popularizou foi o inventor e empresário Ray Kurzweil que, desde 2012, trabalha como pesquisador principal em IA no Google. Ele o fez em seu livro A Singularidade Está Próxima (2005), onde prevê a fusão da consciência humana com a das máquinas em uma civilização pós-humana superconectada por volta de 2045[17]. Kurzweil prevê um futuro de longevidade e sem problemas como fome ou crise climática (é um promotor ativo da renda básica universal). Apesar de seus críticos, que o acusam de ser excessivamente otimista e bastante temerário em suas previsões, em 2024 ele publicou A Singularidade Está Mais Próxima[18].
Em uma entrevista ao The Guardian em junho de 2024, Kurzweil explica assim sua tese renovada:
“A Singularidade ocorrerá quando fundirmos nosso cérebro com a nuvem. Seremos uma combinação de nossa inteligência natural e nossa inteligência cibernética e tudo se fundirá em um só. Para tornar isso possível, serão necessárias interfaces cérebro-computador que, em última instância, serão nanorrobôs (robôs do tamanho de moléculas) que entrarão em nosso cérebro de forma não invasiva através dos capilares. Vamos expandir a inteligência um milhão de vezes até 2045 e isso aprofundará nossa consciência e nosso conhecimento.”[19]
Outros estão menos confiantes em toda essa retórica performativa que realiza sua própria profecia, desencadeando promessas, fantasias, investimentos, ambições desmedidas e potenciais fiascos. Um deles é o próprio Bostrom, que em 2014 publicou sua resposta a Kurzweil no livro intitulado Superinteligência, onde raciocina com cautela que “se algum dia construirmos cérebros artificiais que superem em inteligência geral os cérebros humanos, então essa nova superinteligência poderia se tornar muito poderosa”[20]. O que o leva a formular a pergunta: “seremos capazes de sobreviver a uma explosão de inteligência? Como se poderia conseguir uma detonação controlada?”. E embora nem todos sejam transhumanistas, alguns dos mais importantes especialistas em IA do mundo hoje estão trabalhando nesse mesmo tema, que, sobretudo a partir de 2023, iniciaram uma corrida acelerada para investigar o chamado X-Risk, ou risco existencial da IA. Entre eles, dois dos três ganhadores do Prêmio Turing 2018: Geoffrey Hinton, também Prêmio Nobel de Física 2024, e Yoshua Bengio.
Quanto à WTA, Hughes relata que em 2009 os libertários e os singularitarianos lançaram uma campanha para assumir o controle da diretoria, expulsando a esquerda democrática em favor de aliados como Patri Friedman. Desde então, apoiados pela filantropia de Thiel, garantiram ampla hegemonia na comunidade transhumanista.
À medida que o sistema capitalista global afundava na crise em que ainda se encontra – escreve Hughes em 2012 –, em parte criada pela especulação de gestores de fundos hedge como Thiel, a maioria esquerdista dos transhumanistas em todo o mundo via com cada vez mais clareza a contradição entre o escapismo milenarista dos singularitarianos e as preocupações práticas de garantir que a inovação tecnológica fosse segura e seus benefícios, universais.[21]
Pós-humanismos críticos
Vejamos agora o pós-humanismo. Atualmente, o termo é usado de três modos diferentes. Por um lado, há uma acepção residual daquela primeira etapa de indistinção em que o termo tinha uma conotação negativa e se referia a todas as teorias que almejavam a “superação” do humano como horizonte evolutivo. Uma vasta área da teoria crítica da tecnologia, inspirada em autores como Martin Heidegger, Jacques Ellul e Herbert Marcuse, manteve até bem entrado o século XXI um olhar de suspeita diante do pós-humanismo que pretende “brincar de ser Deus” através de tecnologias como a hibridização de humanos com outras espécies, ou a engenharia genética usada para programar certos nascimentos e evitar outros. É a acepção que alguns chamam de “bioconservadora” e que está representada pelo próprio Francis Fukuyama em seu livro Our Posthuman Future[22]. Ou na crítica velada de Jürgen Habermas à memorável conferência de Peter Sloterdijk Regras para oparque humano, onde o autor da saga das Esferas provocava sua plateia afirmando que “tornou-se insustentável a ilusão de que estruturas políticas e econômicas massivas podem ser organizadas seguindo o modelo amigável da sociedade literária”[23]. Os adeptos de Habermas, tanto jornalistas quanto acadêmicos, acusaram Sloterdijk de promover um novo “projeto Zaratustra” de domesticação tecnocientífica. Vinte e cinco anos depois, a questão sobre “como poderia ser gestada uma sociedade de vizinhos do Ser” em multidões desinibidas parece ainda pertinente.
Numa segunda acepção, os próprios transhumanistas usam o termo para nomear o destino ao qual se dirigem ou “transicionam” do humano já supostamente ultrapassado para o pós-humano emergente mas ainda desconhecido, sendo o transhumanismo o passo intermediário necessário. Embora pareça paradoxal, este pós-humanismo é em última análise um “pós-humanismo humanista”, como sustenta Cary Wolfe, pois incentiva pensar que a realização plena daquilo que chamamos de “humano” será alcançada superando, primeiro, nossas origens animais através da ação racional e da cultura da letra – como lembrava ironicamente Sloterdijk na conferência mencionada[24] – e, em segundo lugar, transcendendo as “correntes da materialidade” e, finalmente, a própria encarnação.
A fantasia transhumanista de que algum dia, mais cedo ou mais tarde, seremos capazes de superar todas as doenças e enfermidades, que finalmente alcançaremos vidas radicalmente mais longas e até a imortalidade, parece ser um sinal inequívoco de humanismo, o mesmo que a terceira acepção de “pós-humano” se empenhará em erradicar.
Como argumenta Wolfe, deixando de lado as questões práticas, o desejo de alcançar uma condição plenamente “humana” eliminando, transcendendo, reprimindo ou superando o corpo é uma marca demasiado distintiva do humanismo – historicamente perigosa, como vêm afirmando há pelo menos 30 anos os autores que de diversas maneiras continuam desenvolvendo aspectos da tese biopolítica de Michel Foucault, desde Judith Butler e Donna Haraway até Giorgio Agamben, Paul B. Preciado, Achille Mbembe e, na América Latina, Mónica Cragnolini ou Fabián Ludueña. Introduzir tal cesura na esfera do vivente e construir uma hierarquia ontológica entre o “humano” e o “animal” tem sido, como nos lembram esses pensadores, uma decisão política crucial para fazer com que não apenas populações animais, mas também muitas populações humanas pudessem ficar completamente expostas à morte: que pudessem ser atropeladas, violentadas, até mesmo aniquiladas sem que essa morte fosse considerada um crime.
A terceira acepção emerge em parte desta última constatação e dá origem ao que se conhece como “pós-humanismos críticos”, cujas figuras se destacam Donna Haraway, Rosi Braidotti e N. Katherine Hayles. Se os transhumanistas veem o pós-humanismo como seu “objetivo final”, os pós-humanistas críticos questionam as noções tradicionais do humano e propõem uma visão mais relacional, ecológica e crítica. Enquanto o transhumanismo se concentra no aprimoramento humano e na superação tecnológica, o pós-humanismo crítico busca redefinir o humano em um contexto mais amplo, mais complexo e verdadeiramente coevolutivo. Reconhece a interdependência entre humanos, animais, plantas e outros organismos vivos, máquinas e mundo-ambiente tecnonatural, e defende uma ética integral que reconheça os direitos e a agência dos diversos entes com os quais habitamos e co-construímos este mundo.
Nunca fomos humanos?
No volume coletivo Transhumanism and Its Critics [O Transhumanismo e seus Críticos], a crítica literária N. Katherine Hayles confessa: “Para mim, o transhumanismo é como um relacionamento com um amante obsessivo e muito neurótico. Sabendo que tem muitos defeitos, tentei várias vezes romper meu compromisso, mas ele sempre consegue se infiltrar pela porta dos fundos da minha mente”[30]. A autora vem lutando contra essa obsessão desde How We Became Posthuman? [Como nos Tornamos Pós-Humanos?], onde criticava um dos grandes pressupostos subjacentes a previsões como a de Hans Moravec de que em breve seremos capazes de migrar nossa consciência para computadores e deixar nossos corpos para trás[31]. Este cenário, argumenta Hayles, depende de uma ideia de informação descontextualizada e desencarnada, que toma a noção de Claude Shannon – concebida como uma função de probabilidade e útil para propósitos específicos – e a aplica a domínios completamente diferentes, como a consciência.
Embora o texto de Hayles tenha sido muito lido e bem recebido, como ela própria reconhece, esteve longe de deter a proliferação da ideia transhumanista. Pelo contrário, como vimos, o transhumanismo é hoje o ar que respiramos. Como explicar esse apelo, se reconhecemos seus problemas? Hayles diz assim: “A maioria das versões compartilha a suposição de que a tecnologia está envolvida em uma dinâmica espiral de coevolução com o desenvolvimento humano. Essa suposição, conhecida como tecnogênese, me parece convincente e, de fato, praticamente irrefutável”[32]. Apesar de muitas discordâncias, então, Hayles reconhece que a comunidade transhumanista está profundamente envolvida em descobrir para onde a tecnogênese está indo na era contemporânea e o que isso implica para nosso futuro humano. E essa é, para ela, sua principal contribuição, e a razão pela qual o relacionamento ainda funciona. Todo o resto é diferença.
Em relação ao transhumanismo, Hayles critica, com razão, que sua retórica se concentre na transcendência individual. Nas conferências, entrevistas, sites, artigos e livros transhumanistas, há uma notória ausência de consideração sobre o conhecimento existente em dinâmicas sociais, culturais e econômicas além do indivíduo. O próprio Bostrom fala da necessidade de “tornar as tecnologias amplamente disponíveis para eliminar o envelhecimento”, mas sequer menciona o desafio que isso representaria em relação ao crescimento demográfico, recursos limitados, desigualdades exacerbadas e a economia dos jovens que sustentam os mais velhos.
Rafael Yuste é um médico e neurobiólogo espanhol, autor de O Cérebro, o Teatro do Mundo[33] e diretor do Centro de Neurotecnologia da Universidade de Columbia. Desde 2013 está à frente do projeto BRAIN, similar ao do genoma humano mas para o cérebro, impulsionado pelo então presidente norte-americano Barack Obama. Trata-se de uma pesquisa em larga escala, projetada para 15 anos, voltada a desenvolver neurotecnologia de diferentes tipos: eletrônica, magnética, acústica, molecular, baseada em nanociência, para registrar e eventualmente alterar a atividade cerebral, seja através de dispositivos invasivos, como um chip, ou de eletrodos, que podem estimular diferentes partes do cérebro.
Toda a atividade mental e cognitiva – nossos pensamentos, emoções, comportamento, memórias, crenças, consciência e até mesmo o subconsciente – é, segundo Yuste, um emergente da atividade neuronal. Daí que, se forem desenvolvidas tecnologias que permitam registrar e alterar a atividade cerebral, por propriedade transitiva, essa mesma tecnologia permitirá registrar a atividade mental e modificá-la, por exemplo, para curar o mal de Alzheimer ou o Parkinson.
Dentro da neurotecnologia, a equipe de Yuste se especializa em óptica. Mais concretamente, em lasers. É a tecnologia mais potente para registrar a atividade cerebral: consegue ver a atividade, fazer filmes sobre ela e com lasers holográficos manipula sua atividade “como se estivéssemos tocando piano”, assegura. “É uma tecnologia que fizemos com nossas próprias mãos”[34].
Em 2015, a equipe realizou um experimento no cérebro de um rato – “porque é muito parecido com o humano” – e conseguiu decifrar o que o roedor estava vendo apenas mapeando a atividade de seus circuitos cerebrais. Depois, ativou neurônios no córtex visual do rato e conseguiu introduzir em seu cérebro imagens de coisas que ele não estava vendo, como se fosse uma alucinação, e o rato começou a se comportar como se as visse. Ou seja: conseguiu tomar controle de sua percepção visual e o transformou praticamente num fantoche, um sucesso científico e um dilema ético-político num mesmo movimento.
Yuste teve então o que chama de seu “momento Oppenheimer”, em referência à reação do físico após criar a bomba atômica. Porque o que hoje se faz num rato, poderia amanhã ser feito num humano. Começou então a refletir sobre a responsabilidade que tinha como cientista e envolveu-se no objetivo de regular essas tecnologias. Convocou na Columbia colegas de diferentes partes do mundo (compareceram pesquisadores da China, Japão, Coreia, Austrália e Vale do Silício), e juntos chegaram à conclusão de que esse tipo de intervenção, que não seria difícil chamar de “transhumanista”, é uma questão de direitos humanos.
Desde então, Yuste defende a extensão da proteção dos direitos humanos à atividade cerebral: chama-os de neurodireitos – no Chile e no estado brasileiro do Rio Grande do Sul têm proteção constitucional, e nos estados americanos do Colorado e Califórnia há leis específicas. São cinco direitos: o primeiro é o direito à privacidade mental, para que o conteúdo da atividade cerebral não possa ser decifrado sem consentimento. O segundo protege a integridade mental, para que a personalidade não seja alterada (há aspectos profundos da personalidade que estão radicados no cérebro). Terceiro: direito a tomar decisões sem influência de neurotecnologia externa. Quarto: direito a um acesso equitativo à neuroampliação, para que os que conseguirem ampliar sua memória ou seu rendimento em qualquer atividade cerebral não sejam apenas os mais ricos, poderosos ou cidadãos de certos países. O último é o direito à proteção contra vieses e discriminações na informação que a neurotecnologia possa introduzir no cérebro.
O caso de Rafael Yuste é um entre dezenas, talvez centenas nos últimos anos, e nos coloca diante da crueza da facticidade. Acontece que, como afirma Andrés Vaccari, “uma vez que aceitamos que não há nada intrinsecamente condenável na modificação e aprimoramento humanos, o transhumanismo parece não saber o que fazer a seguir. Por exemplo, existe uma abordagem ‘transhumanista’ sobre o papel do profissional de saúde no aconselhamento a futuros pais sobre opções de aprimoramento? Existe uma abordagem caracteristicamente ‘transhumanista’ sobre a atribuição de responsabilidade em casos em que as intervenções biomédicas dão errado?”[35]
Poderíamos acrescentar: existe algum plano “transhumanista” para o desenho de um planeta sustentável? Existe algum plano para evitar que a “pós-humanidade” em sua faceta tecnocolonial subjugue as populações “pré-pós-humanas”? Não. Por enquanto não há. No entanto, a revolução infotecnológica, e a previsível disrupção que provocará nos subsistemas sociais e subjetivos, está em marcha. Serão capazes as forças do pós-humanismo crítico e do transhumanismo democrático de trabalhar teórica e praticamente para reorientar o rumo? A resposta a essa questão coloca em primeiro plano, possivelmente, uma das tarefas mais exigentes do presente e do futuro próximo.
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