Povo em Poema: A Era das Indignações

Primavera Árabe, Occupy Wall Street, Jornadas de Junho… Poemas sobre as praças do século XXI – e aqueles que desejam esmagá-las. “A indignação,/ como pedra lançada na água,/ gera ondas”, dizem os versos. Mas a fúria só ganha sentido quando ajuda a criar uma Era da Consciência

Foto: Bryan Smith/ZUMA Press/Corbis

  1. Era da indignação
.

Era da Indignação,
do grito, da fúria,
da praça tomada,
do punho cerrado.
E do nada.

As massas tomaram as ruas,
contra reis, emires,
ditadores e presidentes,
contra políticos,
contra os bancos,
contra corruptos,
contra a Casta,
contra o Sistema,
contra tudo e contra todos;
por tanta coisa.

  1. Primavera Árabe

Na Praça Tahir, em Túnis,
na Síria, no Líbano, Bahrein…,
clamaram por liberdade,
fizeram a primavera das multidões
enfrentaram bombas e balas
de exércitos e polícias.

Dez anos passados o que sobrou
do que teria sido a primavera da esperança?
Fundamentalismo, sombras da religião,
intolerância, conformismo e medo.
E os irmãos na praça tornaram-se inimigos.

  1. Porta do Sol

Em Madrid, na Porta do Sol,
tendas ergueram-se.
“- Democracia Real Já!”,
por toda Espanha
e Grécia e Europa Mediterrânea,
tantos ergueram-se em indignação.

Parecia que seria dessa vez.
Mas as palavras de democracia real
sem bem saber o sentido
criaram um o rei sem coroa,
sem cetro, sem rosto.

Da indignação ao demagogo vazio
a falar sobre moral,
inventar culpados
(sempre os mais fracos),
desviar atenção…

Dos indignados,
parte deles ao menos,
mãos que ergueram as tendas
passaram a saudar o braço em riste.

  1. No coração da fera

Ocuparam o coração da fera,
Wall Street:
– Somos os 99%!”

Mas o touro desgovernado
e suas ventas em notas verdes
não caiu;
ao contrário,
um milionário alaranjado
vestiu-se de Messias,
mestre e aprendiz,
fez do povo ressentido e indignado,
base para a autocracia
e espetáculo de intolerância.

Entre muros e deportações,
ódio e mentiras,
tanta infelicidade mais que virá por aí
(já veio, está vindo e virá mais).

  1. Pelos cantos do Brasil

Pelos cantos do Brasil
– É tanta coisa que não cabe em um cartaz!”
Começou por vinte centavos, luta justa,
e virou cão desgovernado.

De Curitiba ecoou o latido:
“- Basta de corrupção!”
Mas quem acusou,
quem incentivou,
quem julgou
sob a toga imunda
servia ao capital
e aos bandidos de sempre.
Houve mais corrupção
e manipulação.

Heróis de barro,
tornaram-se verdugos.
Dos escombros ergueram-se monstros.

Um capitão sem farda,
que pregava Deus com pistola na mão
e falava de família
enquanto vendia a pátria,
se fez falsificação.

Pelos cantos do Brasil
amontoaram-se os mortos na pandemia,
queimaram-se as florestas,
apagaram-se os sonhos.

  1. A indignação

A indignação,
como pedra lançada na água,
gera ondas,
ondas de raiva,
ondas de medo,
e nem dá tempo
para que se conheçam as causas,
sequer a realidade.

Desconhecer causas,
não compreender a realidade
em profundidade,
são aliados dos tiranos.

Tiranos vestem-se de salvadores,
prometem ordem,
prometem justiça,
prometem prosperidade,
prometem sangue
e entregam ditadura,
desmandos, autocracia
mais corrupção, cleptocracia…
– Muito mais!

Mais horror,
desânimo,
tristeza,
raiva.

  1. Na sequência das Eras

Antes da Era das Indignações
houve outra Era, dos Extremos,
foi breve, nem um século,
começou com uma guerra de horror
entre tantas guerras que vieram depois
com igual ou maior horror,
e terminou com um muro ruindo.

Antes dela, uma Era de Impérios
e dominações,
colonizações,
escravizações,
capitalizações.

Antes dela, uma Era de Revoluções,
– Igualdade, Liberdade, Fraternidade!”
Independências,
contra-revoluções,
restaurações,
proletariado fabril,
máquinas a vapor.

  1. A Era da indigência de sentido

Na sequência das Eras
depois dos extremos,
a indigência de sentido,
a indignação cega,
a raiva intempestiva.

Essa é a Era de nosso tempo
e não vai levar a lugar algum;
ou vai?

As Eras sempre levam a algum lugar,
o problema é quando o lugar
não é um bom lugar para viver.

Falta razão, falta sentir,
sobra enraivecimento, fúria,
fereza, repulsão,
cólera e danação.
Falta sentido.

  1. Alimentando-se da fúria

Na sequência das Eras,
em Paris, Porto Príncipe, Petrogrado…,
o povo aprendeu a erguer barricadas,
isso foi há muito tempo,
séculos XVIII, XIX, XX.

No tempo de agora,
nas praças do século XXI,
erguem-se hashtags,
erguem-se memes,
erguem-se emojis,
erguem-se ódios líquidos
cujas razões esvaem
tão rápido quanto surgem.
E sobra o ódio.

Os algozes de sempre,
os demagogos, manipuladores,
interesseiros e ambiciosos,
os Senhores tecnofeudais,
sabem disso.

Alimentando-se da fúria,
ornamentam-se com a cruz,
com a bandeira sem irmão,
com o medo (e ódio) do outro.

E assim a indignação
vira servidão voluntária,
mais uma vez.

  1. Aprende, camarada!

No meio disso tudo,
quando a Era atual parece ser o fim das Eras,
há que lançar um pedido
como tantos que já foram lançados,
alguns aprendidos e outros perdidos:

– Aprende, camarada!”
A indignação só tem sentido
quando se torna consciência.
– Aprende, camarada!
O inimigo não é o pobre ao seu lado,
o infeliz que julgas menor que ti,
não é o refugiado,
nem o vizinho,
nem o que consideras pecador.

  1. A Era da Consciência

– Aprende, camarada!
Da raiva extremista nasce o terror
e você vira engrenagem

para os opressores de sempre.
– Aprende, camarada!

Que a indignação seja o início, não o fim,
que a raiva se torne verbo,
que o grito se torne palavra,
que o medo se torne coragem,
que a mão fechada se abra,
se abra para o outro.

Aprenda
e vamos criar
a Era da Consciência.

Essa sequência poética integra o novo livro de Célio Turino – FIOS DA HISTÓRIA, poemas – pela editora Clóe

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