Cinema: Apologia da dúvida
Um homem encontra seu possível torturador e o sequestra para se vingar. Mas este será mesmo seu algoz? Premiado em Cannes, o filme iraniano Foi apenas um acidente disseca a incerteza, algo vital à humanidade – e perigoso diante do fundamentalismo religioso
Publicado 04/12/2025 às 16:13 - Atualizado 04/12/2025 às 16:15

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS
Agora que o cineasta iraniano Jafar Panahi foi condenado a um ano de prisão e à proibição de deixar seu país pelos próximos dois anos, seu novo filme, Foi apenas um acidente, assumiu uma relevância ainda maior. Nem precisava desse empurrão indesejado, depois de ter conquistado a Palma de Ouro em Cannes e ser escolhido como representante da França (é uma coprodução) à disputa por uma indicação ao Oscar.
Seu argumento lembra muito o do drama político brasileiro Ação entre amigos (1998), de Beto Brant, em que quatro ex-companheiros de militância planejam vingança contra o homem que os torturou na ditadura militar.
Possível torturador
Em Foi apenas um acidente ocorre algo semelhante. Resumindo grosseiramente uma narrativa bem mais complexa, trata-se da história de um mecânico, Vahid (Vahid Mobasseri), que julga ter reconhecido, pelo ruído de sua perna mecânica, o policial que o torturou na prisão, onde ele esteve o tempo todo vendado. Vahid sequestra o homem (Ebrahim Azizi) e começa a enterrá-lo vivo quando, diante da negativa veemente da vítima, uma crise de dúvida o assalta: será mesmo esse o terrível Eqbal, o Perna de Pau?
A incerteza o leva a procurar outros ex-prisioneiros que passaram pelas mãos de Eqbal. Cada um deles tenta levar a vida como pode e superar à sua maneira o trauma da prisão e da tortura. A saga desse grupo heterogêneo, quase um exército Brancaleone, com suas brigas internas e situações inusitadas, tem momentos surreais que remetem ao teatro do absurdo. Esperando Godot, de Samuel Beckett, é citado explicitamente.
Nenhum deles viu o torturador, de modo que a incerteza sobre a identidade do homem persiste quase até o final. O que dilacera os personagens é o mais íntimo dilema moral: e se o sujeito estiver falando a verdade e não for o algoz? Mesmo que seja, será justo lançar mão da mesma violência do inimigo? É justo matar o matador? Como lidar com a própria consciência depois disso?
É, no fundo, um filme sobre a dúvida, algo grandioso – e perigoso – num país dominado pelas certezas do fundamentalismo religioso. Não à toa, as filmagens foram realizadas em segredo, sem autorização do regime iraniano.
Economia de meios
Essa circunstância acentua a proeza do realizador, que tirou leite de pedra para construir uma parábola enxuta, eletrizante, que não usa as constrições de produção como desculpa para o desleixo ou a falta de ambição estética. Pelo contrário: como os maiores artistas, Panahi faz das dificuldades concretas fatores de criação.
A primeira sequência é exemplar dessa adequação entre as circunstâncias de produção e a linguagem cinematográfica adotada. Numa rodovia, à noite, trafega uma pequena família: o homem que dirige, sua mulher grávida no banco do passageiro e sua filhinha no banco de trás.
De repente, há um solavanco, ouvimos o ganido de um cão e percebemos que o carro atropelou o bicho. Tudo se passa num plano frontal contínuo de mais de cinco minutos, com a câmera diante do carro, acompanhando depois o motorista que desce para examinar o animal moribundo. Este permanece fora do quadro, é só um ruído. A relação entre som e imagem, audição e visão, que será central para a trama, já se insinua ali.
Acaso e desígnio
Essa economia absoluta de meios serve também para apresentar o personagem do possível torturador como um homem comum, vulnerável, afetuoso com a família. Introduz, além disso, o tema do acidente, do acaso. A esposa diz: “Deus deve ter colocado esse acontecimento na nossa vida com algum propósito”. A filhinha contesta: “Ele (o pai) atropelou o cachorro. Deus não tem nada a ver com isso”.
Eis, então, desde o primeiro momento, a questão crucial, a dúvida – aquilo que as religiões fundamentalistas e os regimes teocráticos não podem admitir. Por isso prendem, torturam, matam. Deus nos livre desse Deus.
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