Infância na mesa: como escapar dos ultraprocessados?

Obesidade já atinge boa parte das crianças, inclusive bebês. Além de gerar doenças, industrializados alteram a percepção gustativa e o desenvolvimento. Valorizar outras culturas alimentares é essencial, mas também enquadrar corporações com uma Reforma Tributária Saudável

Foto: Piauí Hoje
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Há algumas poucas décadas, ali pelos anos 80, o sonho de meninos e meninas — seja no aniversário ou no Natal — era ganhar uma bicicleta. Até Silvio Santos tinha a chamada “magrela” como prêmio máximo nos jogos de seu programa de auditório infantil, o “Domingo no Parque”. Sim, a molecada queria mais era sair pedalando por aí!

Gradualmente, os videogames foram ganhando espaço nessa lista dos desejos infantis, conectando o cérebro das crianças com um aparelho que não exigia esforço físico praticamente nenhum. Mas, apesar de não envolver o corpo nem estimular a capacidade de inventar — já que para utilizá-los era só seguir o que aparecia na tela —, eles ainda poderiam ser classificados como brinquedos. 

Só que o que veio na sequência (substituindo os antigos e desengonçados consoles nas cartinhas com pedidos para o Papai Noel), dificilmente pode ser encaixado nessa categoria, embora permita joguinhos online. Estamos falando dos aparelhos celulares “inteligentes”, os tais smartphones, sonho de consumo de meninas e meninos, que parecem ficar hipnotizados ao contato com as pequenas telas luminosas e ter acesso aos seus poderes mágicos de abrir portais no tempo e no espaço.

Quem convive com crianças sabe bem como muitas delas simplesmente vão se apropriar do celular de uma pessoa adulta, caso dê bobeira. Segundo a pesquisa Crianças e adolescentes com smartphones no Brasil (feita pela Mobile Time, em setembro deste ano de 2025), a média de tempo que uma criança brasileira da faixa etária de zero a três anos passa junto a um desses dispositivos corresponde a cerca de uma hora e meia ao dia! Esse número vai aumentando conforme a idade aumenta e chega a quase quatro horas na faixa etária de 13 a 16 anos. O mesmo estudo verificou que é na faixa de 10 anos que brasileirinhos e brasileirinhas ganham seu primeiro smartphone.

Os motivos para mães e pais cederem ao assédio da criançada são extensos, mas basta dizer que elas parecem se acalmar magicamente quando pegam o aparelho na mão e mergulham em seu universo pixelado. Já as consequências desse uso precoce — lembrando que a recomendação é evitar a interação de crianças pequenas com as telas eletrônicas — são imprevisíveis, dado que são corpos e mentes em desenvolvimento e tudo isso é muito recente. Mas, sim, elas já se insinuam, e são bastante preocupantes, como veremos mais à frente deste artigo.

Dia dos mini-adultos

Outubro é o mês das crianças, sendo o dia 12 a data oficial a ser celebrada pela sociedade brasileira. Celebração que se dá, sobretudo, pelas empresas voltadas a esse público, cujos bolsos dos acionistas costumam dar uma bela engordada. Só que, infelizmente, não são só os bolsos capitalistas que ganham “gordura extra” nesse processo. 

Se você, como eu, faz parte de redes de organizações sociais que atuam com comunidades, provavelmente recebeu uma enxurrada de solicitações financeiras neste período celebrativo para que contribuísse com as festas das crianças periféricas. Na lista do que será oferecido, aparecem comes, bebes e prendas que, se são objetos do desejo delas e vão trazer alegria momentânea, também implicam em efeitos indesejáveis no longo prazo. 

Vamos dar uma espiada no cardápio festivo… Nitidamente dá para ver que o que impera são balas, pirulitos, refrigerantes, bolos industriais embalados um a um e o onipresente cachorro-quente, com suas salsichas e seus molhos artificiais característicos da sociedade do fast-food. Raramente se encontra uma fruta ou uma torta caseira. O resultado: crianças felizes e agradecidas, não é?

É verdade que, em sua grande maioria, elas desejam — ou melhor, foram levadas a desejar — esses alimentos e bebidas. É verdade que eles são mais baratos do que produtos mais saudáveis e que são inquestionavelmente mais fáceis de “preparar” e distribuir, já que vêm prontos e embalados, não restando nem a louça para lavar no “pós-guerra” da festança. Mas não podemos deixar de dizer que são problemáticos para a saúde delas, a saúde da sociedade e a saúde do planeta, três esferas indissociáveis e essenciais para nossa sobrevivência.

Vemos as crianças como o futuro da humanidade, não é? Mas será que elas podem ser tratadas como mini-adultos? Do ponto de vista da medicina, esse processo já está em curso, à medida em que elas estão sofrendo cada vez mais com doenças crônicas típicas de pessoas mais velhas, como diabetes e hipertensão, comprovadamente relacionadas ao excesso de peso e a uma alimentação industrializada. Só para dar uma ideia da situação atual no país, um quarto das crianças e jovens já está com taxas de colesterol maiores do que o valor padrão.

É uma bomba-relógio para a saúde pública e um presente para a big pharma, que lucra mais cedo com a venda de remédios que seriam apenas para adultos. Vale lembrar que são medicamentos de uso contínuo e, portanto, somente atenuam sintomas e não curam, possivelmente gerando efeitos colaterais que serão tratados com outros remédios, numa espiral infinita.

Balança desregulada 

E 2025 parece mesmo comprovar que estamos diante de um dilema civilizacional, já que, pela primeira vez, o número de crianças obesas ultrapassou o número de crianças com peso menor do que o considerado padrão. É o que mostra o Relatório “Alimentando o Lucro: Como os Ambientes Alimentares Estão Decepcionando as Crianças”, realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). 

O levantamento, que avaliou meninas e meninos de 190 países na faixa etária dos 5 aos 19 anos (portanto, incluindo adolescentes), revela que 391 milhões estão com excesso de peso, representando um salto de 100%, considerando o período de 2000 até agora. E, deste contingente, 188 milhões já sofrem de obesidade, cuja incidência passou de 3% para 9,4%. Na contramão da tendência de alta, o índice de baixo peso teve uma redução de 13% para 9,2%, o que significa que, mesmo hoje, 9 em cada 100 ainda sofrem de desnutrição. 

Mas falar em números e porcentagens pode ajudar a vislumbrar a dimensão da encrenca na qual a sociedade humana se meteu, mas não dá ideia do que essas crianças e jovens vivem e vão viver em sua vida adulta, se medidas efetivas não forem adotadas. Talvez o drama possa ser percebido quando falamos de câncer, doença que tem a obesidade como um dos fatores desencadeadores. 

O aumento do câncer infantil, consequência também do contato com substâncias cancerígenas presentes nos alimentos, na água e no ar, significa que mais e mais corpos ainda não desenvolvidos serão submetidos a tratamentos agressivos, como a quimioterapia, alterando seus cotidianos e de suas famílias. No artigo O Envenenamento da Infância, presente no Relatório de Direitos Humanos no Brasil de 2013, eu já alertava para essa situação dramática, destacando o papel inequívoco dos agrotóxicos nesse processo.

Aqui, é possível entrar no principal fator do aumento da obesidade no mundo: os sistemas alimentares totalmente dominados pelas corporações transnacionais. Da semente geneticamente modificada ao pacote de salgadinhos do supermercado, a manipulação corporativa do que deveria ser sagrado — o alimento — faz com que comidas e bebidas tradicionais e saudáveis estejam cada vez menos disponíveis às populações dos países do globo. 

O inverso ocorre com o que faz mal. Os produtos ultraprocessados, feitos com as commodities das monoculturas transgênicas e repletas de venenos (como soja e milho), e doses generosas de sal, açúcar, gordura e aditivos, estão disponíveis por preços acessíveis ao povão e podem ser adquiridos até em lugares menos urbanizados, como aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas.

Sistemas obesogênicos

Se outubro é o mês das crianças, ele também é o mês internacional da alimentação — ou da Soberania Alimentar, como preferimos denominar nos movimentos sociais do setor. A data exata celebrada é o dia 16, ocasião em que um conjunto de pesquisas, programas e debates são divulgados por governos e sociedade civil, permitindo uma leitura do cenário vivido e uma reflexão sobre os caminhos a serem buscados. 

O mote deste ano, definido pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), é De mãos dadas por melhores alimentos e um futuro melhor, enfatizando a necessidade de somarmos esforços na jornada por sistemas agroalimentares saudáveis, que garantam a qualidade de vida das atuais e das próximas gerações. Só que me parece impossível ler a frase-tema e não pensar na avalanche de dietas ultraprocessadas — e das doenças crônicas não transmissíveis que andam em sua rabeira — que vem desmoronando sobre nossas crianças. 

De acordo com o Atlas Mundial da Obesidade, o crescimento anual da prevalência da doença na população do planeta tem sido de 1,8%. Cálculos do Instituto Desiderata revelam que, em 2060, se esse ritmo continuar, teremos o dobro de brasileiras e brasileiros entre 5 e 19 anos sofrendo com essa condição, o que daria um total de cerca de 10 milhões de crianças e jovens e implicaria em um gasto de 3,6 bilhões até lá. 

O relatório Impactos da Obesidade Infantojuvenil no Brasil: Projeções de morbimortalidade e custos até 2060, lançado esses dias pela organização, faz um alerta para a sobrecarga que o SUS irá sofrer, destacando que, segundo suas estimativas, 94,4% dos gastos previstos serão com procedimentos hospitalares, deixando nítido a gravidade da condição na vida de meninas e meninos e a complexidade do tratamento necessário. Como contraponto, o próprio estudo traz sugestões de medidas que poderiam evitar esse quadro drástico, projetando alguns dos consideráveis efeitos benéficos que ações preventivas poderiam gerar no futuro que se aproxima a galope. 

Não há dúvida de que, para enfrentar realmente o problema, tanto aqui no Brasil quanto em outros países, é necessário combater a crescente obesogenificação dos sistemas agroalimentares. A expansão das atuais monoculturas, nas quais imperam venenos que são cancerígenos ou disruptores endócrinos, aliada ao avanço das grandes corporações da indústria alimentícia, com seus petiscos gordurosos e bebidas adoçadas carregados de aditivos, compõem a receita perfeita para um colapso na saúde pública mundial. 

Refri no imposto e não na mamadeira 

Se alguém achou o ano de 2060 uma data longínqua para nos preocuparmos agora, saiba que a realidade hoje já é bastante distópica. Mesmo entre bebês, o excesso de peso já se faz consideravelmente presente. Observando sobrepeso e obesidade juntos, 33% das crianças brasileiras de zero até quatro anos sofrem com essas condições, de acordo com o levantamento do SISVAN, Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, do Ministério da Saúde, em 2025. Isso significa mais de 1.100 milhão! 

Embora a recomendação médica seja de amamentar os bebês pelo menos até os dois anos, não é incomum que as mães, em geral sobrecarregadas com o trabalho dentro e fora de casa, não cumpram essa orientação. Podemos ver outras bebidas sendo oferecidas nas mamadeiras mesmo na fase que vai do primeiro aos seis meses de vida, em que o leite materno deveria ser o único alimento ingerido.

Veja que, neste momento, nem estamos falando das tais fórmulas infantis que, como a Aliança Pela Alimentação Adequada e Saudável vem denunciando, a publicidade corporativa tenta induzir mães e pais a comprar, alegando serem melhores para o desenvolvimento dos bebês. Sem dúvida, elas trazem sérios problemas, mas ainda não tão graves quanto o consumo de outros líquidos industrializados que circulam em praticamente todos os mercados. 

Quando disparamos o alerta máximo para nos referirmos aos produtos ingeridos por crianças até os quatro anos, estamos falando dos refrigerantes. Eles estão entrando precoce e desmedidamente na vida desses pequenos seres em desenvolvimento e alterando sua percepção gustativa e seu funcionamento bioquímico em relação ao que ingerem. Em outras palavras: estamos falando de vício. Viciar crianças desde o berço pode significar a garantia de consumidores fiéis para o resto da vida — fonte inesgotável de rendimentos. 

Se as empresas que fabricam essas bebidas, através de seu marketing agressivo e inescrupuloso, impactam tão negativamente na saúde de crianças e adultos, elas não se dispõem minimamente a arcar com as consequências. Mas vão muito além disso, e fazem de tudo para conseguir e manter benesses financeiras inaceitáveis. Até a elaboração da atual Reforma Tributária, que está ainda em curso, fabricantes de refrigerantes usufruíram de isenções fiscais bilionárias. 

Foi com muita luta que, na proposta aprovada pelo governo Lula, a sociedade conseguiu abolir essa aberração, expoente do neoliberalismo mais voraz: aquele que suga a população sem piedade, embolsa despudoradamente os lucros e deixa o ônus tenebroso nas costas do poder público. Mesmo assim, o martelo ainda não está definitivamente batido. Ainda depende de uma postura responsável dos senadores, sendo preciso seguir firme para que o lobby corporativo não desvirtue seu conteúdo, inserindo os famosos jabutis. 

Para saber mais do que está ocorrendo e contribuir para a implantação de uma tributação que corrija a indecência que tivemos que aguentar até agora, vale a pena conhecer o Manifesto por uma Reforma Tributária Saudável: Por um Imposto Seletivo que reduza o consumo de tabaco, álcool, bebidas açucaradas e bets, e as doenças e mortes associadas a eles, iniciativa  apoiada por mais de 100 organizações da sociedade civil, e ler a nota divulgada pela ACT Promoção da Saúde contra a manobra em curso no Senado, que visa reduzir as alíquotas que deveriam ser cobradas. 

Brincadeira tóxica 

E, por falar em veneno, vamos voltar a falar do Dia das Crianças. No começo deste texto, dissemos que as festas de celebração da data incluem a distribuição de guloseimas e de prendas. Das primeiras já tratamos, agora vamos refletir sobre as segundas, considerando que são basicamente brinquedos industrializados. 

Na lista do que é oferecido, estão bonecas, carrinhos, joguinhos, bolas, etc. Na sua quase totalidade, esses produtos são feitos de plástico, embalados em plástico pela própria indústria e até acondicionados em saquinhos de presente plastificados distribuídos às crianças. É plástico que não acaba mais… E isso literalmente, já que sabemos como seus resíduos se espalham pelos quatro cantos do planeta, se desfazendo em micro pedaços, que, ao não serem degradados inteiramente pela natureza, acabam se infiltrando no organismo dos seres vivos. 

A contaminação ambiental por microplásticos é uma das questões mais urgentes que temos que tratar, mas o ponto que quero abordar aqui é a saúde direta das crianças. Há décadas já se sabe que substâncias presentes em certos tipos de plástico que compõem embalagens e objetos vendidos no mercado têm efeitos danosos no organismo. Muitas delas, como bisfenol, ftalatos e parabenos, agem como disruptores endócrinos, ou seja, interferem no sistema hormonal, favorecendo o acúmulo de peso, entre outras consequências. 

Mas não são somente esses componentes problemáticos que estão presentes nos brinquedos que deveriam nos preocupar. O estudo Elementos potencialmente tóxicos em brinquedos brasileiros: uma avaliação de risco à saúde infantil baseada na bioacessibilidade, recentemente feito pela Universidade de São Paulo junto à Universidade Federal de Alfenas, com apoio da Fapesp, encontrou resíduos excessivos de outras substâncias tóxicas em brinquedos plásticos populares vendidos no Brasil. 

Os principais contaminantes (em um total de 21 com potencial danoso encontrados!) foram bário, cromo, chumbo e antimônio, e os níveis chegaram a ser 15 vezes maiores do que os que são permitidos. É a mais extensa pesquisa brasileira já feita no setor e envolveu 70 produtos diferentes, tanto nacionais como importados, coletados em lojas de bairro e shoppings centers. 

Os brinquedos analisados são recomendados para a faixa de zero a 12 anos e vários deles eram facilmente exploráveis pela via oral, ampliando os riscos de contaminação. Usando um método chamado biodisponibilidade ou digestão ácida, o estudo pôde simular a reação dos materiais ao contato com a saliva das crianças, observando as substâncias químicas liberadas por eles no processo. Os efeitos desses metais pesados no organismo vão de problemas neurológicos irreversíveis (chumbo) até câncer (antimônio), passando por arritmias, paralisias e disfunções gastrointestinais. 

Considerando que os brinquedos recebidos pelas crianças em situação financeiramente vulnerável costumam ser feitos de plástico e que, em boa parte das vezes, são dos poucos que elas terão para brincar no dia a dia (ficando expostas muito tempo ao seu contato), podemos perceber os riscos que estão correndo de ter efeitos negativos em seus corpos, sempre mais frágeis por ainda estarem se desenvolvendo. 

Aumentar ou reduzir a carga

Infelizmente, temos que reconhecer que não está nada fácil organizar as celebrações deste mês da meninada no cenário em que vivemos. Dia das crianças com salsicha, pirulito, bexiga, boneca e carrinho de plástico, entre outros “presentes”, é o avesso do que deveríamos oferecer a quem está em pleno florescimento da vida e já está crescendo em uma sociedade na qual o ar, a água, a terra e os seres vivos já estão repletos de contaminantes químicos. 

Se somarmos a ingestão de alimentos ultraprocessados com a exposição aos brinquedos industriais feitos com elementos de alta toxicidade, podemos perceber como a infância, sobretudo a periférica, está sendo bombardeada com uma carga mais do que alarmante do que não faz bem. Estudos que demonstram os efeitos danosos que essa carga tóxica causa na saúde humana não faltam. A vida real, com os atendimentos crescentes de crianças com doenças crônicas no SUS, também não deixa dúvidas do desastre em curso. 

No caso de crianças que têm acesso ao universo das telas, onde reina a aliança entre as Big Techs e as Big Foods, ainda acrescentamos a existência de uma exposição acentuada à publicidade, bem como uma tendência à diminuição das atividades físicas. Como mencionado no início deste artigo, não sabemos muito bem o efeito a longo prazo dessa crescente interação com celulares no funcionamento físico e psicoemocional delas, mas algumas mudanças já são perceptíveis. Entre elas, temos problemas oculares, perda da coordenação motora e diminuição da capacidade de socializar com outras crianças. 

Felizmente, este ano, as famílias resistiram mais aos apelos e os smartphones caíram um pouquinho no ranking dos presentes comprados para celebrar o dia 16. Pode ser um reflexo da proibição desses aparelhos nas escolas, uma política adotada pelo governo federal. Sabemos que somente com medidas do poder público iremos começar a reduzir o peso que a infância está acumulando, seja em quilos, seja em carga tóxica material e imaterial. Cada medida de combate ao assédio corporativo sobre a população e cada programa de incentivo a um modelo produtivo de base agroecológica contam nessa equação. 

Sem dúvida, uma das esferas fundamentais no processo de transformação dos sistemas agroalimentares é a alimentação escolar. No Brasil, quase 50 milhões de estudantes recebem refeições durante o período de aulas. Muitas dessas crianças e desses jovens têm na refeição recebida na escola pública a sua base diária de comida, já que a situação econômica de suas famílias é precária. O que é ou não servido diariamente tem influência essencial em suas trajetórias de vida. Quanto mais alimentos in natura ou pouco processados e menos produtos ultraprocessados, mais saúde. 

A ampliação da proporção de alimentos oriundos da Agricultura Familiar no PNAE, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (que passou de 30% para 45%, de acordo com a Lei nº 15.226/2025, sancionada no início do mês), e o reajuste no valor pago por estudante (que, atualmente, é de apenas R$ 0,50 ao dia e, desde 2023, data do último reajuste, acumula uma perda de 14,25%), têm potencial para impulsionar a mudança de um sistema obesogênico, destruidor da natureza e concentrador de riquezas, para um sistema agroecossolidário. 

E a valorização da Cultura Alimentar dos nossos povos, com suas relações profundas com a sociobiodiversidade dos territórios, por meio de políticas públicas adequadas, é outra ação importante. De mãos dadas a ela, temos que caminhar com a ampliação e o aprimoramento da EA, a Educação Ambiental, e da EAN, a Educação Alimentar e Nutricional.

Vida em movimento 

Estimular as crianças a botar a mão na terra, a cultivar e colher uma plantinha comestível e a conhecer a biodiversidade alimentar podem dar uma chacoalhada na estrutura padronizada imposta pelo capital. Preferências de comeres, beberes e brincares menos destruidores de corpos, mentes e ambientes podem ser conquistadas por meio da criação de laços de afeto entre esses seres humanos em formação e a natureza. 

Essa é uma das missões da campanha A Hora e a Vez da Educação Alimentar, lançada pelo Instituto Comida e Cultura, na onda propositiva de ações do mês da Alimentação. Ela informa sobre a existência da lei que garante a Educação Alimentar e Nutricional nas escolas e reivindica um plano prático para que ela seja implementada nacionalmente. Todo mundo pode assinar a petição e entrar na luta para tirar esse direito do papel e fazer virar realidade. 

Nessa pegada, uma das experiências de atuação com EA e EAN conjugadas é a do Projeto Viva Agroecologia, realizado no município de São Paulo. Ele propõe a criação de hortas de Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) nas escolas públicas paulistanas. A conexão entre o conteúdo pedagógico, a prática agrícola na terra, a colheita de alimentos a serem usados nas refeições escolares e o fortalecimento dos laços comunitários, por meio dos mutirões aos finais de semana, favorece uma transformação no modo como estudantes, mães e pais, professores/as, cozinheiras e demais funcionários/as compreendem o ciclo alimentar. 

Outra inspiração é o trabalho realizado pelo MST com as crianças assentadas e acampadas. Entre os dias 6 e 12 de outubro, ocorreu a Jornada das Crianças Sem Terrinha, promovendo atividades em todo o país. Na programação: debates sobre temas sociais e ambientais, momentos lúdicos e de experimentação artística, plantio de árvores, visitas a quintais agroecológicos e, é claro, muita comida saborosa e enraizada na cultura de cada região. É um contraponto ao modelo de comemoração do Dia das Crianças artificializado que impera atualmente. 

A própria campanha da FAO para o Dia Mundial da Alimentação de 2025, inclui o livro de atividades De mãos dadas para uma alimentação melhor e um futuro melhor, no qual, ainda que timidamente, sugere-se que educadoras e educadores promovam ações ligadas aos ciclos naturais, como o cultivo de hortaliças, a compostagem e a pintura com tintas feitas a partir da terra e de plantas. 

Vale mencionar que muitos povos indígenas ainda resistem às pressões do mercado e mantêm a infância como ela pede para ser: um período para brincar, subir nas árvores, pular nos rios, inventar estórias e descobrir o mundo, como nos conta Ailton Krenak neste pequeno depoimento sobre o filme O Colo da Terra. A energia para tudo isso vem da culinária tradicional, com seus beijus, seus assados, seus frutos coloridos, numa simbiose com as florestas. A ameaça a essas aldeias em que as crianças são plenas de vida é constante e vem justamente de quem lucra com o modelo agroalimentar envenenado e ultraprocessado que tem dominado as festas infantis. 

Todo dia é dia das crianças 

Por mais que o Dia das Crianças seja um momento de descontração, dar a elas comes e bebes ultraprocessados, como se fossem presentes especiais, reforça a associação desses produtos com algo que é desejado, com valor afetivo e simbólico. Em uma sociedade em que os marqueteiros já nos bombardeiam pesadamente com mensagens nessa direção, esse tipo de celebração acaba ajudando a balança das doenças crônicas a ficar mais pesada. 

O mesmo vale para os brinquedos plastificados ou tecnológicos. Mesmo sabendo que é o que elas querem (já que foram induzidas a isso), será que temos que reforçar esses desejos por algo que não faz bem a elas, nem à sociedade e nem ao planeta? Será que é possível equilibrar um pouco essa balança, ao oferecer a possibilidade de criar brincadeiras que conectam corpos, mentes e natureza? 

Mesmo que não seja possível ter acesso fácil a ambientes ao ar livre, em que existam plantas e animais, ainda podemos contar com o universo da literatura. Abrir um livro que traga valores diferentes dos oferecidos pelo mundo publicitário (com sua exaltação ao consumo, à competição e à vaidade) pode aproximar esses habitantes das grandes cidades de outras realidades e possibilidades de existência. Se o preço não for acessível, talvez já exista uma biblioteca próxima ou, em caso negativo, uma nova possa ser criada na comunidade. Com um pouco de estímulo, quem sabe as próprias crianças poderiam criar seus livros e perceber que nem tudo é vendido pronto em lojas ou sites. 

Talvez o caminho para impulsionar essa mudança em nossa postura em relação às crianças seja reconhecer que o melhor presente que podemos dar a elas é a chance de desfrutar de um futuro viável, algo que o modelo social baseado na multiplicação de “presentes” insustentáveis está ameaçando impedir. Seja reconhecer que todos os dias são dias em que devemos celebrar a vida delas e, ao promover frequentemente processos criativos e atividades lúdicas coletivas, bem como o contato com a terra e com os sabores das comidas não industrializadas que formam nossa Cultura Alimentar tradicional, possamos gerar, gradualmente, novas associações emocionais e padrões gustativos na vida delas. 

O processo não é simples, já que toda a estrutura da atual sociedade, baseada no consumo infinito e no prazer imediato, conspira contra nós. Mas, através da taxação tributária dessas indústrias, da regulação de sua marquetagem, e de políticas públicas pró-alimentação adequada e saudável, nossos esforços para equilibrar essa balança podem ganhar impulso e reduzir a carga — desproporcionalmente pesada — que a infância aguenta em suas costas frágeis.

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