Poesia: A porta de vidro do céu

Estrelas-mísseis, “com endereço certo”. Uma arara cor de céu. Asas do relâmpago. Grua e bola de demolição sobre nós. Leia sete poemas do escritor paulistano que captura a vida entre a terra e o éter — e pontua: “definitivamente/ esta não é/ a estação de voo”

Detalhe da tela ‘A lua’, de Tarsila do Amaral. Foto: Divulgação MoMA
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Curadoria, seleção e introdução: Tercio Redondo

Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. É autor dos livros de poesia Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2015), Monstruário de fomes (Patuá, 2019) e da plaquete Frente fria (Galileu Edições, 2024). Publicou também livros de poesia infantojuvenil e tem participado de diversas antologias poéticas, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (Global, 2010), Encontros com a poesia do mundo III: antologia de poesia bilíngue português/italiano (Cegraf UFG, 2022). É tradutor dos poetas Boris Vian, Jean-Pierre Siménon, Henri Michaux e Paol Keineg.

SOBRE ESTA SELEÇÃO

Os poemas “Morfina”, ‘Progresso”, “Cura’ e “Big Bang” integram a plaquete Frente Fria (Galileu Edições, 2024). “Em tempos de tanta hostilidade”, “Caminhos incertos” e “Delicadeza” são inéditos.


Morfina

a hélice do ventilador gira
os ponteiros do relógio giram
a Terra gira

nada sai do lugar

um alfinete
espeta nossa alma
na prancha de isopor

um alfinete é nosso eixo –
porém, não giramos

as manhãs são de gesso
e bem menores
do que o lençol

todos os dias
acordamos
numa camisa de força

um enfermeiro à esquerda
outro à direita
montam guarda

definitivamente
esta não é
a estação de voo

Progresso

João Batista e Medusa
pelo trágico método
como terminaram

prenunciam
muito avant la lettre
o fantástico salto tecnológico
atingido
pela Revolução Francesa

e isso, notem,
foi só
o começo

Cura

melhor
um vaso
de cacos colados
que
um não-vaso

as formas
são mais belas
que o nada
simplesmente
porque são

melhor
um vaso
de cacos colados –
nele
as flores se ajeitam

Big bang

quero engolir
e expelir fogo
disparar pelo gramado
como um lagarto assustado
colecionar lágrimas
em pequenos frascos
abrir
com as asas do relâmpago
a porta de vidro do céu
quero erguer a onda gigante
que me transportará
além do fim
da história
e assim
conhecer o dono
de tão sonora gargalhada

Em tempos de tanta hospitalidade

em tempos de tanta hostilidade
teu sorriso
é oásis e mistério

escada Magirus
me leva aos céus
onde caminho entre estrelas

chega a aurora
e diviso no horizonte
uma chuva de estrelas
caindo sobre a Terra

esfrego os olhos

estrelas não são estrelas
são mísseis
com endereço certo

tropeço
em estrelas enferrujadas
e corpos retorcidos

as lágrimas da aurora
são minhas agora

me deprime
o eterno pesadelo
da espécie

existe a humanidade?

Caminhos incertos

o mundo é uma trilha
com muitas bifurcações

uma arara azul cruza o céu

o céu é um oceano
não há limites no céu

o caminho do homem é estreito
é um ir sem volta
há muitas pessoas no mundo
só cruzaremos umas poucas

dessas
algumas
fazem toda a diferença

à beira do caminho
assim como a arara azul no céu
flores minúsculas
pedem um minuto de nossa atenção
para entendermos o significado
da palavra milagre

no mais das vezes
vamos fazendo mal uso do mundo
plantando guerras desertos inundações

Delicadeza

com fio invisível
de teia de aranha
a grua ergue ao céu
a lua cheia

lua cheia
mais leve
que uma bola
de pingue-pongue

a grua
age
com toda
delicadeza

nada lembra
de dia
o rude cabo de aço
e a bola de demolição

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