Tarnoff: Convite para reimaginar a internet
Regulação não pode cair no fatalismo de que rede é domínio privado. Luta deve ser por infraestrutura digital comunitária e acesso universal, essenciais à emancipação coletiva. Mas exige pressão sobre o Estado para desprivatizar o mundo online
Publicado 17/06/2025 às 20:21 - Atualizado 17/06/2025 às 20:30

Ben Tarnoff em entrevista a Alba Correa, no El Pais | Tradução: Rôney Rodrigues
“Se a internet está quebrada, como podemos consertá-la?” Essa é a pergunta feita pelo escritor de tecnologia Ben Tarnoff em Internet para o Povo, livro de 2022 que examina a origem histórica da internet, com foco na propriedade da infraestrutura que a possibilita. Tarnoff oferece uma análise crítica e informativa, traçando a evolução da internet desde suas raízes como um projeto financiado pelo governo dos EUA até seu estado atual, dominado por gigantes da tecnologia, além de abordar os principais problemas que ela enfrenta hoje.
Ao mesmo tempo, o livro serve como um manifesto que defende alternativas ao atual modelo oligopolista. Tarnoff destaca diversos experimentos e iniciativas que exploram abordagens diferentes para o design, a propriedade e a governança das redes. Esses esforços iluminam um caminho relativamente inexplorado, no qual as próprias pessoas que usam a tecnologia diariamente podem participar ativa e democraticamente de sua gestão e desenvolvimento.
O título do seu livro fala em “o povo”. O uso da palavra “povo” em vez de “usuários” ajuda a resgatar um certo sentido de cidadania?
Como usuários, somos concebidos em um papel um tanto passivo em nossa capacidade. Isso limita nossa imaginação sobre que tipo de relação poderíamos ter com a esfera digital. A ideia de falar sobre de pessoas em vez de usuários é gerar o conceito de cidadania digital, mas também evoca uma coletividade política. O plural versus o individual. A internet geralmente nos interpela como indivíduos isolados em casa, diante de nossas telas, mas não acho que essa seja a única forma de interagir com a internet. A maioria das palavras que usamos para descrever aspectos do ambiente digital nos é fornecida pela indústria: plataforma, nuvem, até mesmo inteligência artificial. A indústria já está politizando a linguagem. Imagino o que aconteceria se fizéssemos o mesmo, desenvolvendo metáforas diferentes.
Você começa usando a metáfora dos “canos” — a infraestrutura que possibilita a internet. Por que, apesar de seu papel crucial, raramente falamos sobre eles?
Simplesmente presumimos que eles funcionam. É algo invisível até você receber sua fatura mensal de banda larga e pensar: “Por que isso custa tão caro?” Os EUA pagam algumas das tarifas mais altas do mundo por um dos piores serviços de internet, o que está ligado ao alto nível de concentração do mercado de banda larga no país. Precisamos prestar mais atenção porque há concentrações de poder muito importantes nessa camada, além de oportunidades para intervenções construtivas que podem levar a internet a uma alternativa mais democrática.
O Estado deveria garantir acesso universal?
Certamente acredito que sim. Essas discussões parecem muito específicas, mas, ao debatê-las, percebemos que há questões de ordem superior por trás delas. Por exemplo, o significado da democracia. Pode parecer fora de contexto, mas, para mim, é importante porque quis basear meus argumentos não como uma intervenção política suficiente em um sentido tecnocrático restrito, mas sim nesses valores morais e políticos mais amplos que precisamos ter em mente ao pensar na governança da internet.
Se definirmos democracia em seu sentido original estrito — como a possibilidade de as pessoas se autogovernarem —, então precisamos de duas coisas. O primeiro princípio é que as pessoas tenham recursos para levar vidas autodeterminadas. Você não pode ter uma vida autodeterminada se estiver passando fome, sem-teto ou doente. Se aplicarmos esses princípios ao acesso à internet, podemos dizer que uma conexão de alta qualidade, rápida e confiável é um pré-requisito básico para a participação na sociedade moderna. Vimos isso durante a pandemia nos EUA, onde as pessoas se reuniam em estacionamentos públicos para conseguir acesso à internet, porque as crianças precisavam fazer lições, os pais precisavam acessar seguro-desemprego e os avós queriam conversar por Skype com os netos.
E o segundo princípio?
As pessoas precisam ter um grau de participação nas decisões que mais as afetam. Isso é impossível em um sistema privatizado. É assim que democratizaríamos os “canos” da internet.
Você aposta em um modelo de infraestrutura comunitária?
Nos EUA, temos centenas de redes comunitárias, de propriedade pública ou cooperativa, como as cooperativas rurais da Dakota do Norte. Elas oferecem velocidades maiores a custos menores do que as gigantes monopolistas. E, crucialmente, incorporam a participação democrática em suas operações cotidianas. Essas cooperativas surgiram durante o New Deal, quando o governo tentava eletrificar áreas rurais pobres, e recebem isenções fiscais federais. Para isso, precisam cumprir condições, como realizar eleições regulares para seu conselho. São entidades democraticamente geridas que prestam serviços a seus membros-proprietários. Isso nos EUA, mas redes assim existem globalmente, como o Guifi.net na Catalunha [Espanha].
Como a parceria entre o ex-presidente Donald Trump e o Vale do Silício impacta o cenário político nos EUA hoje?
A aquisição do Twitter por Elon Musk ilustrou os perigos de termos nosso ecossistema informacional tão vulnerável às pressões do mercado. Há uma tendência de tratar a internet como exceção. Sua natureza algorítmica transforma essas plataformas em mecanismos de disseminação de informações. O cenário atual é sombrio em muitos aspectos. Há uma percepção crescente desse aspecto fraudulento e descuidado de grande parte da internet contemporânea. Parece que a qualidade de nossa experiência online se degradou nos últimos anos. E parte disso, creio, é a proliferação de lixo gerado por IA. Não estou particularmente otimista sobre as perspectivas de mobilização em torno da internet, mas também não estou otimista sobre perspectivas de mobilização social mais ampla nos EUA. O primeiro mandato de Trump foi bastante politizador para muitas pessoas, mas o clima agora é bem diferente.
Você compara as grandes plataformas a um shopping center online. Temos a sensação de sermos consumidores quando as usamos?
O aspecto arquitetônico inspira essa metáfora. Shoppings são projetados para fazer você comprar, e há certos aspectos do layout das plataformas que incentivam comportamentos que podem ser monetizados por essas empresas. Mas o shopping é um espaço onde as pessoas têm um grau de liberdade, e isso é importante. Às vezes essas plataformas são apresentadas de forma conspiratória como máquinas de lavagem cerebral. Não é bem assim que funcionam. Na verdade, é importante que os usuários tenham a percepção de que são autônomos. Essa percepção pode não corresponder totalmente à realidade, mas eles têm graus de liberdade que tornam a experiência na plataforma prazerosa.
Se você fosse um adolescente americano crescendo nos subúrbios, frequentando shoppings, saberia que há um grau de liberdade nesses ambientes. Há jovens andando de skate onde não deveriam. Adolescentes que não compram nada e usam drogas no banheiro. Existem todos esses cantos e recantos nessas estruturas digitais onde uma certa dose de autonomia e criatividade é possível, o que deve ser celebrado. A questão, porém, é: como começar a desenvolver arquiteturas alternativas que possam substituir esses shoppings online ou reduzir o espaço que ocupam?
Qual é a dificuldade em fazer esses espaços digitais mais horizontais funcionarem?
Há problemas muito enraizados. Nos EUA, está relacionado ao declínio da vida comunitária, da vida cívica, dos sindicatos, associações de bairro, clubes… Há um esvaziamento da sociedade e um aumento concomitante do isolamento social que dificulta a coesão de certas formas de associação, especialmente a política, como ocorria ao longo do século XX.
Qual papel a regulamentação do setor desempenha na democratização da internet?
A regulamentação da internet pode produzir diversos efeitos, então precisamos ser precisos quanto aos objetivos. Meus objetivos são a criação de entidades de propriedade pública e cooperativa que possam incorporar os princípios da participação democrática em suas operações cotidianas e começar a assumir certas funções em nossa esfera digital que atualmente são desempenhadas por grandes entidades com fins lucrativos, seja no nível de provisão de serviços de internet (os chamados “canos”), seja em níveis superiores na organização de nossas atividades online no nível das plataformas. Essa seria minha declaração de missão.
Políticas públicas poderiam ser uma ferramenta poderosa para promover o desenvolvimento dessas alternativas e talvez provê-las com recursos extraídos das grandes empresas. Sou totalmente a favor dessa forma de redistribuição. Mas, na minha opinião, a regulamentação europeia parte do pressuposto de que a internet permanecerá como um domínio privado com fins lucrativos, e que o propósito é simplesmente estabelecer as regras do jogo e punir corporações que as violem. Não nego que possa ter alguns efeitos positivos, como na proteção de dados. Mas precisamos ampliar nossa imaginação sobre como usar as alavancas do setor público – orçamentos, subsídios, incentivos fiscais etc. – para cultivar a proliferação desse setor alternativo. Isso não vai acontecer por si só. Realmente precisa de várias formas de apoio estatal.
Resolver os problemas da internet é um teste para a imaginação?
Acredito muito no poder político da imaginação, mas imaginação não é algo que ocorre na mente de um indivíduo sozinho em seu quarto. A imaginação em sua plenitude é uma prática coletiva encarnada. É esse tipo de imaginação que precisamos para desenvolver um conjunto alternativo de instituições para nossa esfera digital. A privatização da internet, ocorrida desde meados dos anos 1990 até hoje, exigiu transformar essa rede construída pelo governo dos EUA em uma rede que servisse ao princípio de maximização de lucros. Portanto, se quisermos desenvolver um tipo diferente de internet que não seja privada, ou desprivatizar uma parte dela, esse processo precisa ser igualmente criativo. Trata-se de encontrar as formas adequadas de vida social e organizacional que possam governar a internet democraticamente.
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