Pinga, s.f. – um papo com o pai dos bêbados 

Dois especialistas em cachaça fazem uma breve viagem pela história do destilado brasileiro através das páginas dos dicionários. Mas o que descobrem é que as fontes eruditas, às vezes, trazem bem escondidas as pistas pra se chegar na cultura popular

— É possível, mas não interessante — respondeu Lönnrot.
— O senhor replicará que a realidade não tem
a menor obrigação de ser interessante.
Eu lhe responderei que a realidade pode
prescindir dessa obrigação, porém não as hipóteses. 

Jorge Luís Borges, “A morte e a bússola” 

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Fala-se muita bobagem sobre cachaça. Às vezes, como se fosse a verdade mais profunda do planeta. Alguém pode objetar que se fala bobagem sobre quase tudo, ainda mais hoje em dia, em que a mentira nunca teve pernas tão longas. Olha, é verdade, mas aí a gente pode contestar que, se tem uma coisa sobre a qual não vale a pena falar bobagem, porque é bem melhor não falar nada e beber — nem que seja pra falar bobagem sobre outras coisas —, é a cachaça. Então, bora beber uma boa branquinha e fazer um esforço pra falar um pouco menos de bobagem. Ou então falar bobagem em plena consciência, o que já é um pecado a menos — ou a mais? Sabe lá… mas pelo menos é mais divertido. 

Hoje o assunto é… pinga! E vamos começar com a palavra “pinga”. Ora, todo mundo sabe por que a pinga se chama assim, não é mesmo? Pois é, mas aí é que o caldo desanda… Um jeito de falar bobagem é dizer uma meia verdade. Por exemplo, quando você vê uma coisa e diz aquilo que vê. Você pode não estar falando nenhuma mentira, uma vez que está sendo fiel aos próprios olhos. Mas nada garante que esteja dizendo a verdade sobre a coisa. Só sei que nada sei. Muito bem, começamos com filosofia, que, como todos sabem, é uma das artes do bar. 

Antes de prosseguir, vamos colocar o jogo na mesa. Esta prosa é a abrideira de uma série que nós, Maurício e Maurício, o Carneiro e o Ayer, e vice-versa, resolvemos escrever, para compartilhar com vocês. Não sabemos quantas garrafas serão emborcadas aqui, nem até quando… mas podem ter certeza de que a leitura terá o preparo cuidadoso de quem seleciona os melhores ingredientes que tem à disposição, trabalha-os meticulosamente e serve, porém, com uma pitada de displicência, pra o convidado ficar bem à vontade pra beber fartamente, sem cerimônia. Serão coisas sobre cachaça e todos os seus etcéteras. Se for de seu gosto, leia e compartilhe sem moderação – e se puder passar pra deixar um comentário, será sempre muito bem-vindo. 

Um trago erudito

Então vamos lá: de onde vem a pinga? Não a pinga em si, a palavra pinga… Ora, essa é fácil! Todo mundo sabe que a pinga se chama assim porque o alambique… pinga – do verbo pingar. Nada mais óbvio, papo encerrado, boa noite, vamos ao próximo bar. 

Calma lá! Não é bem assim. Ou melhor, até é assim, mas não é assim. E talvez a história que explique por que a gente chama pinga de pinga seja, na verdade, outra…  

É curioso, pois, muitas vezes, a gente ainda ouve um papo assim. O camarada mostra a garrafa de uma caninha especial e diz: esta aqui é uma verdadeira cachaça, é de alambique! Aquela ali não, ela é industrial, isso aí é pinga! Pelo menos em São Paulo se ouve esse tipo de ideia. Mas a cachaça dita industrial é produzida em destiladores contínuos de coluna, ou seja, um tipo de equipamento no qual a pinga… não pinga! Quem pinga é justamente o alambique, e ainda assim mais no comecinho do processo. Essa contradição talvez nos diga alguma coisa. 

Estamos falando aqui de um uso recente da palavra pinga. Mas as palavras, como tantas coisas, também têm a sua história, e muitas vezes ela se transforma com o tempo. Toda palavra traz em si a marca de sua origem, mas também as cicatrizes das batalhas que enfrentou, essa guerreira…

Então, pra começar a falar da pinga, resolvemos ver como é que o vocábulo aparece nos dicionários, este companheiro mal apelidado de “pai dos burros”, já que nunca se viu burro que queira mesmo conhecer a palavra na sua filigrana – seria melhor chamá-lo de “parceiro dos humildes”, pois é quando a gente se sente ignorante – como todo ser humano que sabe alguma coisa – que vai procurar saber os significados dicionarizados de uma palavra. Alcemos então o nosso amigo ad hoc como “pai dos bêbados”, pois não? 

Aqui cabe um comentário: ao contrário do que muita gente pensa, o dicionário não é quem dá “a última palavra”, não é a lei eterna em matéria de uma língua. O dicionário de língua portuguesa, por exemplo, na verdade é feito por gente muito atenta aos usos da língua e procura registrar os diferentes significados que as pessoas atribuem às palavras nas suas vidas. Daí os múltiplos sentidos de uma palavra. Daí também que ao longo dos séculos – e até mais amiúde pelas décadas – os dicionários vão mudando, principalmente para acrescentar novas palavras que vão surgindo ou novas acepções de velhas palavras.     

Se a gente consultar o primeiro dicionário da língua portuguesa, o Dicionário Portuguez Latino, elaborado entre 1712 e 1728 pelo padre francês Raphael Bluteau, o verbete “pinga” diz que ela é a “gota que cai de um lambique ou outra cousa”. 

— Bingo! E aí, Maurícios, não estão satisfeitos? “gota que cai de um lam-bi-que”! Precisa mais alguma coisa? 

— Calma… vamos chegar lá. 

Pois bem, acontece que essa acepção que está no primeiro dicionário simplesmente desaparece dos dicionários que vieram depois! E isso por praticamente dois séculos! Por exemplo, no Diccionario da Língua Portugueza, do lexicógrafo pernambucano Antonio de Moraes Silva, publicado em Lisboa em 1789 (consultamos a segunda edição, de 1813), a definição do verbete fica no campo da gota, mas o alambique some da jogada. Diz ali que a pinga  é “gota que cai, uma porção mínima” e exemplifica: “Nem pinga d’água, nem pinga de sangue lhe ficou no corpo”. Ainda menciona que “boa pinga” pode significa “vinho bom”.

A palavra “pinga”, segundo o dicionário Aurélio, tem sua origem no latim, derivada de pendicare, que significa “pender”, e é associada ao sentido de “gota” ou “pequena quantidade de líquido”. Seu uso pelos portugueses remonta, pelo menos, ao início do século XVI, geralmente com esse significado: pequenas porções. Em 1517, a palavra já aparece associada ao vinho, como registrada pelo grande dramaturgo português, Gil Vicente, em uma de suas obras mais conhecidas, o Auto da Barca do Inferno. Nessa obra satírica que retrata o juízo final, há um diálogo entre o Diabo e o Frade, em que o primeiro menciona: “Devoto padre marido, deveis de ter cá algum vinho pingado.” Vejam que aqui o assunto é vinho, e ainda vamos ver isso mais de perto, mas o “pingado” é bem claramente o “fracionado”.  

Ao longo de todo o século XIX, a pinga vai sempre aparecer no dicionário como um sinônimo do que hoje chamamos “pingo”, no masculino, mas também como algo próximo de um trago, uma dose, um bocado de uma bebida. Porém, não é só que não fala em aguardente ou cachaça como sinônimo, invariavelmente, todos os exemplos são dados com outra bebida: o vinho! Vimos o exemplo do dicionário Moraes. 

No Grande Dicionário Portuguez ou Thesouro da Língua Portugueza, publicado sob a direção do Frei Domingos Vieira em  1871, o registro se mantém muito próximo ao de Moraes. Diz: “Gotta que cae. Termo popular e jocoso. — Bella pinga; vinho bom”.  E o mesmo ocorre com a 7a edição do Moraes, de 1877, com a diferença de indicar que a pinga pode referir-se não só a vinho como a liquor e, até, rapé! 

No conjunto de obras consultado nesta breve pesquisa (que não teve qualquer pretensão de ser exaustiva), a primeira aparição de “pinga” como sinônimo de “Aguardente, cachaça, parati” ocorre em 1944, no Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa, de Francisco Fernandes, em sua 3a edição revisada pelo grande estudioso da língua Celso Luft. Do ano seguinte, consultamos a 10 edição do Moraes, agora como o título Grande Dicionário da Língua Portuguesa, que também registra essa acepção: “Bras. Pop. Bebida alcoólica, especialmente aguardente.” O mesmo aparece no dicionário de Laudelino Freire (2a edição, 1954) e finalmente no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, o famoso Aurélio, com uma formulação muito parecida. Interessante atentar para o exemplo  oferecido pelo Aurélio para a primeira acepção da pinga – “Gole, golo, trago” –, uma citação de Histórias Rústicas, de Virgílio Várzea: “Assim entregue o boi à multidão, os laçadores subiram à casa do Vidal, à tomar uma pinga da branca”. “Pinga da branca” quer dizer um “trago de aguardente” (poderia ser uma pinga de vinho…). 

A pinga e suas hipóteses

Feito esse pequeno percurso pelos pais dos bêbados, que conclusão podemos tirar? Bem, conclusão, talvez nenhuma… mas algumas boas hipóteses. A primeira é a de que, embora a pinga tenha aparecido associada ao alambique lá no primeiro dicionário do Bluteau, no início do século XVIII, essa relação, tendo desaparecido dos vocabulários seguintes, não parece tem uma linha de continuidade com a ideia que se faz hoje, e que mencionamos no início deste texto. Pode ser que esse sentido tenha permanecido vivo no falar popular, mas o sentido que ganhou proeminência nos registros posteriores foi o de “pequena quantidade de líquido” e, depois, esse líquido sendo especificado como bebida alcoólica, em especial o vinho. 

A segunda é a de que a pinga como sinônimo de bebida parece ser um uso bastante popular, e por isso registrado tardiamente nos dicionários. E mais tardiamente quando se tratava da mais popular das bebidas, a caninha. Nossa pesquisa não permite dizer que nenhum dicionário registrou pinga como aguardente antes de 1944, é possível que tenha acontecido. E no entanto, na literatura, podemos citar o célebre poema de Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade, publicado em 1924 (e bem mais tarde musicado por João Bosco): “No baile da corte, / foi o Conde d’Eu quem disse para dona Benvinda / Que farinha de Suruí / Pinga de Parati / Fumo de Baependi  / É comê bebê pitá e caí”. E também a famosa Moda da Pinga, composta no interior de São Paulo, foi gravada pela primeira vez por Raul Torres, em 1937.

Pedir uma pinga na venda devia ser algo muito comum. Não se anotava uma “barrica de pinga” num inventário (podia ser de aguardente ou de cachaça, que eram coisas diferentes), mas para pedir no balcão, pelo menos para os lados de São Paulo, Rio e Minas (a julgar por alguns exemplos), pode-se imaginar que a palavra usada era pinga. Sendo a “pinga” quase sempre de “cachaça”, aos poucos foi se tornando um sinônimo da aguardente brasileira, e excluindo a possibilidade de se referir a outras bebidas. 

A essas duas hipóteses, podemos acrescentar uma terceira: será que ao diferenciar a “cachaça” – mais tradicional, de qualidade, de alambique – da “pinga” – industrial, mais barata – a questão não seja justamente o campo de associação que as duas palavras trazem no consumo da caninha? Cachaça é a que se busca no alambique, pinga é a que se pede no balcão. Nada a ver, portanto, com o fato de que o “alambique pinga”. 

Bom, minha gente, por hoje é só. Tomemos cada qual a sua pinga e bora seguir com essa prosa, nos próximos artigos que vamos publicar por aqui. Fiquem atentos que temos muito assunto pra compartilhar. 

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