Werner Herzog e a poética dos extremos

Livro de memórias do cineasta alemão revela as fronteiras permeáveis entre sua vida e obra. São histórias saborosas (e assustadoras) de bastidores, além de seu gosto pelas situações-limite: a selva delirante, o frio arrebatador, os loucos, os solitários irredutíveis…

Foto publicada pela Rottentomatoes
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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Muitos cineastas – talvez a maioria – filmam para viver. Werner Herzog, ao contrário, vive para filmar. E sua vida tem sido tão insólita e aventureira quanto seus filmes. Pelo menos é essa a impressão que temos ao ler seu belo livro de memórias, Cada um por si e Deus contra todos, recém-lançado no Brasil pela Todavia, em ótima tradução de Sonali Bertuol.

Publicado originalmente em 2022, quando o autor completava 80 anos, o livro transita com uma notável desenvoltura entre épocas e assuntos, atestando a inteligência viva e a inquietação permanente do cineasta.

Desde a infância, Herzog sempre foi fascinado pelas experiências radicais e pelos personagens limítrofes entre a sanidade e a loucura. Por isso, seu cinema de ficção está repleto de seres arrebatados por seus delírios de grandeza (Aguirre, Fitzcarraldo) ou esmagados por sua estranheza e solidão irredutíveis (Kaspar Hauser, Stroszek, Nosferatu). Figuras maiores (ou menores) que a vida.

Situações-limite

Mesmo em seus documentários, Herzog sempre buscou as situações-limite: o esquiador que desafia a morte, o amigo dos ursos devorado por um deles, a criança surda e cega e sua comunicação com o mundo, o sujeito que se recusa a sair de sua casa no sopé de um vulcão em erupção. Filmar nos confins do planeta, nas paisagens mais inóspitas, é uma de suas predileções.

O que fascina no livro é a naturalidade com que esses temas e personagens entram na vida de Herzog e o arrastam para seu território, quase como se não houvesse fronteira entre vida e obra. Sua abordagem nunca é intelectual, distanciada, mas sim visceral.

Autodidata em tudo – do salto de esqui à hipnose (usada com o elenco de Coração de cristal, de 1976), da etnografia ameríndia ao estudo da Bíblia –, meteu-se a fazer cinema depois de folhear um manual prático de poucas páginas. E diz estar convencido de que não é necessário mais do que isso para filmar. Seus primeiros filmes eram tecnicamente tão canhestros que sua montadora mais fiel, Beate Mainka-Jellinghaus, se recusava a vê-los na tela grande quando estreavam.

Educação pelo erro

Essa educação pelo erro, que o levou a encenar óperas célebres sem sequer saber ler partituras, acabaria produzindo uma filmografia de incrível vitalidade, com meia-dúzia de obras-primas. Entre estas, têm interesse especial os dois épicos trágicos realizados na selva amazônica, os monumentais Aguirre, a cólera dos deuses (1972) e Fitzcarraldo (1982), ambos estrelados por Klaus Kinski, ator megalômano e temperamental com quem Herzog manteve a vida toda uma relação espinhosa de amor e ódio. “A vida toda” não é força de expressão: o cineasta conheceu o ator aos 13 anos, quando moravam na mesma pensão em Munique. Além de cinco longas-metragens estrelados por Kinski, ele fez um documentário sobre essa estranha amizade, Meu melhor inimigo (1999).

Nos filmes amazônicos de Herzog, aos quais ele sempre retorna em seu livro com saborosas e assustadoras histórias de bastidores, estão condensadas algumas de suas obsessões permanentes: as relações nada amistosas entre natureza e cultura, o entrechoque de civilizações, os delírios de poder (a “glória de mandar”, a “vã cobiça”, de que falava Camões).

Um dos capítulos mais fascinantes do volume é dedicado aos projetos não realizados do cineasta, entre eles o de documentar a vida de duas gêmeas idênticas que falam em uníssono e agem em sincronia, como se uma fosse a imagem espelhada da outra. É celebre a frase de Terêncio: “Nada do que é humano me é estranho”. Herzog parece dizer: “Tudo o que parece sobre-humano me interessa”.

Espírito romântico

Por mais singulares e intransferíveis que sejam sua biografia e sua inserção na história da arte, Werner Herzog parece ser o último representante do espírito romântico alemão surgido em fins do século 18, que via o mundo como um terreno infinito de fenômenos a ser explorados pela experiência e pela imaginação.

Com essa disposição, dirigiu nada menos que 77 filmes, entre curtas, longas, documentários e séries, sem contar os livros e as óperas. E essa usina não para. Pena que seus frutos cheguem cada vez menos até nós. Desde o belíssimo A caverna dos sonhos esquecidos (2010), salvo engano seu último título lançado nos cinemas brasileiros, ele realizou pelo menos quinze filmes, em sua maioria documentários.

Em tempo: a frase que intitula o livro – e que é também o título original de Kaspar Hauser – foi tirada por Herzog, sem o devido crédito, de uma fala do filme Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. (Não consta da rapsódia de Mário de Andrade.) E um pequeno reparo à edição brasileira: o uso indiscriminado do verbo “gravar” mesmo quando referido a filmes feitos nas décadas de 1960 e 70, quando tudo era feito em película de celuloide, portanto “filmado” ou “rodado”, e não “gravado”, termo mais adequado para falar da captação em vídeo. Mas esta, tenho percebido, é uma batalha perdida.

Fantasmas da ditadura

A ditadura militar terminou há quatro décadas, mas seus fantasmas continuam a nos assombrar. Por um acaso da história (ou circunstância do mercado exibidor) estão em cartaz nos cinemas três filmes dedicados ao assunto, ou, mais especificamente, a personagens envolvidos na guerra suja e desigual da fase mais brutal do regime. São eles O mensageiro, de Lúcia Murat, Entrelinhas, de Guto Pasko, e , de Rafael Conde.

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