Ritas: A mais completa tradução

Documentário mostra as várias facetas da artista – e as transformações vividas pela cultura brasileira. Um de seus grandes méritos: costurar com delicadeza e fluidez imagens de arquivo, em vez de mostrar depoimentos de “cabeças falantes”

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Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

O acerto começa pelo título: Ritas. Com ele, os diretores Oswaldo Santana e Karen Harley entregam desde logo o intuito básico de seu documentário: expor as múltiplas facetas de Rita Lee.

Cantora, compositora, atriz, escritora, humorista, apresentadora de TV e mais uma porção de coisas, Rita Lee Jones de Carvalho podia dizer, como seu conterrâneo Mário de Andrade: “Sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”. O feito maior de Ritas é encontrar a unidade nessa multiplicidade, perfazendo ao fim e ao cabo um retrato coerente dessa artista singular.

Primeira pessoa

Fazendo jus à personagem, o filme foge à caretice dos documentários convencionais, que “explicam” o biografado com base em depoimentos de cabeças falantes – os “especialistas” de sempre. Em Ritas tudo é feito “em primeira pessoa”, só com material de arquivo em que, ao longo de seis décadas, a própria Rita se expõe de corpo e alma, cantando, dançando, falando, filmando, fazendo palhaçadas. O resultado flui lindamente, mas é fruto de um delicado e meticuloso trabalho de pesquisa e costura de um material heterogêneo ao extremo.

A trajetória dessa garota paulistana da Vila Mariana, filha de um estadunidense corintiano que dava lança-perfume para as filhas cheirarem quando seu time vencia, tem tudo a ver com a algaravia de uma metrópole que é ao mesmo tempo provinciana e cosmopolita, inventiva e brutal, profundamente brasileira e avessa ao país. “A sua mais completa tradução”, definiu Caetano Veloso.

Com uma desenvoltura admirável, Ritas dá a ver o quanto Rita Lee condensa e refrata as transformações vividas pela cultura brasileira (incluindo a sociedade e a política) nas últimas décadas. Da explosão criativa dos Mutantes à senhorinha sábia que cuida de seu jardim e de seus bichos, Rita aparece inteira – roqueira, tropicalista, bossa-novista, comediante, noveleira, ativista, midiática, reclusa.

A diversidade de seus encontros dá conta dessa porosidade às circunstâncias da vida, às transformações do planeta. De Gilberto Gil a Hebe Camargo, de João Gilberto a Sócrates e Casagrande, Rita interagiu com meio mundo, e dessa interação surgiram sempre faíscas iluminadoras.

Personagens

A relação com as drogas, com o show business, com a cultura machista, com a política – tudo se expõe com uma clareza cristalina. Como poucos, Rita Lee teve desde sempre a consciência de que em nossa época toda figura pública (artista, político, esportista) se torna personagem de si mesma. “Rita é um dos meus personagens”, diz ela a certa altura.

Talvez venha daí o talento e o impulso para viver outras personae, como as que encarnou no programa “TV Leezão”, da MTV. Alguns dos momentos mais divertidos de Ritas são justamente aqueles em que ela aparece como a dondoca Adelaide Adams ou como o bronco Aníbal (contracenando com Gil). Sua personificação de Raul Seixas (no curta Tanta estrela por aí, de Tadeu Knudsen)também é impagável.

Pena que Rita nunca tenha chegado a se reconciliar com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, seus companheiros de Mutantes. Por conta disso, uma parte relevante de sua atividade artística fica praticamente de fora do documentário. Mas fica de fora também o rancor contra os ex-parceiros que ela demonstrou em certas passagens de sua autobiografia.

Sem rancor, mas também sem hipocrisia: é animador constatar que Rita amadureceu e encontrou uma certa paz, mas sem perder o gume da rebeldia desbocada e da aversão à caretice. O ímpeto libertário nunca a abandonou. Numa passagem hilária ela diz à neta adolescente: “Você precisa ouvir um funk proibidão. Seus pais não deixam, mas eu deixo”. De todas as Ritas, é essa a que fica.

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