Poesia: A porta de vidro do céu
Estrelas-mísseis, “com endereço certo”. Uma arara cor de céu. Asas do relâmpago. Grua e bola de demolição sobre nós. Leia sete poemas do escritor paulistano que captura a vida entre a terra e o éter — e pontua: “definitivamente/ esta não é/ a estação de voo”
Publicado 31/01/2025 às 16:10 - Atualizado 31/01/2025 às 16:59
Curadoria, seleção e introdução: Tercio Redondo
Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. É autor dos livros de poesia Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2015), Monstruário de fomes (Patuá, 2019) e da plaquete Frente fria (Galileu Edições, 2024). Publicou também livros de poesia infantojuvenil e tem participado de diversas antologias poéticas, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (Global, 2010), Encontros com a poesia do mundo III: antologia de poesia bilíngue português/italiano (Cegraf UFG, 2022). É tradutor dos poetas Boris Vian, Jean-Pierre Siménon, Henri Michaux e Paol Keineg.
SOBRE ESTA SELEÇÃO
Os poemas “Morfina”, ‘Progresso”, “Cura’ e “Big Bang” integram a plaquete Frente Fria (Galileu Edições, 2024). “Em tempos de tanta hostilidade”, “Caminhos incertos” e “Delicadeza” são inéditos.
Morfina
a hélice do ventilador gira
os ponteiros do relógio giram
a Terra gira
nada sai do lugar
um alfinete
espeta nossa alma
na prancha de isopor
um alfinete é nosso eixo –
porém, não giramos
as manhãs são de gesso
e bem menores
do que o lençol
todos os dias
acordamos
numa camisa de força
um enfermeiro à esquerda
outro à direita
montam guarda
definitivamente
esta não é
a estação de voo
Progresso
João Batista e Medusa
pelo trágico método
como terminaram
prenunciam
muito avant la lettre
o fantástico salto tecnológico
atingido
pela Revolução Francesa
e isso, notem,
foi só
o começo
Cura
melhor
um vaso
de cacos colados
que
um não-vaso
as formas
são mais belas
que o nada
simplesmente
porque são
melhor
um vaso
de cacos colados –
nele
as flores se ajeitam
Big bang
quero engolir
e expelir fogo
disparar pelo gramado
como um lagarto assustado
colecionar lágrimas
em pequenos frascos
abrir
com as asas do relâmpago
a porta de vidro do céu
quero erguer a onda gigante
que me transportará
além do fim
da história
e assim
conhecer o dono
de tão sonora gargalhada
Em tempos de tanta hospitalidade
em tempos de tanta hostilidade
teu sorriso
é oásis e mistério
escada Magirus
me leva aos céus
onde caminho entre estrelas
chega a aurora
e diviso no horizonte
uma chuva de estrelas
caindo sobre a Terra
esfrego os olhos
estrelas não são estrelas
são mísseis
com endereço certo
tropeço
em estrelas enferrujadas
e corpos retorcidos
as lágrimas da aurora
são minhas agora
me deprime
o eterno pesadelo
da espécie
existe a humanidade?
Caminhos incertos
o mundo é uma trilha
com muitas bifurcações
uma arara azul cruza o céu
o céu é um oceano
não há limites no céu
o caminho do homem é estreito
é um ir sem volta
há muitas pessoas no mundo
só cruzaremos umas poucas
dessas
algumas
fazem toda a diferença
à beira do caminho
assim como a arara azul no céu
flores minúsculas
pedem um minuto de nossa atenção
para entendermos o significado
da palavra milagre
no mais das vezes
vamos fazendo mal uso do mundo
plantando guerras desertos inundações
Delicadeza
com fio invisível
de teia de aranha
a grua ergue ao céu
a lua cheia
lua cheia
mais leve
que uma bola
de pingue-pongue
a grua
age
com toda
delicadeza
nada lembra
de dia
o rude cabo de aço
e a bola de demolição