Direitos Humanos: Labirintos em tempos de IA
Com avanços, a IA pode emular a cognição humana – e até mesmo afetos. E novos potenciais transumanistas se abrem. Além de leis, talvez seja preciso refletir mais profundamente sobre o que é ethos humano, e como assegurar direito, frente ao poder (e mutações constantes) da tecnologia
Publicado 11/06/2025 às 19:54 - Atualizado 11/06/2025 às 19:55

Debaterei aqui uma abordagem bioética distinta dos enfoques habituais sobre os Direitos Humanos, com questões suscitadas pela chegada das tecnologias de informação no mundo da vida prática. Com este horizonte, para além da relação dos conhecidos e debatidos direitos, a permanência infindável da luta contínua pela defesa e demarcação do humano torna-se agora ainda mais necessária, dadas as características de um conjunto de objetos tecnológicos que, mais do que nunca, borram as nossas fronteiras ontológicas. Na longa relação que temos de nosso desenvolvimento em simbiose com nossas criações tecnológicas, nunca estivemos tão próximos de nos confundir, ou de nos comparar, com esses objetos como agora. As máquinas que resultaram do período da revolução industrial espelham e reproduzem habilidades mecânicas e aspectos motrizes e de força que encontramos em muitos outros animais além de nós mesmos. Mas, neste momento, aquilo que mais nos define e distingue no reino dos seres vivos vem sendo continuamente anunciada ao humano comum como a característica principal deste objeto tecnológico, e o confrontado para uma existência conjunta: a inteligência.
Para uma melhor percepção do zeitgeist
Há pouco mais de meio século, Hannah Arendt, em uma de suas principais obras, nos dá um tratamento peculiar sobre os perigos que rondam a condição humana. A autora deixa como tese central o fato de que pensar nesta condição, nesse momento da história, justamente se devia à possibilidade de se vislumbrar que esta estivesse ameaçada. Já no prefácio, ao apresentar o esforço da ciência de sua época em “tornar artificial a própria vida”, Arendt nos aponta três sinais históricos que a fizeram desenvolver essa hipótese. O primeiro seria o desejo de sair da Terra, manifesto nas comemorações e comentários na imprensa após o lançamento e permanência em órbita do primeiro satélite artificial. O segundo seria o anseio de interferir no nascimento, a partir da tentativa de criar a vida em uma proveta, com a possibilidade “de produzir seres humanos superiores”; e, por fim, a esperança de se prolongar a vida para além de cem anos. Esses aspectos de nossa vida, o nascimento, a morte e o nosso mundo, são as heranças seculares que recebemos e que marcam profundamente o que é a nossa condição, e que desejamos trocar por algo “produzido por nós mesmos”.
Hoje, a fundamental questão do nascimento, sob o ponto de vista em que primeiramente foi abordado esse problema pela filósofa, nos parece uma questão trivial. A inseminação artificial tornou-se uma prática corriqueira e o termo ‘fertilização in vitro’, ou o eufemismo ‘reprodução assistida’, tornaram mais elástica a aceitação do método desenvolvido pela ciência e já amplamente difundido em nossa sociedade. A melhoria das condições de vida pelo avanço sanitário do mundo urbanizado da segunda metade do século XX e as descobertas de novas tecnologias farmacológicas e terapêuticas deste mesmo período catapultaram a expectativa de vida para a proximidade do centenário nos países mais desenvolvidos. No entanto, a busca da imortalidade, ou pela vida além dos cem anos, tem conduzido a processos radicais na medicina ao final da vida e na própria aplicação de métodos científicos questionáveis sobre o que pode ser a nossa morte, com a possibilidade de manipulação genética que ultrapassa os limites de segurança e outras que intencionalmente retornam ao eterno e requentado tema da eugenia.
No plano filosófico, o novo nascimento em forma de avatar no mundo virtual e o debate em torno do pós-humano e do transhumano já pretende tratar de outra espécie. No entanto, se recuperarmos o argumento central de Arendt à época da redação do seu texto, vamos perceber que se inicia pelo espanto com a reação e os comentários relativos ao lançamento do primeiro satélite artificial colocado em órbita pelo homem. Deixar a Terra passa a ser uma das principais metas que a ciência aponta à humanidade e que, para Arendt, abalaria um dos fundamentos da nossa condição humana. A declaração que a assusta demonstra alívio ante o “primeiro passo para libertar o homem de sua prisão na Terra”. E ela atenta para o fato de que, embora banal, a frase é extraordinária, pois “ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a Terra como prisão para o corpo dos homens”.
E para onde foi esse desejo dos homens, da tecnociência do século XX, de deixar a Terra? Após as primeiras décadas de exploração do espaço e de missões à lua, o homem consegue atingir os limites do sistema solar mapeando sua anatomia. Mas poderíamos ainda comentar que a humanidade em geral continua almejando sair da Terra? Assim como se cumpriram outros avanços da ciência em relação ao nascimento e morte, como a fecundação em provetas e o manejo genético ou de moléculas oxidantes para uma vida longeva, podemos ainda dizer que os homens querem deixar a Terra? Desistimos desse desejo? Ou já estamos deixando este mundo?
Sessenta anos após este sintoma anunciado por Arendt, o especialista e teórico de mídia Douglas Rushkoff nos conta uma história que seria assustadora para a filósofa. Convidado para fazer uma conferência sobre o futuro da tecnologia num resort superluxuoso, se surpreende ao ser recebido em uma sala reservada, onde falaria para apenas seis multimilionários do sistema financeiro. Após perguntas introdutórias sobre as tecnologias disponíveis, Rushkoff entendeu o que aquela pequena plateia queria saber naquela reunião, ao ouvir de um deles como deveriam se preparar para o evento.
O evento, nos explica Rushkoff, foi o eufemismo utilizado para designar o momento em que, nesse mundo já sem solução, “o desastre ambiental, a agitação social, a explosão nuclear, o vírus incontrolável ou os hackers-robôs destruirão a tudo”. Além de dúvidas de cunho prático operacional – como a questão do dinheiro digital, sem valor, para o pagamento de guardas ou robôs que protegerão seus refúgios – a questão central da sua entrevista passou a gravitar em torno da utopia pós-humana. Em nenhum momento houve qualquer alusão às possibilidades que a tecnologia poderia oferecer na resolução de questões centrais da humanidade; nada sobre as mudanças climáticas, ou o aumento do nível do mar, as migrações em massa, as pandemias globais, ou o esgotamento de recursos. Interessados em temas como a viabilidade de se colonizar Marte, de se frear e reverter os processos de envelhecimento e, por fim, a verdadeira e real possibilidade de transferir suas mentes para supercomputadores, o que ali se desejava era saber como “transcender inteiramente a condição humana” e, para isso, toda a revolução do mundo digital e “o futuro da tecnologia tem a ver com uma única coisa: escapar do humano”. Percebemos então que, mais ainda do que controlar o nascimento com técnicas artificiais, ou dominar os processos de envelhecimento para retardar a qualquer custo a morte, a humanidade conseguiu mais precocemente cumprir a promessa de sair da Terra. Não da forma como se esperava, em roupas especiais, com potentes foguetes, com imenso custo de energia para vencer uma poderosa atração que tenta nos trazer de volta, possível apenas para uns ou outros que conquistariam esse privilégio; mas em uma nova roupagem do real, de forma contínua e ubíqua, utilizando pequeninos dispositivos, que nos mantêm conectados e ampliados para a sensação de universalidade, de modo que todos permanecem nesse espaço. É assim que saímos da Terra; mas, como nos adverte Rushkoff, em total consonância com o texto de Hannah Arendt:
“É menos uma visão da migração da humanidade para um novo estado do ser do que uma busca de transcender tudo o que é humano: corpo, interdependência, compaixão, vulnerabilidade, complexidade. Como filósofos da tecnologia vêm apontando há anos, a visão transhumanista reduz muito facilmente toda a realidade a dados, concluindo que humanos não passam de objetos processadores de informação” (Rushkoff, 2018).
Ao contar essa história, pretendemos demonstrar em que período e que condições nos chegam as transformações socioculturais da transição tecnológica nesta virada de século. É importante perceber que alguma forma de escolha de uma nova e, talvez, ampliada realidade está na raiz da formação também de um novo ethos.
O filósofo Luciano Floridi sedimenta décadas de seu pensamento a respeito deste momento em que vivemos, tratando de definir uma nova era para ajustar ao que todos chamam de Quarta Revolução Industrial. Depois de uma longínqua Pré-História, nossa geração seria aquela que estaria vivendo a transição da História para a ‘Hiper-história’, onde as tecnologias de informação e comunicação (TIC) fazem “toda a diferença entre quem éramos, quem somos e quem poderemos ser e nos tornar” (Floridi, 2014, p.1). Caracteristicamente, essa nova realidade onde passaremos a viver, batizada de ‘infosfera’ por este autor, necessitará de novas reflexões e conceituações tanto da filosofia da natureza, como de uma nova antropologia filosófica. A humanidade caminha, assim ele pensa, para uma entrada definitiva na era digital, sob um vaticínio que demarca esta era: somente uma sociedade que vive hiperhistoricamente pode ser ameaçada informacionalmente por um ataque cibernético. Somente quem vive pelo dígito pode morrer pelo dígito (“Only a society that lives hyperhistorically can be threatened informationally, by a cyber attack. Only those who live by the digit may die by the digit”).
Em sua robusta proposta de uma nova filosofia da informação, este elemento composto de dados vai assumir o papel de arché da realidade; essa sua ontologia será a estrutura de uma ética ampliada para a era digital, com uma ousada revisão do estatuto de agentes e pacientes morais. Tratando a todos os organismos informacionais como ‘inforgs’, declara em seu prefácio que tentará evitar qualquer discussão sobre questões políticas; desenvolvendo, então, o grande castelo de seu modelo fortemente apoiando-se na lógica. Resulta que percebemos seu cuidado, ao longo de cada capítulo e novo argumento, em justificar logicamente, sua oposição à outras visões éticas, mas fundamentalmente à ética das virtudes. Ao nosso entender, perceber esta como “intrinsicamente antropocêntrica e individualista” é um equívoco do ponto de vista metaético que confunde a sua interpretação da realidade, totalmente ancorada nos dados e na informação, com as escolhas morais que fazemos nós, os humanos; algo que não vem acoplado à estrutura lógica da realidade. Foi por decisão do desenvolvimento moral humano que se ampliaram os limites, a proteção e o cuidado ao paciente moral, característico à bioética e à ética ambiental. E não podemos dizer que isto está contido na estrutura de uma realidade do mundo natural. Os nossos conceitos morais estão encarnados nas formas da vida social, onde elegemos nossas vinculações morais e, consequentemente, as formas possíveis de prática social.
Essa é a consequência extremamente política de nossas escolhas éticas. Talvez por, declaradamente, se afastar disto, privilegiando a lógica dos dados como uma mathesis a estruturar a sua ética, seja possível dispersar a responsabilidade moral sobre um sistema híbrido, distribuído a multiagentes – como se governos, organizações não-governamentais, partidos políticos, grupos econômicos, empresas não fossem a presença social de ações humanas com responsabilidade individual. É importante esta demarcação, pois as escolhas políticas estarão na base de nossas preocupações de agora em diante, no assentamento social dessa potente tecnologia. E Floridi apresenta uma forte proposição para sua ética, assumindo desde o prefácio deste seu volume que um certo “liberalismo construtivo” está no cerne do seu pensamento.
A revolução anunciada da era da informação se estabelece de vez a partir da última década com o desenvolvimento de um conjunto de tecnologias de grande impacto na sociedade, sob a designação genérica de Inteligência Artificial (IA). As tecnologias de informação, no contato comum da vida do cidadão, participavam mais como mecanismos de suporte à gestão na utilização das tecnologias eletroeletrônicas; mas na virada da última década – a partir da expectativa do emprego ubíquo da IA, da total datificação da gramática social, da plataformização como organização do espaço das relações sociais – tornou-se claro o poder e controle sobre os dados como ponto central da questão. Paralelamente a isso, a exponencial velocidade do progresso específico da área computacional não vem dando espaço para o acompanhamento normativo legal assegurar o suficiente para a proteção individual, nem muito menos regular o impacto político das iniquidades que já se anunciam.
O canto da sereia, que a promessa do progresso tecnológico sempre nos oferece, aponta para o benefício que a humanidade desfrutará, com a redenção de seus problemas mundanos. No entanto, a história desde sempre, e mais claramente nos tempos modernos, tem nos demonstrado que a posse e o desenho do próprio desenvolvimento tecnológico estão vinculados ao controle e à manutenção das relações de poder. Assim, apesar do estrondoso avanço tecnológico do último século, tragicamente acentuamos mais a distribuição da riqueza produzida socialmente e mantemos grande parte da população mundial sem acesso a esses mais necessários recursos, nem às condições mínimas para a dignidade humana. E nesse contexto, apresentam-se as capacidades da IA, como a tecnologia que nos ajudará a solucionar todas as crises mundiais. Reconhecendo que essa sempre foi a promessa de outras ondas tecnológicas, esperamos pelo acerto com algo que irá nos redimir de nós mesmos.
Desde já, então, devemos localizar aquilo que é da ordem do discurso e as várias interpretações que se confundem com o conhecimento do objeto tecnológico. De saída, o engano se vislumbra aqui no frequente debate equivocado que aponta as polaridades de uma postura tecnofóbica ou tecnofílica relacionada à IA, mas também pretendendo um posicionamento neutro, em geral voltado às características puramente objetivas do mecanismo do objeto técnico. Observar como um instrumento isolado uma faca, uma máquina de costura ou um algoritmo para decisão terapêutica, sem a perspectiva de sua reprodução em um conjunto com o humano e suas relações sociais é um grande e ingênuo equívoco.
Muitos afirmam, em uma falácia que já se tornou lugar-comum, que o desenvolvimento tecnológico sempre produziu ondas de rejeição conservadoras ao longo da história, que exacerbam o seu risco frente ao futuro da humanidade, e isso nunca se consumou, mantendo o desenvolvimento tecnocientífico no seu curso de progresso contínuo. No entanto, defendemos o ponto de vista de que há, ao menos, duas fortes objeções a este argumento.
A primeira é que a história se esgota no presente em que estamos e não tem essa determinação como uma lei natural. Essa interpretação somente é possível pelo evidente viés de “discurso dos vencedores” que carrega este argumento, que não dá conta da extinção de povos, culturas e… histórias; fato que pode ser claramente exemplificado no enfrentamento basicamente tecnológico entre europeus e ameríndios nos últimos séculos, ou nos massacres contemporâneos com drones e IA.
O segundo ponto é que se não reconhecermos a possibilidade de risco de extinção pelas nossas tecnologias, devemos ignorar totalmente o nosso temor de autodestruição pelo arsenal nuclear, que ainda assombra as bases da geopolítica mundial; os riscos de criação de quimeras incontroláveis, pelo desenvolvimento de engenharia genética, que motivaram o conferência de Asilomar; e mais evidente ainda, esquecer todo o debate atual do antropoceno e do desastre climático, uma consequência direta da escalada tecnológica industrial.
Logo, entender a relação humana com o objeto técnico dentro da concepção evolutiva da epifilogenética, não comporta o caráter de continuidade a que se pretende dar segurança a uma cadeia de novas descobertas. Nenhum olhar sobre a história da técnica ou da tecnologia nos obriga ou impõe esse determinismo de progresso sempre inevitável que invalide o temor de um fracasso civilizacional. Pelo contrário, para alguns autores a exploração acelerada pela industrialização massiva da mnemotécnica, em sua reprodução para o investimento capitalista, poderia estar chegando a um ponto sem retorno, onde a tecnificação psíquica nos conduziria a uma crise da individuação e da temporalidade, para um mundo sem futuro (Stiegler, 2019).
Nesse momento, não estamos mais transformando tecnologicamente uma força da natureza, como a hidráulica; ou desenvolvendo braços mecânicos, que indistintamente funcionam da mesma forma em tantos animais. Nem aprendendo a usufruir de outras propriedades físicas como a eletricidade, ou a energia nuclear, que passamos a dominar com desejável segurança. Nem mesmo a matéria biológica, onde descemos aos dados básicos da bioquímica que codifica as formas de seres vivos. Mas lidamos agora propriamente com algo que nos caracteriza como humanos, que situa nosso lugar ontológico em qualquer concepção de universo que possamos considerar do momento sócio-histórico que vivemos. Estamos projetando na nossa criação tecnológica a emulação da nossa capacidade cognitiva, das nossas formas de razão e até mesmo do afeto. Desde o início da caminhada do pensamento ocidental, desde os antigos gregos, o que nos chega hoje ainda gira em torno do entendimento e conquista do logos.
Nesse entendimento entre as formas da nossa razão, é importante ressaltar a firme e segura defesa de valores ligados às características humanas em documento recente do maior pontífice da igreja católica. O Papa Francisco, em comemoração ao 57º Dia Mundial da Paz, publicou uma carta intitulada “Paz e Inteligência Artificial”, onde enumera os principais riscos das tecnologias de informação que ameaçam o conjunto da humanidade, entendida na sua dignidade intrínseca como uma única família. Ao longo de sua defesa da singularidade humana, ressalta o cerne de nossa ontologia, no espaço “inacessível que escapa a qualquer tentativa de quantificação”. Claramente um texto que, assumidamente inspirado no Verbo, desce à realidade do mundo encarnado e alerta para os mesmos temores laicos do vaticínio do Floridi: se no princípio foi o Verbo, que nosso fim também não se dê pelo logos.
Um novo empuxo para a bioética
E este momento se amplia para uma cosmovisão, com consequente adoção de novas abordagem epistemológicas, como a que chega ao mundo das práticas em saúde, o que passamos a denominar medicina de dados no vaticínio do médico e pesquisador Eric Topol, A destruição criativa da medicina 2013. “A medicina está prestes a passar por seu maior abalo na história […] pela primeira vez, podemos digitalizar humanos”. Uma sentença que claramente demarca a dataficação da medicina.
A “digitalização do humano” utiliza a leitura de dados funcionais objetivos rumo às expectativas de fecharmos a década com a conclusão de não precisar mais de médicos nem outros profissionais de saúde, com prevê Bill Gates. Tudo agora pode – ou terá – de ser lido, traduzido ou reduzido ao dado. Mesmo as questões ligadas aos processos mentais e psíquicos, estamos agora lidando com extração, processamento, fluxo e armazenamento de dados.
Assim, nos parece incontornável que a reflexão filosófica nos imponha mais atenção ao limite que nos separa de qualquer outra existência. As relações entre o humano e suas tecnologias nunca foram a ponto tão extremos antes, onde aquilo que propriamente nos caracteriza, a capacidade cognitiva, é apresentado em objetos técnicos que “se tornam independentes porque são tão perigosamente semelhantes a nós” (Malabou, 2019).
Construindo Direitos Humanos
Para trabalhar em uma proposta que se alinhe sob a chancela da defesa dos Direitos Humanos (DH) é preciso resgatara potência de uma reivindicação de justiça que está sendo considerada e trabalhada ainda no campo da moral. Concordando com a concepção sociológica praticamente hegemônica, de que os DH são construídos socialmente e não são o mesmo que direitos legais (Nash, 2015), destacando que a Declaração Universal de 1948, que “cristalizou 150 anos de luta pelos direitos” deve ser considerada “mais o início do processo do que o seu apogeu”, tendemos a aceitar que uma nova concepção de direitos para a humanidade começará justamente a partir do momento em que tomarmos consciência da necessária demarcação da fronteira ontológica que dá garantias a esses direitos.
Assim, pelo próprio delineamento do problema exposto, a grande primeira evidência que chamamos a atenção é o caráter de universalidade da questão que temos a frente neste momento da história. Esse ponto de partida, então, apresenta-se como a tarefa a ser defendida com o pressuposto de que, enfim, chegamos ao momento de uma evolução histórica em que não estamos mais defendendo formas de tonalidades ocidentais. De fato, não se trata de uma posição ocidentalizante, nem colonialista, nem liberal, nem burguesa, nem de defesa individualista. Entender a demarcação ontológica onde se localiza a defesa desse direito praticamente nos afastaria de críticas ou do equívoco de pautar as disputas no nível dos interesses de classes sociais ou multiculturais. Estamos, declaradamente, tratando de postular direitos que protejam e delimitem a totalidade das capacidades humanas, em contraposição a algo que lhe ameace o próprio ethos.
A retomada do argumento da universalidade como fundamento ganha força pelo seu caráter utópico, defendendo uma globalização já concebida contra-hegemônica em sua própria matiz: com o cosmopolitismo da humanidade como patrimônio comum a todos. Poderíamos, nessa perspectiva, encontrar inclusive o espaço para assumir o corpo de uma crítica ainda mais radical, que antecedesse assim as relações de conflito entre interesses individualistas de determinados direitos humanos, que são estruturantes do próprio capitalismo, e os considerados periféricos, os direitos políticos, sociais e coletivos, de caráter mais incidental.
A envergadura desta posição utópica, no entanto, deverá ter um caráter programático assentada no realismo, que desce ao plano da disputa programática pelo poder; não acreditando apenas na força do pensamento para transformar ideologias e a própria realidade. Essa chamada para uma utopia mais “científica”, que trabalhe no terreno do realismo político, deve reconhecer a necessidade da mobilização dos movimentos internacionais de DH para a radicalização do escopo de sua agenda, indo além do enquadramento individualista de privilegiar liberdades políticas e civis. Para além do gozo do bem-estar pessoal, a primazia da solidariedade social somente se dará a partir da luta pelo bem-estar econômico global. Esta é a forma do cosmopolitismo, fincada na luta pelo patrimônio comum da humanidade, que poderá intensificar as interações interregionais e ultrapassar os modelos de globalizações que perpetuam as condições do colonialismo nas relações entre Estados vigentes na relação Norte e Sul Global, vencendo os característicos vícios dos localismos globalizados e dos globalismos localizados.
E é justamente contra o avanço do colonialismo que vamos travar a nova luta que propomos para os DH. Um colonialismo que se apresenta no século XXI com uma reestruturação da dinâmica capitalista a partir da evolução dos processos de domínio econômico-social, pela cultura de gestão total da vida a partir da dataficação. Para além do que assistimos no período industrial com a transformação da atividade humana universal do trabalho em uma forma social de dimensão abstrata pela mercantilização do trabalho, o capitalismo da era digital pode ser concebido como um “colonialismo de dados, que está transformando a natureza humana (ou seja, correntes preexistentes da vida humana em toda a sua diversidade) em uma forma social recém-abstrata (dados) que também está madura para a mercantilização” .
Percebemos que os atuais esforços, de diversas entidades da sociedade civil, das mais distintas associações científicas e dos organismos estatais e supranacionais têm trabalhado na concepção de mecanismos regulatórios e de um corpo mínimo satisfatório de demarcações para o uso legal das tecnologias de IA. Há um exuberante movimento de construção de regimentos que tentam acompanhar o ritmo acelerado de descobertas da última década; uma nova cultura que vem expondo aceleradamente cada vez mais conflitos e fragilidades nas proteções tanto individuais quanto coletivas de direitos. Tratam, entretanto, de acomodar no arcabouço legal a já consumada produção dessas tecnologias na fase final de controle dos dados; o que acaba por resultar em priorizar a gestão da distribuição, um processo que traz em si as características de iniquidade deste próprio modo de produção. Com essa conduta, o caminhar da automação do processo de produção do capital, sem que a posse dessa produção pertença aos interesses sociais coletivos, fatalmente nos conduzirá à radicalização deste modelo econômico de concentração e nos afrontará com possibilidades de autonomia de uma tecnologia que promete superar e prescindir da humanidade.
É diante desse panorama, que se apresenta já há um longo tempo nos países desenvolvidos, atualmente amparada no discurso filosófico, como o do sueco Nick Bostron, de Oxford, e do futurista Raymond Kurtzweil, do Google a aplicação prática dos conceitos de pós-humano e transhumanismo. Embora a conquista dos Direitos Humanos ainda seja um campo de luta, a adoção da recente Declaração de Direitos Transhumanistas pelo Partido Transhumanista nos EUA dá o tom do projeto de superação dos nossos limites atuais, com uma retórica concentrada na transcendência individual. Em uma ampliação dos limites ontológicos para seres sencientes incluiríamos, além dos humanos, os geneticamente modificados; os ciborgues; as inteligências digitais; os animais intelectualmente melhorados, que não eram sapientes anteriormente; e qualquer espécie de planta ou animal aprimorada e que possua capacidade de pensamento inteligente; assim como qualquer outra forma de vida sapientes avançadas.
No preâmbulo desta Declaração, o que vemos é a epítome dos desejos de superação das nossas limitações, por aqueles que já alcançaram as garantias de seus Direitos como humanos. E a sequência de artigos demarca a força do individualismo descolado de qualquer relação ou controle social. Entre alguns exemplos, não devem existir restrições legais coercitivas que impeçam o acesso à extensão da vida e à expansão da vida a todas as entidades sencientes… Assim como Qualquer entidade senciente alterada, aumentada, cibernética, transgênica, antropomórfica ou avatar, derivada ou editada pela ciência, composta ou associada à tecnologia, terá o direito de existir, formar e ingressar na neocivilização.
Em um mundo onde ainda lutamos para assegurar os Direitos mínimos para uma grande parcela da população, cabe a questão se já devemos escapar de garantias universais e assegurar direitos para super-humanos; pois podemos perceber que no somatório dos artigos, há uma notável ausência de consideração da dinâmica socioeconômica para além do indivíduo.
Ainda no questionamento filosófico, Santaella comenta que “o pós-humano crítico recusa qualquer ramo da filosofia humanista que, postulando a unidade da essência humana, toma como segura a universalidade da natureza humana. Contra qualquer forma de universalismo ou de qualquer cenário fixo e eterno, o pós-humano reconhece a heterogeneidade, a multiplicidade, a contradição, o contexto, a objetividade situada como constitutivos do humano, do que decorre uma nova ontologia das instabilidades”. Pois me pergunto se justamente não é essa heterogeneidade, multiplicidade, contradição e, enfim, tecnodiversidade que desde sempre nos marcou, curiosamente ao final de sua própria sentença como “constitutivo do humano”; aquilo que só pode nos definir no conjunto da universalidade, porque assim determinamos nas nossas relações sociais.
Se não é nesse ponto que devemos recuperar para um humanismo radical, ou humanismo digital, com uma antropologia negativa, que nos assegure e proteja de tudo o que não somos.
Consideração final
O ponto de partida, então, deve ser uma nova partida. É preciso retornar aos fundamentos para justificar que pretendemos a proteção de toda a humanidade, buscando uma nova compreensão para novos sentimentos. Não pensamos ser suficiente adequar regramentos para o confronto das tecnologias de IA, concebendo a sua aceitação ao nível dos direitos como estão, arrolados na lista de artigos que dão sequência da primeira à quarta geração. Defendemos o desenvolvimento de um corpo de conhecimentos validados e a composição de uma proposta com um número mínimo e essencial de novos Direitos Humanos; anteriores até mesmo aos direitos de primeira geração, sendo considerados de mais alta intensidade.
A partir de uma renovada lista de ponderações e “considerandos” que demonstrem a demarcação da fronteira ontológica como o grande desafio atual, em sua maioria, trataríamos de Direitos negativos, pois, o que está em questão é o primado da definição e garantia de nossa natureza frente ao poder da tecnologia que nós mesmos criamos. Assumiríamos assim, como missão, o resgate de uma reivindicação primordial que dê garantias ao ethos da humanidade, antes que não mais possamos defini-la em sua dignidade intrínseca. Um avanço definitivo sobre a dívida histórica de fixar valores universais sem a dependência de arranjos históricos sociais ou de observação antropológica, mas construídos na legítima vontade de qualificar a humanidade como detentora de valor em si.
Não poderemos jamais ser comparados ou defrontados pela potência das tecnologias que criamos. Não podemos dar espaço no caráter que construímos para a nossa existência. O direito de ser limitado em nossas capacidades, imperfeito em seus comportamentos, inseguro em nossas relações, ter necessidades e depender da coletividade – o simples e intransferível direito de pertencer a humanidade. Os limites de nossas possibilidades é que devem demarcar o próprio limite do direito de ser humano.
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