Volver Bacurau: o entendimento e resistência de longa duração

Em época em que o cinema nacional desperta tanta paixão, vale relembrar filme que mostra o Brasil profundo e destravou gargantas diante da terra arrasada do bolsonarismo. Sua força: mostrar que há antídotos à passividade e ao esquecimento

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No lançamento do filme em 2019, o que ficou manifesto naqueles anos de bolsonarismo alçado ao núcleo do Estado brasileiro, foi a sensação de desentalar um grito abafado, uma pequena vitória nas telas antevendo vitórias maiores adiante. Bacurau fora uma desforra estética, uma narrativa vingadora, (“livro vingador”, como Euclides da Cunha definia o sentido singular de “Os Sertões”). Confirmados e até mesmo superados muitos dos cenários distópicos apresentados no filme, o que perdura e merece revisitação é a bravura do entendimento da necessidade de resistir. Frente ao pacto faustiano de nossas elites entregando água, territórios e povos ao usufruto irrestrito de quem puder pegar e pagar mais, lá está o bacurau, o pássaro soturno, lá está Bacurau encarnada como vila de prontidão. Com Bacurau, o filme, vemos e nos vemos periféricos, sertanejos céticos frente aos processos formais de representação e por isso esperançosos com os saberes coletivos experienciados e retidos na memória

No penúltimo longa-metragem dirigido por Kleber Mendonça há, portanto, uma solução tecida na retina, feita de um trançado de memórias. Neste presente momento em que as piores previsões caducam velozmente, o “modo Bacurau” pode servir de antídoto às posturas crédulas e passivas que apontam exclusivamente para saídas institucionais e jurídicas. Diante da política do esquecimento que prossegue, de forma oficiosa, não cabe nenhum tipo de silenciamento. Sim, Bacurau foi um grito e é muito oportuno repô-lo, pois se por um lado “Ainda estamos aqui”, por outro os agentes da necropolítica seguem no nosso encalço e mantém nossas cabeças a prêmio.

Se é o despedaçamento do vivido e do lembrado que querem, cá estão versões de realidades outras, as mais inteiras possíveis. Não importa se a versão apresentada seja a predileta de cada um, importa é poder discutir e experimentar opções, olhares e caminhos. Bacurau é uma versão captada por Kleber Mendonça em sua leitura transversal e pelo avesso que faz do Brasil. Do mesmo modo, em “Som ao Redor” (2012), seu primeiro longa-metragem, a trama deduz a cidade do engenho, a riqueza fundiária da latifundiária. Na metrópole sitiada, as rarefeitas zonas urbanizadas são privatizadas e gentrificadas. Aquela rua, sob ataque especulativo e miliciano na praia de Boa Viagem, é um simulacro do engenho e dos rios de sangue que moviam seus moinhos.

A associação duradoura entre proposições expansionistas e discursos de “guerra cultural” revela o quanto foram esvaziados os espaços e as projeções públicas e o quanto precisamos esboçar, tramar, lembrar e antever. Bacurau é uma adição ao repertório possível de rebelião que incuba figurativamente uma revolução popular brasileira.

Ficção científica ou documentário alegórico, tudo se inicia com o cortejo de Dona Carmelita, matriarca da memória coletiva ressocializada no ritual. Mas diante do anjo exterminador que atua nos termos de um jogo genocida voraz, reúnem-se todas as forças para deter a guerra total. O filme assim revela e torna perceptíveis os paradoxos de nossa história, de nossa (de)formação. Ali estão camadas arcaico-modernas indissociáveis, um palimpsesto de revoltas abafadas, não resolvidas, das tantas coisas que podíamos ser.

Não estamos diante da desidratação de um suposto Estado de Direito ou de um desapego a “valores democráticos”. A fórmula constitutiva da retomada de “posições perdidas” em termos comerciais, geopolíticos e culturais anunciada na sede do Império (por exemplo o lema MAGA – Make America Great Again) – e que se generaliza para suas bordas – é a do recurso a “normas abertas” para que os particularismos possam ser “livremente” normatizados como o interesse geral.

Por isso cabe dar vazão a imaginários utópicos e literalmente palpáveis, em que afetos e sensibilidades importam. A ordem, por ser “de fato”, não quer dizer que seja válida, o que está aí, quem disse que será?

Por isso as canções ou a sonoridade têm papel tão crucial na filmografia de Kleber Mendonça. O cancioneiro popular brasileiro do século XX era, segundo Wisnik (2012), “o lugar que melhor abrigava o Brasil. […] ali […] a vida brasileira podia se reconhecer em canções […] que nos deram essa sensação […] de participar de uma mesma experiência”.

Oras, se somos capazes de nos cantarmos, logo existimos; logo podemos cantar o que podemos ser. Nestas canções, em extinção e ressurgentes ao mesmo tempo, exige-se “uma audição concentrada do que está sendo dito e cantado e da relação do que está sendo dito com a própria música”, como diz Nestrovski, (2012).

São evocações, na interpretação de Fernando Barros e Silva, de “vestígios de estranha civilização” que “os escafandristas virão explorar”, parafraseando a canção de Chico Buarque “Futuros amantes” (1993): “alguém há de ouvir a canção que afundou no mar” (BARROS E SILVA, 2009, p. 27).

Em Bacurau, a música de abertura, diz o que antecede e procede do levante popular cinegrafado: “Eu vou fazer uma canção de amor para gravar num disco voador. Uma canção dizendo tudo a ela, que ainda estou sozinho, apaixonado. Para lançar no espaço sideral. Minha paixão há de brilhar na noite no céu de uma cidade do interior” Caetano Veloso, 1969.

Em lugar não identificado, disputar os sentidos do vivido é disputar os sentidos do que pode ser vivido. O passado é um repertório infindo de atalhos para outros futuros que deve ser revolvido no cerzir de conversas, relações, lampejos de sonhos e pesadelos. Ao reinterpretar as interpretações de Canudos, nave-mãe de quase todas nossas utopias, Joana Barros propõe “reescrever essa história e essa tradição de luta e vida não através de uma avenida reta, mas de pequenas veredas nas quais nos perdemos e aprendemos a nos encontrar coletivamente” (2019, p. 33). Os caminhos pontilhados por Kleber Mendonça em Bacurau por isso continuam sendo um convite para traçar e retraçar nossa história.

Referências bibliográficas

O FIM DA CANÇÃO: Luiz Tatit, Zé Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski. Direção de Daniel Augusto. Brasil: 2012. São Paulo: Selo Sesc SP, 2012. [DVD]. (76 min.), colorido.

BARROS, Joana. Desenvolvimento e narrativas do atraso: a campanha contra Canudos e as veredas da resistência. In BARROS, JOANA, PRIETO Gustavo, MONTEIRO, Caio (orgs). Sertão, Sertões: repensando contradições. Reconstruindo veredas. São Paulo: Editora Elefante, 2019

BARROS E SILVA, Fernando. O fim da canção (em torno do último Chico). Serrote, São Paulo, v. 3, 2009.

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