IAs sonham com humanos elétricos?

Automação pode impactar 25% dos empregos no mundo. Mas questão central é quem define suas bases, pois seus efeitos não se limitam à reorganização de tarefas: transformam subjetividades e modos de trabalhar e de existir. O futuro, longe de aberto, está sendo programado

Imagem: Designculture
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Nas últimas décadas, o mundo do trabalho passou por mudanças profundas, muitas vezes tratadas como inevitáveis ou neutras. Flexibilização, terceirização, desregulamentação — termos que foram entrando no vocabulário das políticas públicas, das empresas e do cotidiano dos trabalhadores como se traduzissem modernização, mas que, na prática, resultaram em maior insegurança e perda de direitos para grande parte da classe trabalhadora. A ascensão da Inteligência Artificial se insere nesse processo. Mais do que uma ruptura, ela parece acelerar tendências que já vinham se consolidando: concentração de poder, invisibilização de vínculos e transformação do trabalho em dados, métricas e disponibilidade permanente.

Uma matéria do ICL Notícias sobre um relatório da OIT aponta que 25% das ocupações no mundo podem ser impactadas pela IA. A matéria é informativa, mostra que as profissões mais atingidas estão nas áreas administrativas e de atendimento, onde há predominância de mulheres. Também diz que países de alta renda serão mais afetados. A solução sugerida é a mesma de sempre: qualificar, adaptar, seguir em frente. Mas há algo que incomoda — como se o problema estivesse nas pessoas, não no capitalismo que as empurra pra fora.

No Brasil, onde o trabalho formal some com grande velocidade, a IA não chega como inovação que melhora a vida. Se apresenta com mais um pressão. Aqui, as plataformas digitais transformaram o trabalho em tarefa: sem vínculo, sem jornada, sem direito. O aplicativo é o patrão e o trabalhador é jogado num jogo de pontuação sem fim. A promessa de autonomia virou uma cilada. A IA apenas organiza e intensifica o que já estava em curso: mais controle, menos proteção, menos espaço para respirar e mais exploração. O que antes era precarização, agora vem travestido de personalização algorítmica.

Quando se diz que a automação ameaça os empregos, parece que o problema são as máquinas. Mas o que está em jogo é um modelo econômico que, há tempos, vem reduzindo sua dependência do trabalho humano estável e protegido — não por necessidade técnica, mas por escolha política e lógica de rentabilidade. A tecnologia apenas dá forma nova a uma exclusão já em curso. A lógica produtiva do capital — que já vinha desaquecida há décadas — encontrou na IA um novo modo de contornar sua própria estagnação. Não é a tecnologia que expulsa, é o capital que não consegue (ou não quer) mais empregar de forma digna. A automação entra como narrativa justificadora, quase moral, de uma exclusão planejada. A crítica não está em negar a tecnologia, mas em recusar o uso político que se faz dela.

O discurso sobre a digitalização do trabalho ganhou status de destino inevitável. No entanto, para quem já vive sob as dinâmicas das plataformas, o digital não aponta para um horizonte de emancipação. Aponta para um cotidiano de controle intensificado. Entre entregas, corridas e avaliações, o trabalhador é integrado a um sistema que coleta, mede e julga em tempo real. Os algoritmos não apenas organizam tarefas: instauram um novo regime de comando, opaco e ininterrupto. Não há negociação, apenas performance. A tecnologia, nesse cenário, se alia à lógica de exploração e não à promessa de liberdade.

Na lógica do capitalismo de vigilância descrita por Shoshana Zuboff, a Inteligência Artificial não apenas recolhe dados — ela molda comportamento. Sua arquitetura opera como um poder instrumentário: uma nova forma de dominação que transforma a experiência humana em matéria-prima para fins comerciais. Não se trata apenas de saber o que fazemos, mas de induzir o que faremos. É esse deslocamento — da predição para a modificação — que marca a nova fase do capitalismo digital. A IA, nesse regime, não serve ao usuário: serve ao mercado de comportamentos futuros. Cada gesto, cada escolha, cada hesitação vira dado — e o dado vira lucro. O trabalho é capturado não só como produção, mas como conduta: é extraído do corpo, da atenção, da emoção, da rotina. Nessa economia, somos menos sujeitos do que fontes — menos trabalhadores do que alvos de uma máquina de antecipação e indução.

Do outro lado, a falsa promessa de um futuro sem trabalho — aquele velho mito dos robôs substituindo todos os humanos — segue reaparecendo. Mas como argumenta outro importante nome na pesquisa do mundo do trabalho, o sociólogo Aaron Benanav, o que define nosso tempo não é uma revolução tecnológica descontrolada, mas sim uma crise estrutural de baixo crescimento, baixa produtividade e alto desemprego. O capital estagnado recorre à automação não porque precisa, mas porque não consegue mais expandir de outra forma. E, nesse processo, repassa ao trabalhador o custo da transição, como se fosse falha individual não acompanhar o ritmo.

A aceleração tecnológica, articulada ao desmonte das estruturas coletivas de proteção, não apenas transforma o trabalho — reconfigura o campo do imaginável. A IA, nesse contexto, opera menos como inovação e mais como manutenção: reforça um presente gerenciado, onde a mudança estrutural é percebida como improvável ou indesejável. Mark Fisher não tratava o realismo capitalista como ideologia no sentido clássico, mas como um clima afetivo e cognitivo — uma colonização dos desejos e da percepção temporal. O que se perde não é só o emprego, mas a possibilidade de pensar o mundo de outro modo. O futuro é capturado antes de nascer, e devolvido sob a forma de atualização automática. A criatividade se esvazia em produtividade, o gesto em performance quantificável, o tempo em uma linha contínua sem rasura.

Discutir a Inteligência Artificial exige sair do terreno técnico e entrar no campo das decisões políticas. Está em jogo um projeto de sociedade, uma lógica de poder, uma disputa por direção histórica. A pergunta central não é se a IA vai criar ou eliminar empregos, mas quem está definindo seus usos, com que valores, e a serviço de quais interesses. Seus efeitos não se limitam à reorganização de tarefas: atingem diretamente a constituição das subjetividades, as formas de vida, os modos de trabalhar e de existir. O futuro, longe de aberto, está sendo programado.

Os algoritmos não apenas organizam tarefas: instauram um novo regime de comando, opaco e ininterrupto. Não há negociação, apenas performance. A tecnologia, nesse cenário, se alia à lógica de extração contínua — moldando um ambiente em que o trabalhador é reduzido a métrica. O dado da OIT, que estima o impacto da IA sobre um quarto das ocupações globais, não indica apenas uma tendência. É o sintoma de um processo em curso que combina precarização e automação, sob o disfarce de neutralidade técnica e o impulso de um determinismo que naturaliza a exclusão como se fosse progresso.


Fontes:

ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância: A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de Eduardo Carneiro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

FISHER, Mark. Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Tradução de Gabriela Ventura. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

BENANAV, Aaron. Automação e futuro do trabalho. Tradução de Pedro Davoglio. Publicado originalmente em New Left Review (nº 119, set/out 2019). Versão em português disponível na revista digital DMT – Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, 2021.

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