Uma caminhada ao apagar de luzes do ano
O centro de SP tem várias faces – e percorrê-lo pode ser um modo de entender melhor a vida. Vê-se o arco iluminado que anuncia 2026, criançada que corre pela praça, povo de rua na fila da comida. E encontramos algo que (também) nos mantém vivo: nossas implicâncias
Publicado 23/12/2025 às 17:32

Eu gosto de São Paulo. Especificamente do centro. Esse gostar vem desprovido de deslumbramento e de qualquer enredo sobre “viver a cidade”. Aquelas ruas são parte importante da minha vida. Foi meu aprendizado. Foi o cenário que me deu as primeiras descobertas na adolescência: sebos, velhas livrarias, lojas de disco, descontos, achados, rolos, roubadas. Crueza das ruas, fim da inocência, algum prazer, alguma viagem.
Hoje caminho mais sisudo e desconfiado, mas sem neuras ainda observo com alguma esperança. Ontem à tarde saí da Barra Funda. Fui até o Poupatempo, na Sé, resolver o que precisava ser resolvido. Rua do Carmo, metrô, protocolo. Vinte dias úteis para pegar o documento.
Depois voltei a pé.
Caminhar sempre foi meu modo de entender melhor a vida. Não tem fruição nem escolha estética contemplativa. É política. Funciona como método antigo: o sangue circula melhor, as angústias aliviam. Prático.
A volta.
A Sé nunca é a mesma, mas ontem havia um túnel — coisa de Natal. Não parei para ver direito. Gente entrando e saindo, sorrindo. Jovens, idosos, crianças. Não fui atrás de saber quem organizou aquilo — igreja ou Estado. O que me interessou foi o contraste. O fluxo.
O povo de rua, que vive ali o ano inteiro, parecia ao mesmo tempo atônito e excitado com o barulho, com aquele movimento excepcional. Eles são a multidão permanente e invisível da Sé. Havia também os visitantes de Natal, passageiros, festivos, ali para atravessar o túnel, tirar foto e seguir. E havia a terceira multidão, a de sempre: a que o metrô engole e cospe diariamente, sem festa nem espanto, apenas passagem.
As árvores da Sé e da Praça Clóvis estavam iluminadas por uma luz provisória. Não sei se é bonito. É triste. Luz de efeméride. Tinha gente feliz fotografando. Quem diabos sou eu para dizer o que é felicidade na cidade? Essa tristeza é minha.
Segui. Direita, São Bento. A Praça do Patriarca veio.
Ali, outras luzes. E havia distribuição de comida. O povo de rua misturado com imigrantes. Africanos, latino-americanos. Muitas crianças comendo algo quente em copinhos. Crianças correndo pela praça com comida fumegante nas mãos. Uma Panamérica de Áfricas utópicas. Não sei se eram tantas, mas eram intensas.
Parei um pouco. Aqueles pontos agudos da cidade estavam todos iluminados. Luz é sempre luz. Duas, três imagens ficaram.
A primeira: os rostos cansados, embriagados, esquálidos, sentados à beira da praça e ao redor da boca da Galeria Prestes Maia. A pele muda com o tempo. É um indicador poderoso da cidade. A tez do povo de rua é um termômetro mais rigoroso do que qualquer estatística.
A segunda: a criançada correndo, ocupando a praça por instantes, como se aquele chão também fosse deles. Como se a cidade não fosse essa penca de políticas públicas desleixadas, feitas com sobras de verba e doses de perversão. É Natal.
A terceira: da Patriarca, o Viaduto do Chá é um passo. No meio do lado esquerdo, de frente, um arco iluminado anunciava “2026”. As pessoas paravam felizes para tirar foto. O futuro. Aquilo me encanou — sei lá por quê. Segui andando, com uma raiva silenciosa da minha própria implicância.
Desci em direção ao Vale. Passei pelo entorno do Municipal, entre a Ramos de Azevedo e a Xavier de Toledo, e logo entrei no miolo popular. Conselheiro Crispiniano, Dom José de Barros. Ao Paysandu não se chega por um caminho limpo. É nó. Convergência de tudo.
Depois, Santa Ifigênia. A transição se sente no corpo, no nariz, nas ruas mais escuras. O tecido urbano muda de caráter. O comecinho da Guaianases. Aurora, Vitória — ruas que já anunciam outros produtos, outras convivências. General Osório, Protestantes, Barão de Limeira. Aí já é Campos Elíseos. Ali, ainda não há bar de gostinhos nem experiências. Por ora.
No fim, ainda na Barão de Limeira. Cruzamentos conhecidos: Helvétia, Dino Bueno, Ribeiro de Lima. Dali, a Barra Funda. Duque de Caxias, São João, Lopes de Oliveira, Rua do Bosque.
De novo a Barra Funda.
E aquela imagem do arco, “2026”, no Viaduto do Chá.
A terceira imagem ainda me atazanando as ideias.
Acho que é isso que me mantém vivo. As implicâncias.
Boas festas pra todo mundo.
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