Um filme irresistível para os cinéfilos 

Nouvelle vague narra Godard num conturbado set de filmagens, em busca de algo nada modesto: criar outras formas de expressar o real por meio de som e imagem. Os diálogos são frases de efeito ditas de fato e, sem presunção, obra furta-se a emular a linguagem do cineasta francês

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Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

Fico sempre com um pé atrás diante de filmes que buscam reconstituir “fatos reais” e/ou retratar figuras históricas conhecidas. Esse ímpeto mimético tende a apequenar o próprio cinema, reduzindo-o a uma função meramente ilustrativa. O filme passa a ser avaliado por sua capacidade de imitar caninamente o real: “Olha como o ator fulano está igualzinho ao sicrano que ele interpreta”.

Dito isso, vamos a Nouvelle vague, o filme de Richard Linklater que retrata os bastidores da produção de O acossado (1960), de Jean-Luc Godard, marco do cinema moderno e uma das obras fundadoras da… Nouvelle vague.

Vemos ali, em ação, a personalidade efervescente e imprevisível de Godard (Guillaume Marbeck), às voltas com um produtor duro na queda (Georges de Beauregard, encarnado por Bruno Dreyfürst), uma equipe atarantada e duas estrelas de personalidades díspares (Jean Seberg/Zoey Deutch e Jean-Paul Belmondo/Aubry Dullin). A missão nada modesta da trupe: subverter o cinema convencional e criar uma nova forma (ou novas formas) de expressar o real por meio de som e imagem.

Nosso fetichismo

A despeito do que foi dito no primeiro parágrafo, é forçoso dizer que se trata de um filme irresistível para os cinéfilos (entre os quais me incluo), talvez por conta de certo desejo fetichista de estar ali, no epicentro de uma revolução estética, política e moral. E nos deixamos levar prazerosamente por essa onda, que o próprio Godard maduro ironizaria invertendo a frase. “Une vague nouvelle”, disse ele, transformando o adjetivo em substantivo e vice-versa: uma vaga novidade.

Assim, o filme nos leva não apenas aos sets de filmagem, mas também à redação dos Cahiers du cinéma, às conversas com ídolos como Rossellini e Bresson, aos cafés e ruas do Quartier Latin, numa reconstituição cuidadosa expressa num preto e branco que mimetiza a imagem do filme original, cujo frescor, aliás, segue incólume.

Para que não se quebre o encanto, praticamente todos os diálogos são frases de efeito ditas de fato em alguma ocasião, ou expressam de modo didático as transgressões buscadas por Godard. E aqui há um paradoxo: fala-se, por exemplo, do faux-raccord e dos cortes no interior do plano, mas o filme de Linklater não os pratica em nenhum momento, resignando-se a uma decupagem essencialmente convencional, “invisível”. É um filme clássico celebrando um filme moderno.

Truffaut, o ex-amigo

Tudo somado, é uma obra a ser vista e comentada, um bom desfecho para o ano cinematográfico. Para os espectadores paulistanos, o lançamento vem com um bônus considerável: o Cinesesc programou uma mostra completa da obra de François Truffaut.

Um complemento ou contraponto mais que interessante seria o documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle vague (2010), de Emmanuel Laurent e Antoine de Baecque, disponível em DVD da Imovision. Ali se investiga mais a fundo essa espinhosa amizade/inimizade criativa que sacudiu a história do cinema.

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