O jogo de luz e sombra em Ainda estou aqui
Com linguagem sofisticada, filme adquire também uma dimensão metafórica. Nas cenas de escuridão, sob o capuz ou as cortinas de casa fechada, revela-se a clareza da ditadura. E na revelação de seu sequestro, a turva possibilidade de ver o corpo do ex-deputado
Publicado 24/03/2025 às 18:49 - Atualizado 24/03/2025 às 18:50

“Nem sempre o que é, parece; mas o que parece seguramente é”.
“As aparências enganam”.
(Ditados brasileiros, aparentemente contraditórios).
1.
Os dois ditados da epígrafe acima se aplicam ao filme de Walter Salles, e não são contraditórios. Pelo contrário. Como sempre, no mundo dos ditados se encontram tanto uma afirmativa quanto sua negação. “Devagar se vai ao longe”, diz um; “quem espera, desespera”, diz o outro, logo ao lado. A “verdade” não pertence nem a um nem ao outro, separadamente. A sabedoria está em jogar com seu equilíbrio, reconhecendo quando um se aplica, e quando o outro.
Assim acontece com o filme, que faz um jogo alternado ou simultâneo com os claros e os escuros. E como se verá, a clareza oculta e revela seu lado escuro; enquanto o escuro esconde e revela a clareza do que as aparências luminosas ocultam.
Este jogo começa pelo título, tomado do livro de Marcelo Rubens Paiva (que não li, esclareço). O “ainda estou aqui” se refere a quem deixou de estar ali, mas cuja ausência afirma a presença de sua denúncia.
Faço uma anotação prévia. Li muitos comentários – pertinentes e relevantes – sobre o impacto político do filme, tanto como revisão do passado, quanto como intervenção em nosso complexo presente, em que pululam no Brasil e no mundo inteiro os saudosos dos fascismos e das ditaduras. Também li muitos elogios, todos mais que merecidos, à atuação da premiada Fernanda Torres e também a de sua mãe, Fernanda Montenegro, nos momentos finais do filme, como uma Eunice Paiva acometida de Alzheimer. Mas muito pouco – quase nada, na verdade – li sobre o filme em si e sua linguagem cinematográfica. É o que vou abordar aqui, pelo menos em parte.
2.
Advirto que só assisti o filme uma única vez. Portanto, tudo aqui está sub judice de minha memória, onde se embaralham as imagens do filme com as lembranças dos tempos que ele evoca, que também vivi dramaticamente.
O que mais me marcou ao ver o filme foi o que lá no título e no começo deste artigo chamei de jogo claro/escuro.
Uma constante no filme é a convivência na tela de imagens claras com imagens escuras. Estas podem estar no pano de fundo daquelas, ou ao lado. Por exemplo, nos muitos closes dos rostos dos personagens, em que ou eles aparecem iluminados contra um fundo escuro ou ao lado de um canto escurecido da tela.
Ou o jogo claro/escuro se dá por alternância. Por exemplo, entre as cenas iluminadas da paisagem carioca e as cenas escuras dos porões da ditadura, isto é, o cárcere dos interrogatórios, com seus sons atrozes das torturas. Neste particular, penso que o filme é muito feliz, denunciando a violência sem recorrer a exageros de ketchup e contusões arroxeadas de um brutalismo exacerbado.
Ou aquele jogo se dá ainda no momento em que os rostos são recobertos pelo escuro dos capuzes e por aí vai.
Ressalto que neste contexto “escuridão” não se refere a uma cor, sequer a uma ausência de cor, na definição clássica. Denota, isto sim, a incapacidade ou a impossibilidade de “ver”, como acontece com as pessoas encapuzadas.
Ocorre que as cenas iluminadas por vezes são repletas de escuros. Enquanto que os escuros revelam algo que se esconde por detrás das iluminações na superfície.
E o filme começa por uma destas superfícies luminosas. Depois de perder seu mandato como deputado, cassado que foi pelo Ato Institucional no. 1, Rubens Paiva tenta reorganizar-se numa vida “normal” com a família, no Rio de Janeiro. Mas como presságios sombrios do que está por vir, caminhões cheios de militares e blindados rondam as ruas e os passos dos personagens.
Estes lampejos luminosos terminam de vez quando os militares/policiais invadem a casa da família. Enquanto alguns levam embora – e para sempre – o ex-deputado, os que ficam na casa, num gesto simbólico, fecham as cortinas das janelas: o lado escuro desce sobre todos.
Eunice e a filha terminam sendo levadas para o calabouço, com a escuridão dos capuzes tapando seus rostos.
E seguem-se os dias no escuro do cárcere, com os interrogatórios repetitivos, extenuantes, humilhantes, desconcertantes, absurdos.
E é nesta sombra escura da prisão que se revela a clareza da ditadura: diante dela, e para ela, não há inocência nem inocentes. Trata-se de extinguir a luz própria das pessoas-alvos, fazendo-as confessar o que sabem e até o que não sabem, obrigando-as a gravitar em torno do luto a que estão condenadas: o luto pela perda da liberdade.
Mas no caso de Eunice Paiva há também o duplo luto pela perda do marido, de que gradualmente toma consciência, e da perda de seu corpo, desaparecido nas entranhas da monstruosidade. E se instala a torpe escuridão da mentira. Paiva “sumiu”, foi “sequestrado por um grupo guerrilheiro”, “nunca passou por aqui”, nas versões oficiais.
Eunice termina por tomar conhecimento também da vida secreta de seu marido, por detrás da luminosa “normalidade” que a ocultava. Ele e alguns amigos ajudavam clandestinamente gente perseguida pela ditadura, levando e trazendo informações, recebendo e distribuindo correspondências, facilitando a fuga de pessoas ou propiciando-lhes esconderijos. Por isto ele foi preso, torturado e assassinado.
Com o passar do tempo, colhendo palavras e impressões aqui e ali, vem-lhe a certeza de que o marido foi morto. Mas a clareza dolorida desta revelação segue turvada pela escura impossibilidade de “ver” o seu corpo, sequestrado novamente pela torpe decisão, por parte de seus algozes, de além de cometer o crime, cometer o segundo crime de impedir o seu reconhecimento.
3.
Com este jogo de claro/escuro, o filme adquire uma dimensão metafórica. Quando Eunice e sua filha são encapuzadas, é o Brasil inteiro que é encapuzado. E naquela sala dos interrogatórios o jogo se completa: os interrogadores, com seus álbuns de fotografias, acuam Eunice, que, de fato, nada sabe das atividades de seu marido depois de sua cassação, ressalvando-se que para a ditadura preservar vidas de pessoas perseguidas era um “crime lesa-pátria”.
Mas a câmara do filme, por sua vez, acua o interrogador, com a brilhante atuação do ator, expondo sua arrogância estrutural, o fato de que, como na Inquisição histórica, a ré (porque a delegacia se toga de tribunal e se transubstancia em cadafalso) é julgada de antemão por um crime que não sabe qual foi porque não tem o direito de saber. O único “direito” que lhe resta é o de confessar o crime que não cometeu.
A metáfora do encapuzamento retorna, mutatis mutandis, no final do filme. Eunice/Fernanda Montenegro olha pasma, acometida de Alzheimer, para uma tela de televisão, enquanto o restante da família confraterniza em almoço talvez domingueiro.
Sua imagem, novamente, vale como metáfora do país inteiro, este Brasil opresso por políticas de promoção do esquecimento, patrocinadas por mídias corporativas que conspiraram pela ditadura, a apoiaram e estigmatizaram seus opositores como terroristas, ou de agências repressivas, sejam privadas ou estatais. A reportagem televisiva sobre a ditadura equivale a um mea culpa quae sera tamen, ainda que tardio, embora tenha seus méritos.
Envolta na escuridão do Alzheimer, Eunice/Fernanda reconhece, com um tímido e delicado sorriso (genialidade de direção, interpretação e câmera) , a imagem do marido sequestrado, assassinado e de corpo desaparecido.
Este gestus da imagem contém uma revelação profunda. Promovido pela ditadura e por seus adoradores satânicos de hoje, o esquecimento parece ser uma vocação do Brasil. Não é. A memória resiste, mesmo nos delicados melindres das nebulosidades.
No começo dos anos 1970, quando aconteceram o sequestro e o assassinato de Rubens Paiva, grassavam no Brasil os primeiros momentos do governo do general Emílio Médici, catapultado em sua aceitação por uma burguesia satisfeita com a repressão e uma classe média seduzida pelos acenos da casa própria e do segundo ou terceiro carros, no auto-proclamado “milagre brasileiro”.
Eram tempos a um tempo eufóricos e sinistros, feéricos e de escuridão total. Acreditavam os ditadores e seus asseclas e acreditávamos nós, da resistência esmagada, torturada, assassinada, exilada ou silenciada, que nada, nunca mais, aconteceria de novo no país. A mesma crença que hoje os adoradores da ditadura e dos fascismos renascentes querem nos impingir.
Felizmente, eles estavam, e nós estávamos, e eles hoje ainda estão completamente errados. E este filme, com sua linguagem sofisticada e transparente, voejando sobre escuridões e apagões da memória, é uma prova disto.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras