Muito além de delinquência

Por trás dos saques na Inglaterra, decadência dos serviços públicos, domínio do Estado pelas finanças, sensação de desigualdade e desamparo

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Por Alessandro Dal Lago, no Liberazione. Tradução: Daniela Frabasile e Pep Valenzuela

Não surpreende que as revoltas que explodiram em quase todas as grandes cidades inglesas sejam recebidas pelo governo, pelos tablóides e pelos maiores meios de comunicação, pelo menos inicialmente, com os clichês habituais: além da referência óbvia a “bandos”, a instrumentalização dos protestos por criminosos, as “gangs jovens”, os “provocadores que chegaram de fora”e assim por diante. É o exorcismo de sempre frente aquilo que poderia ser mais ou menos previsto e que tem notáveis precedentes nas metrópoles ocidentais: dos riots de Los Angeles em 1992 até a explosão das periferias parisienses em 2005.

Uma rápida análise dos vídeos transmitidos pela BBC, ou por sites como os do The Guardian e Al Jazeera deixa claro, porém, que a realidade é completamente diferente. A revolta é capilar, amplamente espontânea, por mais que tenha sido facilitada pela disponibilidade de tecnologias de informação de baixo custo, e sobretudo transversal. Nas ruas, veem-se jovens encapuzados, adolescentes que enfrentam a polícia e gente de todas as idades que saqueia lojas. De toda origem e proveniência, mas se agrupam por viverem nos distritos mais pobres que rodeiam o centro privilegiado e de moda de uma das capitais financeiras do mundo.

Não surpreende que, além da polícia, muito odiada, o alvo dos saques sejam lojas como Sony, Foot Locker, McDonald’s, joalherias e magazines de grandes marcas. Ou seja, os símbolos tangíveis da opulência alta ou média de que, evidentemente, uma grande parte da população londrina está excluída. Exatamente como em Los Angeles em 1992, quando a população de South Central ocupou os bairros ocidentais e acomodados na metrópole. Ou em Paris, em 2005, quando os habitantes das “banlieues” atacaram a ferro e fogo os Campos Elíseos.

O saque está relacionado à luta de classes, em uma forma elementar e pré-política. Exatamente isso que o establishment inglês, exorciza falando de mero vandalismo, e as primeiras e tímidas vozes de especialistas de várias comunidades locais, ou ativistas sociais, começam a definir como aquilo que realmente é: reação aos cortes [de serviços públicos] impostos pelo governo conservador.

Por outro lado, as manifestações do ano passado contra o aumento das taxas universitárias eram um sinal do mal-estar juvenil diante da proletarização dos membros mais fracos das camadas médias. O bem-estar de uma das sociedades consideradas mais estáveis do Ocidente foi sempre uma imagem falsa. Ou melhor, é um bem-estar limitado aos que vivem das finanças e de seus derivados (comércio, informação, serviços, luxo, etc.), mas que não chega ao resto da sociedade, amplamente desindustrializada e empobrecida.

A proibição até das partidas de futebol, tradicionalmente considerado na Inglaterra como um esporte capaz de absorver os conflitos sociais e de geração, diz muito. Não se trata somente de uma medida de ordem pública. É um sinal de que a sociedade inglesa, por debaixo da aparência de seus rituais de massas, está profundamente em crise.

O que mais surpreende é que ninguém tenha relacionado as revoltas inglesas com a crise financeira, que há anos atinge o Ocidente e hoje parece prestes a converter-se em catástrofe. Londres particularmente, como terceiro centro financeiro no mundo, é a expressão do domĩnio das finanças sobre a economia real.

No mundo, o volume das transações financeiras é, hoje, seis vezes maior que o das trocas comerciais. O ataque à dívida pública, ou seja a soberania do Estado, por parte da especulação internacional, encontra somente as respostas habituais de uma política econômica recessiva e submetida às imposições das “agências de risco”, ou dos bancos norte-americanos e ingleses. Mas aonde podem levar os cortes das pensões, da formação superior, da segurança social e da assistência médica? Exatamente ao que está acontecendo na Inglaterra.

Nesse sentido, Londres e Birmingham, Bristol e Manchester antecipam o que inevitavelmente acontecerá na Espanha, Itália e provavelmente na França, quando a sociedade tiver que pagar o preço de uma política amplamente liberal e das guerras insensatas que estão esgotando os recursos dos Estados ocidentais. Certamente, as revoltas não podem ser previstas, mas uma crise social sem precedentes está por vir, ou, na realidade, já começou.

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