A miragem das tecnologias opressoras

Um exame das inovações que impulsionam a captura da riqueza coletiva, consolidam o poder das corporações e sacodem o mundo do trabalho. E uma hipótese: enxergar na técnica a origem principal de nossos dramas ajuda a esconder (e a preservar) as relações sociais que nos oprimem

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Por Arnaldo Provasi Lanzara

Título Original:
A Digitalização das Economias e o Futuro do Trabalho e da Proteção Social

As transformações tecnológicas ligadas ao avanço da economia digital estão reconfigurando o capitalismo. O advento do chamado “capitalismo de plataforma” – um modelo econômico em que as empresas empregam tecnologia e infraestruturas digitais para produzir e explorar dados – vem alterando as relações de emprego, os padrões de produção/consumo e os comportamentos sociopolíticos, trazendo importantes desafios para os Estados nacionais.

Apesar dos paralelos com ondas passadas de mudança tecnológica, a onda atual é sem precedentes em sua velocidade e caráter exponencial. As inovações tecnológicas em diferentes áreas, como robótica, inteligência artificial e tecnologias da informação e comunicação reforçam-se continuamente impulsionando o ritmo da mudança. Atualmente, a velocidade das transformações que imprimem obsolescência a uma série de empregos é inédita se comparada aos períodos anteriores de “destruição criativa”. É certo que o desemprego sempre caracterizou os períodos de transição das economias capitalistas gerados pelas inovações produtivas; e várias economias políticas presenciaram, após esses períodos de transição, um círculo virtuoso entre aumento da produtividade, crescimento dos salários e expansão do consumo das famílias. Hoje a situação é bastante distinta: a produtividade cresce puxada pelas inovações tecnológicas, mas o mesmo não pode ser dito dos salários e do consumo das famílias (cada vez mais endividadas) e do próprio emprego.

Deve-se destacar, todavia, que a difusão global da economia digital ocorreu concomitantemente ao processo de liberalização das economias políticas, culminando na retração do Estado de Bem-Estar e no enfraquecimento dos sindicatos. A digitalização das economias vem suscitando importantes debates sobre o futuro do trabalho e dos sistemas de proteção social. Pairam dúvidas sobre quais aspectos da mudança tecnológica são realmente preocupantes e benéficos para o trabalho e a proteção social. As investigações sobre essas questões ainda são bastante incipientes. Grande parte da literatura está preocupada com a dimensão “quantitativa” do emprego, ou seja, em apontar quantos empregos são perdidos e ganhos em setores específicos da economia sob os efeitos da automação. Embora tal dimensão seja relevante, chamando a atenção para o fenômeno da rápida obsolescência de alguns postos de trabalho, é inegável que precisamos procurar explicações empíricas mais convincentes. A automação é parte de um problema mais geral decorrente não apenas da estagnação, mas da supressão dos salários: um resultado ativamente buscado e projetado por formuladores de políticas que, desde o final da década de 1970, convidaram e permitiram que proprietários de capital e gerentes de negócios atacassem a alavancagem e o poder de barganha dos trabalhadores, com o resultado inevitável de que aqueles no topo passaram a reivindicar uma parcela maior da renda.1

Crescente Poder das Big Techs e Enfraquecimento do Trabalho

É necessário apontar que a digitalização das economias não apenas acirra as tendências de desigualdade já estabelecidas, mas também cria novos riscos sociais ao reforçar a transmissão desigual das vantagens obtidas em termos de capital humano. Um fator crucial que influencia a associação entre mudança tecnológica e desigualdade é se o sistema educacional é capaz de neutralizar os impactos desiguais da mudança tecnológica. O atual crescimento das disparidades em distribuição de competências para enfrentar os desafios da digitalização (ocasionadas por investimentos educacionais extremamente desiguais, por exemplo) está reduzindo as aspirações dos indivíduos relativas ao seu status e inserção profissional. O fato é que se elevaram os custos de acesso às novas tecnologias e aos serviços que no passado, em decorrência da expansão das políticas nacionais de bem-estar, proporcionavam canais de mobilidade ascendente para os grupos em desvantagem – os serviços de cidadania, como educação, qualificação profissional e seguridade social–, levando a um fechamento de oportunidades.

As mudanças tecnológicas afetaram de um modo bastante desigual os diferentes grupos de trabalhadores. O risco de possuir um trabalho mal remunerado e obsoleto cresceu enormemente devido ao intenso processo de desindustrialização e automação do trabalho. No capitalismo digital do início do século XXI, as relações de emprego vêm se tornando cada vez menos rotineiras, mais desiguais e menos remuneradas, se comparadas ao padrão clássico de emprego. Não por acaso, os riscos relacionados à automação do trabalho também estão se constituindo em elementos de ativação da recente onda de crescimento do conservadorismo social e político. O surgimento das forças da direita radical, em vários países, está relacionado a declínios reais e percebidos no status entre grupos da classe trabalhadora tradicional cujas perspectivas de mobilidade ascendente são fortemente condicionadas pelas forças da mudança tecnológica.

Além disso, diferentemente da “economia material”, as formas de emprego no espaço digital também têm obscurecido os limites fixados pela regulação do trabalho.Entre os novos empregos que surgiram com os avanços tecnológicos, estão os chamados empregos intermediados por plataformas digitais – em que todo o processo de trabalho é projetado para atender ao objetivo de não empregar diretamente nenhum trabalhador. Essas plataformas conseguiram minimizar sua dependência de obrigações legais para garantir que os trabalhadores desempenhassem suas funções conforme o fluxo da demanda por determinados serviços. Em parte, isso é alcançado por meio da inovação tecnológica, incluindo monitoramento próximo e a incorporação dentro de aplicativos de um sistema de classificação que transfere o poder arbitrário sobre os trabalhadores dos gerentes para os consumidores. Em suma, a emergência dessas novas modalidades de trabalho, além de ofuscar os vínculos de emprego e complicar a organização sindical, implicou uma mudança de paradigma das relações laborais não contemplada nos marcos tradicionais da regulação do trabalho, provocando um vazio jurídico em termos de proteção.

Cabe ainda frisar que grande parte da tendência de substituição do trabalho nas diversas economias não decorre da inevitabilidade dos processos de automação, e sim das estratégias de enxugamento dos custos trabalhistas das empresas, que não medem esforços para terceirizar e permitir o trabalho digital. As grandes beneficiárias da digitalização das economias políticas são as chamadas Big Techs. Assim, quanto mais clientes/vendedores/compradores uma plataforma reúne, mais atraente ela se torna, levando ao surgimento de monopólios digitais, cujo poder econômico é cada vez mais refletido em influência política desproporcional. A ideia de custos marginais zero que caracteriza o funcionamento dessas empresas significa que uma vez que estas passam a superar os enormes custos para iniciar suas operações (para se tornar uma plataforma predominante para venda de serviços, por exemplo), sua expansão subsequente segue com poucos custos adicionais. Facebook, Amazon e Uber são exemplos disso. Eventualmente, isso implica economias de escala muito maiores na produção e novos níveis de desigualdade. Ademais, a essência do capitalismo de plataforma, no qual se baseia o “modelo de negócios” das Big Techs, é vender previsões de comportamentos de compra. É importante salientar que essas empresas adquiriram musculatura aproveitando-se das lacunas regulatórias existentes na economia globalizada, burlando a legislação fiscal dos governos nacionais e, em alguns casos, fechando acordos com esses governos para reduzir seus compromissos tributários. A capacidade dos governos nacionais para tributá-las tem sido muito limitada; e as implicações negativas para o financiamento das políticas do Estado de Bem-Estar Social são evidentes.

Digitalização, individualização da proteção e perda da capacidade de planejamento do Estado

Outra dimensão relevante a ser destacada são os efeitos da digitalização das economias políticas para as políticas de bem-estar social. Na área de educação, por exemplo, sistemas e fluxos de dados interoperáveis ​​e automatizados estão sendo implementados para impulsionar uma série de mudanças nas práticas pedagógicas. As linhas de produção de conhecimento entre as políticas públicas de educação e a gestão escolar estão se tornando cada vez mais confusas, quando, por exemplo, dados de sala de aula gerados por novas tecnologias digitais são reaproveitados para definir as “melhores práticas” de aprendizagem. Em vez de simplesmente aumentar a capacidade de resposta do sistema educacional a novas necessidades emergentes, esses sistemas podem, a longo prazo, aumentar a dependência do Estado em relação a produtos de hardware fornecidos por atores com evidentes interesses comerciais.

Mercados de seguros de vida, previdência e saúde também estão se utilizando das tecnologias digitais para criar aplicativos de rastreamento remoto e compartilhar informações sobre o comportamento dos indivíduos. As informações obtidas por meio desses canais permitem que as empresas ofereçam planos de seguro direcionados individualmente, com base em classificações detalhadas de risco. As gigantes globais do setor de seguros, auxiliadas pela arquitetura algorítmica da rede (fornecida pelas grandes Big Techs), estão introduzindo apólices que calculam prêmios com base em dados coletados por um “rastreador de atividades”, o qual é entregue a um segurado quando este adquire um plano. Assim, indivíduos com riscos abaixo da média estão recebendo incentivos financeiros para divulgarem informações pessoais e obterem prêmios mais baratos. As grandes seguradoras, por sua vez, aproveitam-se dessas novas tecnologias para aumentar sua eficiência e evitar os problemas de seleção adversa, facilitando as opções de entrada de grupos com baixos riscos (e alto potencial de pagamento) e de saída (expulsão) de grupos de alto risco. Cabe destacar que o seguro social público surgiu não por razões de “eficiência”, e sim para resolver problemas de coordenação relacionados ao compartilhamento coletivo e solidário dos riscos. As implicações dessas novas tecnologias para os sistemas de seguridade social não são nada desprezíveis; elas podem tornar os sistemas públicos cada vez mais contestados ao ampliarem as alternativas privadas e individuais de bem-estar, reduzindo assim a sensibilidade da população aos riscos coletivos e à redistribuição.

Por fim, é necessário reconhecer os interesses econômicos concorrentes e ambíguos que entraram no espaço digital do Estado com as chamadas “estratégias de governo aberto”. A ausência de regulação e controle dos governos permite que essas estratégias se transformem em estímulos para alavancar empresas de tecnologia cujos interesses são comercializar dados públicos e mercantilizar serviços sociais. As discussões sobre a proteção pública de dados e a infraestrutura digital do Estado, portanto, adquirem grande importância no atual cenário, visto que os riscos da ausência de controle por parte dos governos são enormes e dizem respeito à redução da informação para o setor público produzir políticas e, consequentemente, à perda de capacidades estatais de planejamento e aprendizado em áreas estratégicas da ação governamental.

1 Ver: Mishel, Lawrence and Bivens, Josh. “Identifying the policy levers generating wage suppression and wage inequality”. Economic Policy Institute, May 13, 2021. Disponível em: https://www.epi.org/unequalpower/publications/wage-suppression-inequality/

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