O último transbordamento de Helô
Morre Heloísa Teixeira, editora, ensaísta e professora da UFRJ. Pioneira do feminismo no Brasil e criadora da Universidade das Quebradas, deixa como legado um inventário de ousadias e uma obra incontornável para a crítica cultural brasileira
Publicado 28/03/2025 às 16:07 - Atualizado 28/03/2025 às 18:01

Por André Botelho e Caroline Tressoldi para a coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)
Leia outros textos da coluna da BVPS no Outras Palavras.
Heloisa Helena Teixeira de Souza Oliveira nasceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, em 1939. Ainda menina, mudou-se com seus pais para o Rio de Janeiro — e do Rio ela não saiu mais.
Em 1956, iniciou a graduação em Letras Clássicas na PUC-Rio, onde conheceu colegas para a vida inteira, muitos deles atuantes nos Centros Populares de Cultura, além de seu primeiro marido, Luiz Buarque de Hollanda (1939–1999), estudante de Direito, com quem teve seus três filhos: Luiz, André e Pedro. Formada em 1959 e já casada, passou a assinar Heloisa Buarque de Hollanda — nome que utilizou até recentemente, quando, contagiada pela quarta onda feminista, abandonou o sobrenome do ex-marido e passou a utilizar o materno. Em entrevista ao jornal O Globo, declarou a mudança pouco antes de assumir uma vaga na ABL: “Não vou morrer sendo Heloisa Buarque de Hollanda. Eu não nasci assim. Quero morrer confortável, de mãos dadas com a minha mãe, que não pôde falar.”
Ao lado de Luiz, Helô embarcou para os Estados Unidos em 1963, onde trabalhou como assistente de pesquisa no Instituto de Estudos Latino-Americanos, sob orientação de Dean Barnes. Na volta, no segundo semestre de 1964, tornou-se assistente de Afrânio Coutinho na cátedra de Literatura Brasileira da Faculdade Nacional de Filosofia da então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com Coutinho, Heloisa fez seu mestrado (1974) e doutorado (1979) em Literatura Brasileira, ousando nos temas e enfoques analíticos.
No mestrado, em parte publicado em seu primeiro livro autoral, Macunaíma: da literatura ao cinema (1978), analisou a obra clássica de Mário de Andrade em sua transposição poética para o filme dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, desenvolvendo uma interpretação cruzada entre literatura e cinema. Modernismo e Cinema Novo se misturavam para explicar o país sob a ditadura militar então em curso. Em seu segundo livro, Impressões de viagem (1980), resultado do doutorado, ela estudou três momentos da produção cultural das décadas de 1960 e 1970: os Centros Populares de Cultura, o tropicalismo e seus desdobramentos, e a poesia marginal. Antes disso, a organização da hoje clássica antologia 26 poetas hoje (1976), que reunia uma poesia de contracultura, já revelava indícios da perspectiva original que ela imprimiu aos estudos literários da época, elegendo como objeto de investigação linguagens literárias e artísticas que deslocavam o cânone privilegiado pela crítica acadêmica no Brasil.
Daí em diante, Heloisa não parou mais de inventar e provocar a desierarquização das instituições. Assinou coluna no Jornal do Brasil entre 1980 e 1983, espaço que utilizou para reivindicar uma crítica da cultura que não fugisse à investigação do novo e que assumisse os desafios postos pelo tempo presente. Em 1986, logo após realizar um pós-doutorado nos Estados Unidos com Jean Franco, onde teve contato, a um só tempo, com os estudos culturais e com o debate teórico feminista, Heloisa criou na UFRJ o Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (CIEC), para desenvolver pesquisas sobre a produção cultural contemporânea, com foco nos debates racial e de gênero. Mais tarde, em 1994, inventou mais um espaço para abrigar pesquisas semelhantes às que estavam se desenvolvendo no CIEC: o Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), onde Heloisa desenvolveu pesquisas em torno dos estudos culturais nos últimos trinta anos.
Foi no PACC que ela criou uma de suas mais ousadas iniciativas institucionais: a Universidade das Quebradas, um espaço de experimentação de novas metodologias de aprendizagem voltado para estudantes das periferias. Desde 2009, sempre em mutação, a UQ tem promovido, em mão dupla, uma reorganização e ampliação contundente do campo da cultura, reconhecendo e estimulando as irritações mútuas entre universidade e as quebradas. É um laboratório de inovação na produção de conhecimento cultural e, sobretudo, de reconhecimentos sociais — não somente de um “outro que aprende” em relação a um “eu que ensina” (e vice-versa), mas também de um “nós” nas diferentes interações em que nos vemos cotidianamente. No ano passado, por exemplo, a UQ foi parar dentro da Academia Brasileira de Letras. A obra de Machado de Assis foi pensada em articulação com a questão racial no Brasil. Com Helô, as quebradas chegaram à ABL e transformaram Machado de Assis.
Helô foi ainda uma talentosa editora. Foi diretora da Editora UFRJ entre 1990 e 1998 e criou sua própria editora, a Aeroplano, em 1998. Dentre as muitas publicações da Aeroplano, destaca-se a coleção “Tramas Urbanas”, fundamental para a afirmação das chamadas literaturas periféricas e para a divulgação de novos escritores, novas escritas, novas autorias, novas literaturas e outras linguagens estéticas e políticas.
Para além da criação de instituições — algumas vezes literalmente com as próprias mãos, já que Helô adorava quebrar uma parede —, sua contribuição teórica é inestimável para a cultura brasileira. Além de reposicionar o cânone literário com sua discussão sobre a poesia marginal e a produção cultural das décadas de 1970 e 1980, expressa em diferentes trabalhos e em seu último livro, Rebeldes e marginais (2024), Helô nos deixou muitos livros sobre feminismo. No começo da década de 1990, organizou obras que se tornaram centrais no debate feminista, como Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura (1994), mas foi nos últimos anos que ela mais se dedicou ao tema. Assustada e animada com a mobilização feminista da última década, a maioria de seus livros publicados desde 2018 é dedicada à jovem geração de feministas. Como uma “avó” orgulhosa de suas “netas políticas” que voltaram às ruas — mas também atenta às persistências e recriações das desigualdades de gênero —, publicou Explosão feminista (2018), organizou As 29 poetas hoje (2019) e a Coleção Pensamento Feminista, lançada entre 2019 e 2020 em quatro volumes pela editora Bazar do Tempo, além de escrever Feminista, eu?, um de seus trabalhos mais belos sobre a produção cultural de mulheres entre as décadas de 1960 e 1980, quando o feminismo tomava forma no país.
Helô era imparável e incansável. Deixou muitos projetos em aberto, alguns livros começados e nos ensinou que a luta pela democratização da cultura e das instituições é uma luta pela qual vale a pena nos comprometermos. Obrigada por tanto, Helô!
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