Povo em Poema: A mercadoria

Um conto sobre dois brasis na História. Quem teria assaltado as irmãs beatas em Campinas? Por que tirar delas o que usavam para fazer os melhores quitutes da cidade? A resposta surge dias depois, junto ao mar, após viagem que transpôs o planalto e a serra

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I.

Essa história começa na cidade de Campinas. Dois homens adentram no quintal. Sorrateiramente observam a movimentação na cozinha. É madrugada. Lamparinas e o fogão à lenha iluminam o cômodo donde é possível avistar o semblante de duas velhas senhoras. Logo amanheceria e os quitutes poderiam ser vendidos no Largo do Carmo.

Com chapéu e rosto coberto por lenço, os homens, abruptamente, arrombam a porta da cozinha. Eles apontam suas armas para as irmãs beatas, assustando-as, que rogam para que não as machucassem.

– Passem a Mercadoria! – dizem eles.

– Não sejam cruéis, é a fonte de nosso sustento – retrucam as beatas.

– Passem logo, ou seremos obrigados a atirar! – responde um dos mascarados, entre voz trêmula e olhos fixos.

Dois homens jovens, um branco e um negro, só se conseguia avistar olhos e mãos. Os dois pegam a mercadoria e desaparecem na penumbra entre becos. O sol começava a raiar.

II.

As beatas moravam em casa modesta e dependiam da venda dos quitutes para viver. Eram bem quistas na comunidade e conhecidas por seus atos de devoção, sempre atuantes junto às obras da Igreja. Frequentando as missas duas vezes ao dia, sete dias por semana. Haja pecado a expiar!

Apesar do susto, seguiram à missa como em todas as manhãs. Após o sermão, o pároco convida as irmãs para contarem aos devotos sobre o roubo trágico que sofreram:

– Hoje fomos atacadas pelo bando do Antônio Bento. Esse homem torpe alicia jovens da comunidade para que cometam crimes contra a propriedade. Dois deles invadiram nossa casa e apontaram revolveres para nossos rostos. Eram violentos. Roubaram nosso bem mais precioso. Como iremos sobreviver a partir de agora?

– Os quitutes mais deliciosos da cidade! – complementa outra beata, logo na primeira fila da Igreja.

– Que pessoas vis! – diz outra voz.

– É preciso parar com esse tormento! Antes eles assaltavam fazendas, agora estão na cidade invadindo nossas casas e ameaçando famílias! – retruca outro, mais ao fundo da Igreja.

Alguns homens se levantam e conclamam os demais a darem um fim àqueles ataques às casas e fazendas:

– Somos famílias de bem. Esses criminosos não podem continuar impunes! Vamos acabar com eles. É preciso prender todos, tenham a idade que for, não importa origem. Eles estão roubando o que é nosso.

Ouve-se um murmúrio de pavor e o ódio entre muitas vozes. Uma mulher se levanta e começa a rezar, no que é seguida pelos demais. O ambiente se acalma. Outra pede aos presentes para que contribuam com as irmãs roubadas. O pároco assente.

Na saída da Igreja os fiéis entregam moedas em caridade. As irmãs se entreolham, conformadas. A partir daquele momento elas se deram conta de que precisariam encontrar outros meios para sobreviver. Ou teriam que viver de caridade.

III.

Nos limites da cidade os assaltantes seguiam escondidos na casa de um aliado. Para não provocar suspeita, permaneceram atocaiados por duas noites e dos dias, escondendo a mercadoria em um barracão. Até que chegou a hora de despachar a mercadoria. Na estação de trem da Boa Vista, um dos integrantes do grupo conversa com o maquinista:

– Antes de chegar na Estação Central, na curva do Bonfim, eles estarão aguardando.

– Fique tranquilo, vamos deixar o penúltimo vagão com o portão entreaberto – responde o maquinista. – Mas não se esqueçam, o trem não poderá parar totalmente, apenas vou reduzir a velocidade. Atrás dos sacos de café há espaço para se esconderem. Já está tudo organizado.

Assim procedem os assaltantes e a mercadoria foi despachada para a capital.

IV.

A viagem aconteceu sem incidentes. Aproximando-se de São Paulo, após a Estação da Lapa, o trem circundou as barrancas do Tietê, na Barra Funda, e o maquinista reduziu a velocidade. Outra dupla aguardava o produto do roubo, que foi lançado na várzea do rio e depois levado para outro barracão, evitando que a polícia encontrasse.

Alguns dias se passam até que o som de um Tiburi é ouvido. Dois jovens do grupo colocam a mercadoria no maleiro e o condutor segue em direção ao rio Tamanduateí. Chegando às margens do rio, novo deslocamento. Agora para uma barcaça, com a mercadoria entre sacos e cobertas. O barqueiro segue até Paranapiacaba e do alto da serra é possível avistar o mar.

O trecho final seria o mais perigoso, uma vez que os roubos estavam cada vez mais frequentes e a guarda se colocava em prontidão. Teriam que fazer o percurso a pé, atravessando a mata atlântica entre a neblina sobre a serre e barrancos escorregadios. Um dia inteiro de viagem. Mais, se estivesse chovendo.

Até que alcançam o pé da Serra do Mar. Muitos se sacrificaram para que o percurso desse certo, mas sabiam que o sacrifício valeria a pena. Finalmente eles alcançam o Quilombo do Jabaquara.

Ernestina, a quituteira escravizada pelas velhas beatas, apalpa a estigma de ferro quente que ficou marcada em seu rosto, com a ponta dos dedos toca as cicatrizes que resultaram das perfurações e agulhadas que recebia quando errava o ponto dos doces, e pensa nas costas tatuadas pela chibata. Após longa travessia ela sabia que estaria livre dos castigos, protegida e acolhida. Mulher negra, adulta, com aproximadamente trinta anos, aparentava muito mais. Ela abre um sorriso bonito e adentra no Quilombo.

Dizem que Ernestina casou-se na Comarca de Santos, tendo filhos e netos e que viveu feliz. Sabe-se também que os quitutes produzidos por suas mãos eram os mais saborosos do Porto de Santos e os estivadores faziam fila para comprar. Mas ela não vendia todos, reservando parte de suas deliciosas iguarias para distribuir às crianças que a cercavam entre brincadeiras e risadas.

NOTA DO HISTORIADOR – Histórias como essa aconteceram. Não uma vez, mas muitas. Sobretudo na década que precedeu a Abolição da escravatura no Brasil. Não foi obra de uma pessoa só, mas de muita gente. Negros libertos, escravizados rebelados, jovens estudantes, ferroviários, cocheiros, tipógrafos, um ex-juiz de direito em Atibaia, Antônio Bento, seguidor de Luiz Gama e que abandonou o cargo para cumprir juramento que fez no túmulo dele, prometendo que no Brasil nunca mais uma pessoa seria escravizada por outra. Cumpriu o juramento com atitude. E com muita gente junto. O abolicionismo, não o ato da Abolição assinado por uma princesa, mas a luta popular, anônima e corajosa, foi o primeiro grande movimento social brasileiro. Um movimento que possibilitou ao povo se reconhecer povo na solidariedade e na luta. O Quilombo do Jabaquara, em Santos, chegou a contar com uma população de 10.000 pessoas. Quando a Abolição aconteceu em 1888 a libertação dos escravizados já era realidade pela unidade popular do Brasil “de baixo”, Clóvis Moura e tantos pesquisadores já demonstraram a história da gente livre que se rebelou da senzala e da gente livre que esteve junto com eles. Essa é a nossa história. À época, para defender a liberdade era preciso “roubar” escravizados, e aqueles que se colocavam do lado justo eram tratados por criminosos pelos “Cidadãos de Bem”. Honremos essa memória. E que o povo nunca mais seja mercadoria de ninguém.

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