IA e a hipocrisia das democracias liberais
Ocidente usa pretextos bizarros para frear o desenvolvimento tecnológico chinês. Visões de ex-executivo da OpenIA, que defende sabotagens a Pequim, são reveladoras. Mas pode ser tiro no pé, estimulando inovações criativas e a tecnodiversidade no Sul global
Publicado 20/02/2025 às 19:42
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No ensaio On DeepSeek and Export Controls [^2], Dario Amodei , ex-executivo da OpenAI e atual CEO da Anthropic, defende a necessidade de controles mais rigorosos de exportação de chips avançados para a China. Amodei, um dos principais nomes no campo da inteligência artificial, é conhecido por sua postura pró-regulação e seu foco em questões éticas e de segurança relacionadas ao desenvolvimento de IA. No texto, ele argumenta que tais controles são cruciais para manter as democracias ocidentais — os chamados “países livres” — à frente na corrida tecnológica global.
O ponto de partida de Amodei para essa discussão é a recente ascensão da DeepSeek, uma empresa chinesa de IA que tem chamado atenção por seus modelos avançados. A DeepSeek, fundada por engenheiros talentosos e apoiada por investimentos estratégicos, conseguiu desenvolver modelos competitivos com recursos limitados, desafiando a hegemonia das empresas ocidentais como a Anthropic e a OpenAI. Esses avanços levantaram debates sobre a eficácia das políticas de controle de exportação e a capacidade da China de inovar mesmo sob restrições.
No entanto, o contexto dessa discussão vai além de uma simples análise técnica. Recentemente, o mercado global foi abalado por eventos dramáticos que evidenciam a volatilidade das disputas tecnológicas. No dia da posse de Donald Trump, com o anúncio do ambicioso projeto Stargate , as ações da Nvidia e das Big Techs sofreram uma queda histórica, resultando em uma perda estimada de US$ 1 trilhão em valor de mercado. Além disso, os 100 homens mais ricos do mundo perderam bilhões de dólares em um único dia, refletindo o impacto das tensões geopolíticas e das incertezas sobre o futuro da IA. Esses eventos destacam como a corrida tecnológica entre EUA e China não apenas molda o desenvolvimento de IA, mas também afeta profundamente a economia global e as dinâmicas de poder.
Uma análise crítica revela que alguns dos argumentos centrais de Amodei são problemáticos e refletem uma visão estreita e ideologicamente carregada do cenário global. Essa perspectiva, ao negligenciar a resiliência da indústria chinesa e o potencial da colaboração internacional, levanta sérias questões sobre a eficácia e a justiça de sua proposta.
O mito dos “países livres”
Amodei parte do pressuposto de que somente as nações que compartilham dos valores liberais seriam capazes de inovar e liderar a IA de forma ética e segura.
Essa ideia, no entanto, não encontra ressonância universal. O conceito de “país livre” é uma construção ideológica que ignora os avanços tecnológicos e as rotas de desenvolvimento que emergem de outras regiões – inclusive do próprio sistema chinês, que demonstra autonomia e criatividade em seus investimentos em tecnologia [^1]. Ao priorizar esse modelo, Amodei reforça uma visão que busca a manutenção da hegemonia ocidental, em detrimento do reconhecimento de abordagens diversas que poderiam impulsionar a inovação global.
Contrariando essa narrativa, a ascensão da China como potência global se dá por meio de investimentos estratégicos, talento humano e inovação local, e não como uma ameaça a ser contida. A própria DeepSeek, empresa chinesa recentemente destacada por Amodei, demonstra isso ao alcançar resultados impressionantes com recursos limitados, graças a inovações técnicas como o gerenciamento do Key-Value cache e o uso de Mixture of Experts, que otimizam o desempenho computacional [^3]. Esses exemplos ilustram que o progresso tecnológico não segue uma trajetória única ou universal. Diferentes culturas e regiões podem trilhar caminhos únicos no desenvolvimento tecnológico, adaptando-se às suas próprias realidades e prioridades. Modelos como o ERNIE da Baidu, por exemplo, mostram como a compreensão profunda de contextos culturais específicos pode levar a avanços significativos com menor consumo de recursos [^9].
Export Controls – Uma solução única e anacrônica
Outra premissa central de Amodei é que os controles de exportação sobre chips avançados seriam a ferramenta indispensável para impedir que a China conquiste uma vantagem tecnológica – e, por extensão, militar. No entanto, essa abordagem simplifica uma realidade complexa. Medidas restritivas tendem a estimular a autossuficiência tecnológica, acelerando o desenvolvimento de alternativas locais. A experiência chinesa, evidenciada por iniciativas como a DeepSeek e a integração de chips de última geração na Huawei, ilustra essa dinâmica [^4]. O país tem trilhado um caminho próprio, investindo pesadamente em pesquisa e desenvolvimento para reduzir custos e aumentar a competitividade. Em 2024, 40 das 68 empresas chinesas do setor reportaram aumentos superiores a 50% em seus lucros, evidenciando que as restrições não estão cerceando o progresso tecnológico chinês, mas impulsionando seu crescimento interno [^5].
Além disso, a ideia de que é impossível esconder $10 bilhões, $100 bilhões de dólares de atividade econômica ou fisicamente contrabandear milhões de chips é altamente questionável, dado o histórico de sanções contornadas por nações emergentes. Aqui, vale destacar que políticas como os controles de exportação ignoram a pluralidade de epistemologias e práticas tecnológicas que existem fora do Ocidente. Ao restringir o acesso a tecnologias avançadas, essas políticas não apenas reforçam a hegemonia tecnológica ocidental, mas também impedem o surgimento de alternativas que poderiam enriquecer o desenvolvimento global da IA. Em vez de tentar manter o Ocidente à frente na corrida tecnológica, seria mais produtivo promover uma colaboração internacional que reconheça e valorize as contribuições de diferentes culturas e epistemologias.
A colonialidade do caber nas Scaling Laws
Amodei recorre a conceitos como scaling laws (leis de escalonamento) e shifting the curve (mudança da curva) para sustentar a ideia de que a economia da IA se resume a uma questão quantitativa – custos e investimentos [^2]. Esta abordagem revela uma profunda colonialidade do saber, em que o pensamento
tecnocêntrico-ocidental é apresentado como universal e inevitável. Para compreender esta crítica, é necessário entender esses conceitos:
• Scaling Laws: Referem-se à relação entre o tamanho dos modelos de IA (redes neurais) e seu desempenho. Simplificando, quanto mais dados e poder computacional são empregados para treinar um modelo, melhor tende a ser sua performance.
• Shifting the Curve: Este termo alude à ideia de mover ou alterar as curvas que representam o desempenho ou eficiência dos modelos à medida que mais recursos são aplicados, sugerindo que ganhos em eficiência podem ser obtidos ao aumentar os investimentos em tecnologia.
No entanto, esta perspectiva reflete um viés epistemológico ocidental que:
• Privilegia uma visão linear e quantitativa do progresso.
• Ignora formas alternativas de desenvolvimento tecnológico.
• Desconsidera a importância dos conhecimentos locais e práticas culturais diversas.
• Reproduz uma lógica extrativista de recursos e dados.
Por exemplo, enquanto o Ocidente foca em scaling laws baseadas em poder computacional bruto, iniciativas como o modelo ERNIE da Baidu [^9] demonstram como a compreensão profunda de contextos culturais específicos pode levar a avanços significativos com menor consumo de recursos. Similarmente, o desenvolvimento do Llama 2 pela Meta [^10] mostrou que modelos menores e mais eficientes podem superar modelos maiores em várias tarefas, desafiando a premissa básica das scaling laws.
A hipocrisia militar dos EUA
Amodei sugere que os controles de exportação são essenciais para evitar que regimes autoritários, como o chinês, usem IA para fins militares e agressivos [^4]. No entanto, essa preocupação seletiva ignora o histórico dos próprios EUA em utilizar tecnologias avançadas para fins militares e expansionistas. Desde a Guerra do Vietnã até as intervenções no Oriente Médio, os EUA têm sistematicamente usado sua superioridade tecnológica para justificar intervenções militares que muitas vezes resultaram em devastação humana e instabilidade regional [^1].
Além disso, os EUA têm sido pioneiros no desenvolvimento de IA militar, incluindo drones autônomos, sistemas de vigilância massiva e ciberarmas. Essas tecnologias não apenas amplificam o poder militar americano, mas também criam precedentes perigosos para uma corrida armamentista global. Por exemplo, a criação de sistemas de IA capazes de tomar decisões letais sem intervenção humana tem sido criticada por especialistas como uma ameaça à ética e à segurança internacional [^2].
Aqui, vale destacar que a narrativa ocidental sobre segurança global frequentemente ignora as consequências éticas e humanitárias do uso de tecnologias militares avançadas. A hipocrisia fica evidente quando os EUA, enquanto condenam o uso de IA por regimes autoritários, continuam a expandir seu próprio arsenal tecnológico sem transparência ou responsabilidade.
Rumo a uma Nova Ordem Multipolar e Colaborativa. Uma utopia distante?
A defesa de controles de exportação apresentada por Amodei, ao se apoiar em premissas como a superioridade dos “países livres” e a ameaça existencial dos chips, acaba reforçando narrativas que servem a um imperialismo digital [^1].
Enquanto o Ocidente parece insistir em um status quo que privilegia seus interesses, a China demonstra, por meio de avanços como os da DeepSeek e da Huawei, que é possível trilhar um caminho próprio de inovação.
As propostas de incentivo à pesquisa aberta, criação de padrões éticos globais, investimento em educação e fomento ao desenvolvimento sustentável [^5] soam como um roteiro para um futuro ideal. No entanto, a persistência de um colonialismo arraigado e a primazia dos interesses econômicos imediatos no Ocidente lançam uma sombra sobre a viabilidade dessas medidas. A história demonstra que a existência de soluções racionais e o consenso sobre sua eficácia não são garantias de sua implementação, especialmente quando confrontam estruturas de poder consolidadas [^16].
A descolonização da tecnologia requer mais do que apenas resistência às políticas restritivas ocidentais – demanda uma reformulação fundamental de como concebemos o progresso tecnológico e seus objetivos. Isso inclui:
1. Reconhecimento da pluralidade epistemológica no desenvolvimento tecnológico.
2. Valorização de métricas qualitativas além das quantitativas.
3. Integração de perspectivas não ocidentais na governança da IA.
4. Desenvolvimento de tecnologias que respeitem e preservem a diversidade cultural.
Nesse contexto, a busca por uma ordem mundial verdadeiramente multipolar e colaborativa pode se revelar uma utopia distante, desafiada pela relutância do Ocidente em abandonar um modelo que, apesar de suas falhas, continua a beneficiá-lo. No entanto, há razões para esperança. A crescente conscientização sobre a necessidade de tecnodiversidade – a ideia de que diferentes culturas podem contribuir para o desenvolvimento tecnológico de maneiras únicas e complementares – oferece um caminho para um futuro mais inclusivo. Como destacado no livro Tecnodiversidades, os povos do Sul global têm muito a oferecer ao reimaginar a tecnologia como uma ferramenta de emancipação e transformação social, conectando saberes locais com inovações globais [^7].
Glossário:
1. Colonialidade do Saber: Perspectiva crítica que questiona como o conhecimento ocidental é apresentado como universal, ignorando outras formas de saber.
2. Leis de Escalonamento : Propriedade dos modelos de IA onde aumentar o treinamento (dados, hardware) resulta em melhorias consistentes no desempenho.
3. Key-Value Cache : Mecanismo usado em modelos Transformer para armazenar informações intermediárias durante o processamento.
4. Mixture of Experts : Técnica que divide um modelo em múltiplas “especialidades”, permitindo que diferentes partes lidem com diferentes tipos de dados.
5. Aprendizado por Reforço : Método de treinamento de IA onde o modelo aprende por tentativa e erro, recebendo recompensas ou penalidades.
6. Crossover Point : Ponto inicial em uma nova abordagem tecnológica onde pequenos investimentos trazem grandes ganhos de desempenho.
7. Modelo Pré-treinado : Modelo de IA pré-treinado em grandes volumes de dados genéricos, que pode ser ajustado para tarefas específicas.
Referências:
[^1]: Hora do Povo – Oligarcas de Trump apavorados com “concorrência” da China: https://horadopovo.com.br/oligarcas-de-trump-apavorados-com-concorr-encia-da-chi na-socialista/
[^2]: Dario Amodei – On DeepSeek and Export Controls: https://darioamodei.com/on-deepseek-and-export-controls#fn:9
[^3]: DeepSeek gera informações raras sobre armas biológicas, diz CEO da
Anthropic: https://epocanegocios.globo.com/inteligencia-artificial/noticia/2025/02/deepseek-ger a-informacoes-raras-sobre-armas-biologicas-diz-ceo-da-anthropic.ghtml
[^4]: Dario Amodei — On DeepSeek and Export Controls | Leo Ferreira: https://pt.linkedin.com/posts/leoferreira_dario-amodei-on-deepseek-and-export-contr ols-activity-7290815285035458561-a-1k
[^5]: Roberto Dias Duarte – O Futuro da Inteligência Artificial:
https://www.robertodiasduarte.com.br/o-futuro-da-inteligencia-artificial-a-s-tres-obser vacoes-de-sam-altman/
[^7]: Ação Educativa – Inteligência Artificial Generativa: https://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2024/11/Inteligencia-Artificial-Gener ativa-discriminacao-e-impactos-sociais_com
[^9]: ERNIE – Baidu’s AI Model: https://ernie.baidu.com
[^10]: Llama 2 – Meta’s Open Source Model: https://ai.meta.com/llama/
[^16]: The Shift – Estamos atingindo os limites das leis de escalonamento da IA?: https://theshift.info/hot/fim-da-scaling-laws-impaciencia-artificial/