O Eu e o Id nas redes

Vistos a partir da psicanálise, três casos revelam como a cultura digital pode moldar desejos e relações familiares a partir do “ser seguido e influenciar”. Poderia a satisfação pelas redes dar lugar à falta? Qual o risco de filhos como objeto de satisfação narcísica dos pais?

Imagem: Veridiana Zurita
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É possível dizer que as redes sociais digitais são uma nova praça pública. Nela o encontro corporificado – sua imprevisibilidade, silêncios e oscilações – é atualizado pela imagem representada na tela; sua repetição previsível onde o silêncio ou a falta não tem vez. Nessa praça trocamos informações, conversamos, vendemos, nos exibimos uns aos outros, mobilizamos, seguimos e somos seguidos, influenciamos e somos influenciados. A diferença entre o presencial e o virtual está na relação entre o eu e o outro mediada pela tela e pela aceleração digital. Tal aceleração impõe uma sociabilidade específica, dinamizada e estimulada por um modelo de negócios onde cada respiro é convertido em dados mercantilizáveis. E isso faz toda a diferença.

Nas redes a simbiose entre relações sociais e diretrizes econômicas se agudiza solidificando a unidade entre desejo, comportamento e consumo. O que viraliza nas redes regula e pré-determina nossas relações dentro e fora dela. Afinal, a cena de encontros presenciais alienados pela tela é um novo normal. Uma família reunida onde cada membro é absorvido por sua tela inibe qualquer conversa. A prática cotidiana de postar, compartilhar imagens, dar opiniões e conselhos, expressar desabafos e anseios, curtir, seguir novos influenciadores e até mesmo se tornar um se generaliza como sociabilidade emblemática de nosso tempo. Não estamos mais aqui para experimentar o presente mas sim para performar e capturar qualquer cena que depois de compartilhada garanta likes e visualizações. Assim participamos dessa cultura. A família sorri para a self coletiva que demonstra o encontro e, ao compartilhar nas redes, voltam absortos para suas telas afim de conferir o engajamento da imagem.

As diferentes redes sociais se apresentam como plataformas compulsórias para a
manutenção de nossa troca social. Estamos falando de esferas da comunicação e do acesso a
informação que abrangem desde a expressão pessoal, passando pela mobilização política até a
divulgação de marcas e novas mercadorias. Nas redes, produzimos e consumimos conteúdo aos
montes. Apesar da aparente diversidade dos conteúdos há uma linha condutora que atravessa
diferenças transformando-as numa série de repetições do mesmo que capturam e treinam nosso
olhar. Seja você quem for nas redes, mero usuário ou influenciador ansioso pelo aumento de
curtidas e seguidores, há uma “gramatica do reconhecimento” (DUNKER, 2017) que atravessa todo
e qualquer sujeito participante da nova praça pública digital.

São muitos os elementos que homogeneízam as diferenças nas redes, como a duração e
ritmo de um vídeo, a regularidade de postagens e a presença indispensável de selfies, mas aqui me
detenho a uma: a exibição do núcleo familiar. Seja você quem for, de esquerda ou direita, vegano ou
carnívoro, ateu ou crente, o compartilhamento de imagens que demonstrem laços familiares circula
nas redes como prova de sucesso, felicidade, legitimidade e pertencimento. Mas exibir a família nas
redes transborda o mero compartilhamento da intimidade parental e sua prole e abrange todo um contexto do marketing digital que mercantiliza relações constitutivas para o desenvolvimento do
Eu.

Ora, até ai nenhuma novidade já que o núcleo familiar como slogan de vendas e diretriz de
consumo acompanha o capitalismo desde sua origem. A performance da família como cena
organizadora do desejo consumidor é constitutiva de um sistema que sempre precisou gerar
demanda para a produção desenfreada de mercadorias. No entanto, há nas redes um dinamismo
próprio que entrelaça a performance dos usuários e a circulação de mercadorias. Isso porque a mera
navegação online é responsável pela produção de dados que, organizados e vendidos para
anunciantes, retornam aos usuários como anúncios personalizados, ou seja, como captura do desejo
e seu afunilamento em desejo de consumo.

Nesse sentido, a performance de famílias nas redes participa da geração de dados do
chamado Big Data assim como, ou principalmente, caracteriza a expressão de um modo de vida que
circula na timeline como objeto de desejo. E o que uma família performa nas redes? O íntimo, o
doméstico e o cotidiano que se apresentam como performance espontânea em contraposição àquela
roteirizada dos anúncios publicitários televisivos. Nesse modelo de negócios, que atualiza o espaço
doméstico como palco de vendas a partir da exposição da intimidade familiar, a figura do
influenciador digital surge como referência profissional de toda uma nova geração. Nesse cenário,
todo membro da família é um vendedor em potencial (de si mesmo ou de um produto), inclusive (ou
especialmente) crianças, já que a capacidade infantil de capturar o olhar na disputada economia da
atenção é certeira.

O sucesso das crianças nas redes é visível. Quem nunca foi capturado pela imagem de
crianças demonstrando algo nas redes? Achamos fofo, uma gracinha, talvez da mesma forma como
engajamos nosso olhar a imagem de pets passando pela timeline. Mas a performance de uma
criança vai muito além da de um gatinho. Não estamos falando somente do compartilhamento
exaustivo que mães e pais fazem de seus filhos nas redes, numa demonstração exibicionista e
narcísica de sua prole, mas do discurso e práticas de uma cultura que ocupa o imaginário infantil; a
cultura influencer. Uma rápida busca nas redes já oferece um menu de crianças influenciadoras e
empreendedoras, mostrando uma nova geração que participa com destreza de uma sociabilidade
onde brincadeira, projeção profissional e reconhecimento se unificam desde cedo.

Nesse sentido, é importante notar que a preocupação (de alguns) sobre o uso de telas na
infância deveria também implicar a presença em ascensão de crianças como personagens dos
conteúdos em circulação. Crianças não somente usam celular mas são elas mesmas os personagens
em potencial para performarem na tela, cativarem seguidores e organizar um mercado de consumo
pujante. Mas nenhuma criança decide por conta própria estar nas redes, dar likes, fazer selfies, há
um contexto familiar que participa, introduz, autoriza, valida e socializa a criança nesse contexto. Tal facilitação nos dá indícios sobre a presença e interferência do digital nas tarefas do cuidado
parental e parece configurar uma transformação relevante no desenvolvimento do Eu.

Estamos falando de uma transformação que ainda não se apresenta com total nitidez, já que
as redes sociais são relativamente novas na história da cultura digital, mas que em pouco tempo já
aponta para reverberações psíquicas preocupantes. Os casos de suicídio entre crianças e
adolescentes tem aumentado e a relação com as redes sociais e o cyberbullying são
evidentes1. Se as redes sociais já são desde a mais tenra idade parte do mundo externo infantil, da relação com o outro e da sociabilidade que se desloca a partir e para além do núcleo familiar, é relevante observar quais as especificidades dessa dinâmica no processo de desenvolvimento do Eu e os sintomas que produz.

Neste ensaio me ocuparei, desde uma perspectiva da psicanalise, pela reflexão sobre o
desenvolvimento do Eu e a produção de sintomas no universo infantil inserido na dinâmica das
redes sociais. Mais especificamente tomarei como objeto de observação práticas onde o núcleo
familiar se apresenta como contexto facilitador e participante da produção de conteúdo. Ou seja, a
família como ambiente afetivo, de produção discursiva e simbólica que alimenta os conteúdos
compartilhados nas redes e desde onde a criança torna-se personagem e potencialmente
influenciadora digital.

Na literatura sobre a cultura influencer o influenciador digital é caracterizado como aquele
que divulga marcas e produtos a partir de sua atuação nas redes. Empreender no mundo digital
significa utilizar sua própria figura e performance como veículo para a divulgação de marcas e de
influência do consumo. Há todo um mercado no marketing digital que mapeia e organiza
influenciadores dos mais diversos perfis e os conecta com seus clientes anunciantes. As crianças
estão nesse mercado a todo vapor.

Aqui, não me limitarei aos casos de famílias e crianças que já são veículos para a divulgação
de marcas, ou seja, influenciadores digitais no sentido da economia monetária que organiza as
redes, mas sim de uma cultura que perpassa o imaginário, o comportamento e a racionalidade de
todos que participam das redes sociais. A figura do influenciador digital como horizonte de
participação e pertencimento de uma cultura que orienta, media, valida os sujeitos e nesse processo
produz subjetividades. Afinal, você é alguém nas redes dependendo do número de seguidores que acumula. É essa a narrativa de pertencimento social predominante na contemporaneidade digital; ter
seguidores e influenciar.

Observarei, portanto, alguns perfis que já demonstram destaque e repercussão nas redes
como forma de organizar a reflexão nos limites de um ensaio mas, também, buscarei deixar espaço para que tal reflexão abranja a existência de uma subjetividade hegemônica produzida nas redes,
para além dos perfis de sucesso. Sejam perfis de maior ou menor impacto, o que importa aqui é
discutir a circulação de um modus operandi que interpela o desenvolvimento do Eu a partir de uma
demanda de participação nas redes que busca legitimar o pertencimento na sociedade.

Mais especificamente buscarei discutir as fixações do investimento pulsional; o
afunilamento do desejo em um único objeto, que pode caracterizar a produção de sintomas que as
redes sociais implicam na contemporaneidade digital. Para tanto, analisarei perfis de famílias
atuantes nas redes afim de elaborar algumas hipóteses sobre a repercussão das demandas de
participação digital no aparelho psíquico, no trânsito entre o Eu e o Id e na dissolução do “complexo
de Édipo”.

Três casos como cenário de especulação

  1. Lulu e sua família.

Produzido pela Jornalista Maju Mendonça o perfil @majumendonca com 5,3 milhões de seguidores é descrito como: “Criadora de conteúdo digital, Mãe de Lulu e José Vicente, casada com @arthurluiscardoso, Maternidade e Família”. Nas subdivisões que descrevem o conteúdo do perfil estão: “Comidinhas”, “Curiosidades”, ‘Gestação”, “Fala”, “Perguntas”, “Sono”, “Família”, “Amamentação”, “Pediatra” e “Luísa”. O perfil é produzido como palco através do qual a família compartilha suas experiências parentais em uma espécie de diário tutorial da vida cotidiana. Há uma nítida tradução da experiência familiar em linguagem de guia para os seguidores, misturando depoimentos pessoais, brincadeiras e dicas de lifestyle como narrativas que introduzem a chamada “publi”2.

A constituição da família é registrada e compartilhada com dedicação. Desde o casamento com o locutor de radio Arthur Luis Cardoso, passando por duas gravidezes e a chegada de Luisa e Zé Vicente. É interessante notar como a expectativa de nascimento de “Lulu” e “Zé” alimentaram o perfil, gerando engajamento e demonstrando que ter filhos é um bom negócio nas redes.

“Lulu” parece nunca ter estado ausente das postagens e “Zé” já segue o mesmo caminho. Zé é ainda um bebê mas a regularidade de suas imagens nas redes pavimenta um caminho semelhante ao da irmã. Aos 4 anos Lulu já é a estrela do perfil, demonstrando agência nas postagens e consciência de que a captura de sua imagem tem uma função: ser compartilhada nas redes para seguidores. A criança passa a dar “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite” e até responder a “caixinha de perguntas”3 para aqueles que ela já sabe que a seguem. Sua performance é exemplar de uma criança desenvolta diante das câmeras, com gestos e trejeitos que demonstram a mimetização performática de um comportamento adulto. Lulu parece ter aprendido a socializar ao passo que performa nas redes. Lulu já é a “Lulu nas redes”.

  1. Laurent, o pequeno Picasso.

Produzido por Lisa Schwarz o perfil @laurentsart com 99,3 mil seguidores foi criado para compartilhar as pinturas de seu filho, Laurent, de 3 anos de idade “com familiares e amigos” 4. O perfil é descrito como “Laurent Schwarz Artista, Künstler/in 3 Years old”. Nas subdivisões que descrevem o conteúdo do perfil estão “imprensa, vendidos, feiras de arte, no trabalho, minha arte e caridade”. Em poucas semanas depois de sua criação o perfil já acumulava 10 mil seguidores e o sucesso no Instagram e jornais passou a chamar a atenção de galerias e museus. Hoje, Laurent é chamado de “pequeno Picasso” e tem seus quadros vendidos por milhares de euros.

O perfil é exclusivamente dedicado a “obra” produzida por Laurent, o que inclui: uma postagem intitulada “quando o mundo inteiro fala sobre você” onde os pais introduzem o trabalho de seu filho enquanto os valores das obras aparecem na tela, um video onde Laurent corre com um pirulito na boca durante sua própria vernissage com adultos e suas taças de vinho branco ou, ainda, imagens simulando uma pergunta como se fosse de Laurent “quanto você pagaria pelas minhas pinturas” e toda uma narrativa que permeia cada postagem a partir de um discurso de síntese marketeira daquilo que Laurent faz.

É importante notar como a narrativa ideológica de uma rede como Instagram é capaz de driblar a problematização do perfil. Laurent aparece sempre feliz nas imagens, se divertindo com tintas e telas e tendo sua brincadeira convertida em dinheiro devidamente depositado em um conta para utilização na vida adulta como ele quiser, “o importante é que ele seja feliz”. Diferente de perfis de influenciadores mirins onde a atuação do infante é veículo da divulgação de marcas o @laurentsart já divulga o infante como uma marca em si mesmo.

  1. Garoto de valor 10.

Produzido por Pedro Lucas de 10 anos, o perfil @garotodevalor10 tem 137 mil seguidores e é descrito como “imagem semelhança do Criador. Destravo crianças através do EMPREENDEDORISMO

+3.000 Pequenos empreendedores impactados com meu livro”. Sim, Pedro já lançou seu primeiro livro; “O pequeno grande investidor” que convida mães e pais a transformarem “o futuro dos seus filhos através do poder do empreendedorismo” e promete “ensinar passo a passo como despertar o espírito empreendedor nas crianças, capacitando-as a construir um futuro financeiramente sólido e próspero desde cedo”.

O perfil é dedicado a divulgação da tarefa empreendedora onde Pedro mostra que nunca é cedo para tanto. Através de vídeos tutoriais o “garoto de valor” dá dicas de investimento e demonstra conhecimento sobre o mundo das finanças. O caráter religioso atrelado a família permeia o conteúdo do perfil com leituras da bíblia e rezas antes das refeições junto ao pai, mãe e irmão. Pedro também já se posiciona politicamente defendendo figuras como Pablo Marçal nas redes e exibindo o “apadrinhamento” do influenciador que celebra Pedro e sua trajetória com emoção.

É importante notar a unidade identitária do perfil @garotodevalor, onde Pedro já divulga sua imagem nas redes através do entrelaçamento entre projeção profissional, família, religião e posicionamento político. Sua exposição nas redes esbanja o pragmatismo característico de uma racionalidade neoliberal onde o capitalismo não é mais somente um modelo econômico mas um modo de vida, uma pulsão existencial.

A partir das semelhanças, algumas questões

Os perfis escolhidos para nossa especulação são consideravelmente diferentes. Cada qual compartilha um tipo de conteúdo, vende um tipo de produto, representa um tipo de reverberação nas redes que aqui não caberia adentrar. No entanto, a narrativa de demonstração e exibição típico das redes e de sua cultura influencer atravessa tais perfis. Nesse sentido, me interessa observar a relação familiar como presença que alimenta e é alimentada pela demanda exibicionista e demonstrativa das redes. Seja como fator simbólico; aquilo que reverbera como representação de uma família ideal, seja como fator material; a facilitação, estímulo e validação familiar subjacente (ou evidente) na produção dos perfis. A família, portanto, como sociabilidade afetiva e mediadora da introdução do sujeito no mundo digital.

Em termos psicanalíticos isso nos coloca questões em torno das relações edípicas atravessadas pela dinâmica das redes. Como as relações estabelecidas a partir do complexo de Édipo e sua dissolução acontecem atravessadas pela dinâmica cultural e econômica das redes sociais? Como a cultura influencere sua lógica exibicionista interpela o complexo de Édipo? Qual o tipo de interferência que as redes representam para a dissolução do complexo de Édipo? Considerando as redes como uma cultura em si, uma realidade, um mundo externo ao psíquico, que tipo de limite oferecem ao mundo interior do sujeito? Que possibilidades de transformação das energias pulsionais o Eu encontra nas redes? Que tipo de representação-objeto a realidade das redes oferece para o sujeito investir sua identificação? Como o deslocamento do investimento objetal

pode ser transposto para a identificação no contexto da cultura influencer e sua gramática de reconhecimento? Que tipo de deslocamento do investimento pulsional é possível na lógica das redes? A experiência de satisfação propiciada pelas redes dá lugar à falta? Que tipo de falta do objeto é possível nas redes? Não é minha pretensão responder tais perguntas em um ensaio como este. Restrinjo minha tarefa, portanto, a formulá-las e sobrevoar algumas hipóteses especulativas.

O complexo de Édipo e sua dissolução. Um recorte

Façamos um recorte sobre o complexo de Édipo, afim de focar em um fator determinante para sua dissolução e que pode nos ajudar a especular sobre a implicância das redes no processo de constituição do Eu. Trata-se da ameaça de castração.

Guardadas as significativas diferenças de tal ameaça; no menino “como castigo” e na menina “como pressuposto”, o que importa aqui é ressaltar o que significa, para ambos, que o complexo de Édipo idealmente se dissolva. Assim como Freud observou, os “nexos entre a organização genital, complexo de Édipo, ameaça de castração, formação do Super-eu e período de latência (…) justificam a afirmação de que o complexo de Édipo sucumbe a ameaça de castração” (Freud, 2011, p. 210). Mesmo que com diferenças no “desenvolvimento psíquico” entre a menina e o menino, que aqui não conseguirei elaborar, ambos desenvolvem um complexo de Édipo, um Super-eu e um período de latência assim como uma organização fálica e um complexo de castração. É a partir dessa universalidade que proponho minha especulação.

Nesse sentido é importante ressaltar a ameaça de castração como decisiva, tanto no menino quanto na menina, para a dissolução do complexo de Édipo e crucial para o desenvolvimento do Eu. Tal dissolução se dá, portanto, quando os “investimentos objetais são abandonados e substituídos pela identificação” aos pais (Freud, 2011, p. 208). Identificar-se com os pais não quer dizer ser como eles mas interiorizar o papel daquilo que representam, ou seja, a interdição ao incesto. Se no caso do “complexo de Édipo simples” (Freud, 2011, p. 41) o incesto no menino está no desejo de se casar com a mãe e na menina de ter um filho com o pai ou, mesmo, no “complexo de Édipo mais completo, que é duplo (…) dependendo da bissexualidade original da criança” (Freud, 2011, p. 41), podemos dizer que tanto no menino quanto na menina tal desejo representa a expectativa de uma experiência de satisfação total e completa. A proibição ou interdição do incesto coloca, portanto, uma limitação proveniente do mundo externo, uma possibilidade de interiorização da falta como parte da experiência de satisfação substitutiva e do deslocamento de sua busca em novos objetos. Substitutiva porque pretende experienciar novamente a satisfação do ato de mamar.

A mamada, experiência de satisfação que inicia a importante distinção entre a descarga do desprazer através da saciedade da fome e da relação com o peito independente da ingestão do leite.

O peito já aparece, portanto, como primeiro objeto e começa a assinalar uma realidade fora do bebê, que atravessa a relação com a mãe e ao mesmo tempo o re-liga a ela. A simbiose total experienciada desde a interioridade uterina é interrompida pelo nascimento e re-estabelecida de forma incompleta pelo ato de mamar, já que tal ato é sempre interrompido e re-iniciado. A realidade na qual a mãe está inserida já reverbera na experiência da mamada. O mundo externo do qual o pai faz parte confere ao recém nascido a presença de um terceiro que atravessa e reposiciona sua relação com a mãe. Essa triangulação entre o bebê, a função materna e paterna vai configurando o processo do complexo de Édipo até sua dissolução. Trata-se de um processo constitutivo do Eu e da sociabilidade do sujeito na vida adulta, já que a experiência familiar (seja lá qual for sua configuração) é a primeira experiência social do sujeito e que dará a ele ferramentas para uma sociabilidade expandida, fora dos limites da equação “papai, mamãe e eu”.

Nesse sentido, a interdição e sua interiorização significam a possibilidade de transformar o investimento pulsional e desloca-lo para novos objetos. Isso porque o Eu se constitui a partir das perdas, assim como a percepção do outro a partir de sua ausência. É necessário, portanto, que o objeto falte para que o Eu se constitua.

É nesse processo de interiorização no Eu da interdição que caracteriza o início do desenvolvimento do super-Eu ou ideal do Eu. “O ideal do Eu é, portanto, herdeiro do complexo de Édipo e, desse modo, expressão dos mais poderosos impulsos e dos mais importantes destinos libidinais do Id” (Freud, 2011, p. 45). O super-eu ou o ideal do Eu atuam, portanto, como instâncias psíquicas mediadoras do trânsito entre demandas pulsionais e a realidade externa ao aparelho psíquico. Mais especificamente tal mediação ocorre como conflito. “Enquanto o Eu é essencialmente representante do mundo exterior, da realidade, o Super-eu o confronta como advogado do mundo interior, do Id. Conflitos entre o Eu e ideal refletirão em última instância (…) a oposição entre real e psíquico, mundo exterior e mundo interior” (Freud, 2011, p. 45).

Assim, é importante atentar para o fato de que o Eu precisa ser um lugar de passagem e não de fixação entre as demandas do Id e seu encontro (confronto) com o mundo externo. O Id não fala sozinho mas sempre a partir do Eu e do Super-Eu. É, justamente, a qualidade de passagem do Eu que garantirá que o Id “fale”, expresse suas demandas a partir de identificações com objetos (sejam eles representações, relações, pessoas, profissões) mediadas pelo Super-eu que apresenta o confronto com os limites do mundo exterior.

O que a interiorização da interdição no Eu pode propiciar na vida futura do sujeito é que a identificação aos pais venha a introduzir na criança a possibilidade de deslocamento de seu investimento pulsional. Identificar-se com os pais pode significar o início de um processo de identificação com outras pessoas no desenrolar da vida. É esse processo aquele capaz de dar lugar ao Ideal do Eu como algo que está fora, no mundo externo, no outro, na alteridade, na capacidade

de amar, nas referências que se deslocam e driblam um Eu-ideal, narcísico, fixado no Eu como objeto único do investimento pulsional. Se o Eu é fixado como objeto não pode exercer sua função de passagem.

O Eu, recebe, portanto, a árdua tarefa de direcionar as pulsões inerentes ao corpo através da realidade e seus limites. Nesse sentido, a realidade, a cultura, o mundo externo ao psíquico são apresentados pela psicanálise como instância prenhe de objetos (materiais ou imateriais, coisas ou representações, pessoas ou relações) que possam servir de veículo para o desejo enquanto busca pela experiência de satisfação, ou ainda, por “gratificações substitutivas” àquela vivenciada pela experiência de mamar.

Na relação parental que anima o complexo de Édipo o lugar do objeto de investimento pulsional se desloca. Não é só a criança o sujeito atravessado pelas demandas pulsionais que exigem malabarismo do Eu em lidar com seus três senhores; Id, super-Eu e realidade, mas também sua mãe e seu pai, ou quem quer que exerça tais funções. Da perspectiva dos infantes qual o caráter de “objeto” que os perfis adquirem? Qual a possibilidade de deslocamento do investimento objetal quando as redes representam uma fixação daquilo que o infante representa e mobiliza nelas? Da perspectiva dos familiares, qual o estatuto afetivo de sua prole nas redes? São seus infantes eles mesmos se projetando no mundo digital, “sendo felizes”, ou objeto de satisfação narcísica dos pais? Os dois? Se sim, como tais instâncias se influenciam?

Lulu, o pequeno Picasso e o garoto de valor

Ao encararmos as redes sociais como uma cultura, uma realidade em si, um mundo externo ao psíquico onde a família performa a si mesma, exibe-se, demonstra-se, devemos considerar que infantes e familiares são atravessados pelo tipo de “hospedagem” que as redes oferecem ao investimento pulsional. Em outras palavras, os limites, as regras éticas e morais, os modelos de comportamento, de sociabilidade e as representações possíveis através das quais a cultura das redes sociais confronta e dá lugar às demandas pulsionais.

Lulu, Laurent e Pedro, são exemplos de como a introdução precoce de crianças no mundo das redes pode repercutir em fixações do investimento pulsional. As três crianças já tem sua constituição do Eu mediada pela rigidez daquilo que representam nas redes. Lulu; uma garota desenvolta com capacidade de influenciar o consumo através de sua simpatia e “espontaneidade” diante das câmeras para as quais performa a venda de produtos como quem brinca, Laurent; que já possui uma “obra” diante dos olhos ávidos do mercado da arte que converte brincadeira em produção e Pedro; o precoce empreendedor que parece provar a narrativa neoliberal de que a racionalidade financeira é atributo nato dos humanos.

Nossos três personagens, são introduzidos nas redes sociais a partir da facilitação e aprovação de suas famílias que participam ativamente da construção das identidades digitais de sua prole assim como da função paterna e materna diante de tal sucesso digital. O olhar do outro nas redes é mandatório para uma gramática do reconhecimento que irá validar tal construção através de likes, visualizações e engajamento delimitados e prescritos por um modelo de negócios específico.

Essa delimitação econômica do universo digital, organizada para garantir a previsibilidade do algoritmo, e da qual as redes são plataforma funcional, é essencial para nossa reflexão. O que sugiro neste ensaio é que a cultura das redes, estruturalmente arquitetada por um modelo de negócios pautado pela capacidade de viralização de conteúdos, atua diretamente no desenvolvimento do Eu. Isso porque a mesma arquitetura econômica das redes atua na economia de nossas pulsões. E quais os conflitos dessa atuação?

A pulsão, como conceito limite entre o psíquico e o somático, é um fluxo, tem sua fonte no corpo mas não se reduz a ele. Ela só se faz presente, só se mostra quando ganha espaço no aparelho psíquico, quando apela ao aparelho psíquico para que lhe dê lugar através de representantes psíquicos. Ela equivale, portanto, àquilo que coloca o sujeito em movimento. Para que esse movimento ocorra o Eu precisa compreender a direção da pulsão afim de traduzi-la, codifica-la. Traduzidas em afetos, ideias, palavras, as pulsões ganham lugar no sujeito e para além dele. Nesse sentido, é interessante imaginar como o tipo de expressão legitimada nas redes pode vir a afunilar tal processo. Se os representantes psíquicos vêm falar em nome da pulsão e o aparelho psíquico é, justamente, a construção de um instrumental para dar conta da demanda da pulsão, quais as limitações de tal instrumental quando consideramos o modelo de expressão das redes?

Minha sugestão é que a fixação do modelo econômico das redes produz fixação no deslocamento de nossas pulsões. Mais especificamente, ouso dizer, que a necessidade de previsibilidade algorítmica, ou seja, mapear e organizar os usuários que gostam disso ou daquilo, precisa fixar sujeitos a certas performances e representações digitais (objetos) afim de garantir regularidade de produção de conteúdo, de compartilhamento e de engajamento. Se a pulsão enlaça objetos possíveis para seu deslocamento, as redes apresentam uma fixação da possibilidade de enlaçamento.

No caso do desenvolvimento do Eu da criança isso pode significar conflitos e sintomas já específicos do universo digital. Quando pensamos em nossos personagens, através da lente de análise que proponho aqui, é possível dizer que há um asfixiamento da possibilidade de deslocamento do investimento pulsional. Principalmente quando a participação das crianças nas redes já sugere um comprometimento profissional. Aquilo que poderia ser brincadeira e experimentação, espaço de deslocamento do investimento pulsional e interiorização da falta

inerente a todos os objetos, coloca a participação da criança na sociedade como algo fixo em representações do universo digital.

Há ainda um problema caro a psicanálise e que parece se agudizar nessa fixação. Trata-se da dinâmica sintomática e co-dependente entre o desenvolvimento da criança e seu lugar de objeto na satisfação narcísica dos pais. Não obstante, é possível observar como a cultura das redes privilegia o Eu como estatuto de auto-suficiência, sua constituição afunilada pela captura e representação de selfies contínuas, o Eu aprisionado em sujeitos mobilizados pelo compartilhamento compulsório de si mesmos, narradores de si mesmos, transformando-se em coaches a partir de suas próprias experiências devidamente heróicas e de superação, o Eu não como passagem mas como entidade fixa, intransponível, sem porosidade capaz de experimentar e se constituir através da alteridade. Não a toa nossa timeline está repleta de uma multidão do mesmo.

No entanto, há uma contradição importante. A repetição do mesmo que as redes representam nos aparece sempre maquiada e com filtros que prometem a ilimitada experiência de prazer. Afinal, nas redes, é possível simular o quiser, ser o que quiser, os filtros são infinitos. Mas especialmente a demonstração do gozo é compulsória. É isso o que faz uma imagem viralizar. Diante desse cenário me pergunto, quais os destinos da pulsão em um contexto de fixações como as redes, onde a promessa de gozo parece asfixiar a falta? Se a pulsão não tolera a ausência de objetos e as redes, como realidade, prometem saciar a falta do objeto e a ausência do outro com a ininterrupta produção e consumo de imagens, a que tipo de pulsão estamos nos referindo? Seria, em alguma medida, a experiência nas redes análoga a pulsão de morte? O que estamos fazendo quando deslizamos os dedos na tela compulsivamente na espera impaciente por novas imagens? E quem produz tais imagens, como recebe essa demanda de seus seguidores que não toleram a falta? Pois, mais uma vez não consigo responder mas retomo à Freud com a lembrança de que “a satisfação irrestrita de todas as necessidades se apresenta como maneira mais tentadora de conduzir a vida, mas significa pôr o gozo à frente da cautela, trazendo logo o seu próprio castigo” (Freud, 2010, p. 32).


Notas:

1 https://institutopensi.org.br/o-suicidio-entre-criancas-e-jovens-esta-aumentando-o-que-voce-deve-saber-sobre- isso/

2 “Publi” é uma abreviação de publicidade. Trata-se de uma estratégia de marketing em que os influenciadores divulgam produtos ou serviços em seus perfis nas redes sociais em troca de remuneração

3 “Caixinha de perguntas” é um recurso do Instagram para se aproximar e conhecer melhor a sua audiência. Além disso ela serve como estratégia de engajamento.

4 https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/10/21/aos-3-anos-mini-picasso-alemao-expoe-em-galerias-e-ja- recebeu-lances-de-milhares-de-euros-por-suas-obras.ghtml


Bibliografia

DUNKER, Christian. Intoxicação Digital Infantil. In: Intoxicações Eletrônicas. Salvador: Ágalma, 2017.

FREUD, Sigmund. ObrascompletasVol.16:O Eu e o Id. São Paulo: Companhia das letras, 2011.

FREUD, Sigmund. ObrascompletasVol.16:A dissolução do complexo de Édipo. São Paulo: Companhia das letras, 2011.

FREUD, Sigmund. Obras completas Vol. 18: O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das letras, 2010.

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