O Eternauta ainda sai às ruas
A morte cai do céu, como no bombardeio à Praça de Maio, em 1955, mas a resistência se faz pelos “de baixo”. Personagem de Oesterheld tornou-se bandeira em protestos na Argentina. Na 2ª parte da HQ, relançada no Brasil, anteviu tempos sombrios, mas sem perder esperanças
Publicado 11/07/2025 às 17:48

Às 12h e 40 minutos do dia 16 de junho de 1955, 30 aeronaves da Marinha e da Força Aérea argentinas bombardearam a Praça de Maio, em Buenos Aires, capital do país, no que que foi o maior bombardeio aéreo da história da Argentina. O ataque foi executado segundo meticuloso plano, que incluiu bloquear de fato as comunicações entre o presidente Perón e os líderes sindicais que coordenavam a manifestação em favor de seu governo que ocorria naquele tradicional ponto da vida política da cidade.
Com efeito, os dirigentes do ato público não receberam a ordem do presidente de sair da praça em face da ameaça de um ataque aéreo.
O ataque foi o primeiro passo de um golpe de estado fracassado contra o governo de Juan Domingo Perón. O número de corpos identificados foi de 308, mas outros relatos falam em 364 vítimas, incluindo 6 crianças, além de um número indeterminado de vítimas que não puderam ser reconhecidas.
Pouco mais de 3 meses depois, Perón foi de fato derrubado pelo golpe de 16 de setembro, na mal denominada “Revolução Libertadora”. Desde então, a Argentina viveu entre golpes militares e ditaduras, entremeados de curtos interlúdios de liberdades democráticas, até 1983, quando desabou a ditadura instaurada pelo golpe de 1976.
Em 16 de junho de 1955, então, a morte caiu do céu para centenas de cidadãos argentinos e esta imagem chocou Hector Oesterheld, já então um requisitado roteirista de quadrinhos do mercado sul-americano. A imagem do terror que desaba das nuvens sem possibilidade de reação para as vítimas jamais abandonou a mente de Oesterheld e foi sublimada na forma de uma nova série em quadrinhos roteirizada por ele e desenhada pelo ilustrador Francisco Solano Lopez, O Eternauta, publicada pelo Editorial Frontera, na sua lendária revista Hora Cero, em capítulos semanais, entre 1957 e 1959.
O Eternauta é uma obra fundadora, tendo antecipado, tanto em termos literários como no plano visual, boa parte do que seria feito na arte sequencial nas décadas seguintes.
A obra foi reeditada em novembro de 2024 no Brasil, numa luxuosa apresentação para colecionadores pela Editora Pipoca e Nanquim, 13 anos depois de sua primeira publicação brasileira, pela Martins Fontes. No final de abril último estreou no Netflix a série baseada nos quadrinhos originais estrelada por Ricardo Darin.
O Eternauta narra um estranho fenômeno atmosférico, uma nevasca letal cujos flocos matam ao simples contato com qualquer ser vivo. A maior parte da população, ademais sem que qualquer meio de comunicação funcione, é instantaneamente obliterada, restando poucos sobreviventes, ilhados em suas casas e em outras edificações onde se achavam quando a nevasca começou.
No fluxo narrativo imaginado por Oesterheld, o extraordinário fato é narrado anos antes de ocorrer. Logo nos primeiros quadrinhos, Juan Salvo (O Eternauta, vindo de seu eterno vagar pelo éter), um viajante do tempo, narra sua história ao próprio Oesterheld.
O Eternauta lida com invasões alienígenas, mas não necessariamente, como na série em quadrinhos, de alienígenas extraterrestres. A HQ é uma alegoria das dominações estrangeiras que não se notam no imediato, que se apropriam de tudo que se conhece, das propriedades, das riquezas e das vidas das populações nativas, como uma força irresistível e natural. Mas lida também com a violência estatal, na forma de regimes que correspondem às invasões alienígenas, as ditaduras militares que dominaram a vida nacional de tantos países da América Latina no tempo de existência de Oesterheld.
Contudo, Oesterheld nada tem de fatalista. Sua distopia pós-apocalíptica joga o foco na resistência popular. O pequeno núcleo semifamiliar que reage em defesa da própria vida no início da saga se expande pouco a pouco. Ao mesmo tempo, a visão pessimista que se apresenta nos primeiros atos da história, com a desumanização progressiva dos personagens, a luta pela sobrevivência individual animalizando as pessoas e grupos, vai pouco a pouco dando lugar à solidariedade e à resistência coletiva organizada aos invasores.
A mensagem da HQ é de redenção pela ação coletiva e pela organização. Como diz o próprio Oesterheld, “o verdadeiro herói de O Eternauta é coletivo. A história reflete, assim, ainda que sem intenção prévia, meu sentimento íntimo: o único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o herói individual, nunca o herói solitário”.
Juan Salvo antecipa futuro de Oesterheld
O viajante do tempo, Juan Salvo, o Eternauta, narra a Oesterheld a catástrofe da nevasca letal que ocorreria num futuro próximo. Sem Oesterheld saber, a trajetória de seu personagem antecipava seu próprio futuro.
Não casualmente, as várias versões de O Eternauta saíram em tempos de regimes ditatoriais na Argentina. A história original foi publicada a seguir do golpe de setembro de 1955. Uma versão reduzida da saga saiu pela Revista Gente em 1969, com o genial ilustrador uruguaio Alberto Breccia nos desenhos (com edição no Brasil pela Comic Zone). Os capítulos foram reduzidos e compactados para que a série fosse encerrada mais rapidamente graças às pressões da ditadura instalada no país no golpe de 1966, mas também, é bom que se diga, pelo teor da obra e pela ousadia visual de Breccia, que desagradavam os leitores. O que não é de se admirar, visto que esta versão foi publicada num semanário chamado Gente, muito parecido com revistas como, por exemplo, Caras. Não havia sintonia entre autores e público.
Este reboot de O Eternauta tinha um tom muito mais explicitamente político do que a obra original. Nesta época, Oesterheld e Breccia vinham da produção de obras abertamente engajadas como as biografias em quadrinhos de Che Guevara (com edição brasileira pela Conrad) e de Evita Perón. Em 1973, ele publicaria, persistindo nesta linha, 450 Anos de Guerra Contra o Imperialismo.
Acompanhando suas filhas e seus genros, Oesterheld, desde então, começou a colaborar clandestinamente com a esquerda peronista, especialmente com a organização dos Motoneros.
Uma última encarnação da HQ começou a sair em 1976, uma continuação intitulada O Eternauta II (também chamada de Segunda Parte), já sob a ditadura instalada naquele ano. A publicação foi interrompida abruptamente e os últimos capítulos foram editados com Oesterheld na clandestinidade. O Eternauta II estava ambientado numa Argentina do futuro sob um Estado ditatorial. Esta sequência tem sua publicação prevista no Brasil para agosto deste ano, também pela Pipoca e Nanquim.
Em 1977, suas filhas, Diana (23), Beatriz (19), Estela (25) e Marina (18), foram presas, assim como seus maridos, todos ligados aos Motoneros e logo incluídos entre os desaparecidos. Oesterheld chegou a mover uma campanha internacional pelo aparecimento com vida de seus familiares, que não foi adiante porque ele mesmo desapareceu, depois de preso pelas forças da repressão. As últimas notícias de Oesterheld vivo são de dezembro de 1977 ou janeiro de 1978. Depois disso, ele também foi considerado desaparecido.
O Eternauta vive
A tragédia da repressão política da ditadura argentina, que matou ao menos 30 mil pessoas em 6 anos, tragou Oesterheld, suas filhas e genros.
Contudo, sua mensagem segue influenciando as novas gerações que combatem na Argentina contra o imperialismo e pelo socialismo, inclusive nos movimentos recentes contra o governo de extrema-direita de Milei.
Tornou-se uma tradição a presença do Eternauta em faixas e cartazes nas manifestações populares na Argentina, especialmente em Buenos Aires, cidade que é um personagem importante na famosa saga de Oesterheld e Lopez. A figura do Eternauta, eternizada nos traços de Solano Lopez e Breccia, surge a cada momento das mobilizações e está espalhada por toda a capital em grandes grafites pela cidade.
As novas edições das várias fases de O Eternauta e a exibição de sua adaptação cinematográfica (uma segunda temporada está a caminho) devem fortalecer esta perenidade da obra.
Desaparecido e assassinado em 1977 ou 1978, Oesterheld e sua obra estão bem vivos na consciência dos que lutam na Argentina. Sua obra máxima se conta entre os grandes clássicos não só dos quadrinhos, mas da literatura de ficção científica em geral.
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