Negritude na tela
Kasa Branca acompanha a saga cotidiana de jovens da Baixada Fluminense. É um “romance de formação”, mas atravessado por um contexto social muito concreto: a violência, os perrengues, a cultura afro… Uma história sobre a periferia contada por ela mesma…
Publicado 30/01/2025 às 16:22
Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS
Na enxurrada de lançamentos importantes desta época pré-Oscar, duas pérolas que entram em cartaz nesta quinta-feira não devem passar batidas: o drama brasileiro Kasa Branca, de Luciano Vidigal, e o documentário franco-belga Trilha sonora para um golpe de estado, de Johan Grimonprez. O primeiro ganhou uma porção de prêmios no Festival do Rio e o segundo está indicado para o Oscar de documentário. Vamos a eles.
Kasa Branca faz parte de um vasto movimento de conquista dos meios de produção cinematográfica por realizadores e equipes oriundos das periferias, retratadas até há pouco tempo quase exclusivamente por cineastas brancos “do asfalto”. Nesse processo, um marco incontornável foi a produção coletiva Cinco vezes favela – Agora por nós mesmos (2010), que teve um dos segmentos dirigido por Luciano Vidigal, diretor, ator e roteirista negro nascido e criado no morro do Vidigal, no Rio.
Mas Kasa Branca vai muito além do valor meramente sociológico, impondo-se como obra artística plena e fecunda. Conta-se ali a saga cotidiana de um punhado de jovens de um bairro da Baixada Fluminense. No centro deles está Dé (Big Jaum), que cuida com uma doçura infinita da avó, dona Almerinda (Teca Pereira), presa a uma cadeira de rodas, aparentemente vítima de Alzheimer.
Complexidade humana
Unidos por uma amizade solidária, cada um desses garotos e garotas é visto em sua individualidade, com suas pulsões sexuais, seus talentos artísticos, suas agruras, seu humor. Não são tipos sociais, são pessoas, plenas de carências, falhas e contradições. Um dos encantos do filme é retratar com delicadeza essa complexidade humana, como por exemplo na maneira como mostra o desejo silencioso de Dé pela mãe jovem e bela (Roberta Rodrigues) de um amigo.
É, como já se notou, um filme de turma, um “romance de formação” à maneira de Conta comigo e tantos outros dramas ou comédias de adolescentes, mas atravessado por uma situação social e cultural muito concreta: as dificuldades materiais, a violência policial, o jeitinho, o aluguel atrasado, a música pulsante, a herança cultural africana, o trem de subúrbio.
O trem, aliás, signo de movimento e do tempo que corre, está presente desde a primeira imagem e pontua o filme todo. Numa bela cena recorrente, Dé leva a avó até uma passarela sobre os trilhos da Central para que ela aprecie o movimento dos trens.
Merece destaque o modo como Kasa Branca se apropria de clichês do drama convencional e, antropofagicamente, recria-os à sua maneira, como na sequência em que os amigos invadem um parque de diversões para levar dona Almerinda a uma roda-gigante. Amor e humor se conjugam ali de maneira irresistível.
No elenco repleto de atores jovens e talentosos, os nomes mais conhecidos são os veteranos Babu Santana, ele próprio oriundo do grupo “Nós do morro”, e Otávio Müller. Numa época em que se celebra com razão o desempenho de Fernanda Montenegro em Ainda estou aqui, cabe exaltar a excepcional atuação de Teca Pereira como a paralisada e fragilizada dona Almerinda.
Jazz e descolonização
Trilha sonora para um golpe de estado é um documentário eletrizante que revela as conexões entre o jazz, o movimento negro norte-americano e o processo de libertação das nações africanas do jugo europeu, tendo como centro dramático o assassinato, em 1961, do revolucionário Patrice Lumumba, primeiro-ministro da então recém-emancipada República Democrática do Congo.
Numa colagem alucinante de imagens preciosas de arquivo, vemos desfilar os personagens e eventos decisivos daquele momento dramático que marcou o auge da Guerra Fria, com norte-americanos e soviéticos disputando o espólio dos países africanos que se libertavam de seus antigos colonizadores. Desfilam (e discursam) na tela figuras como o rei Baudoin da Bélgica, Eisenhower, Kruschev, Fidel Castro e, claro, Patrice Lumumba, desde então um símbolo da descolonização da África.
Mas o que torna original e envolvente esse apanhado histórico talvez um tanto frenético demais é o destaque dado a figuras do movimento negro norte-americano, com destaque para Malcolm X, e grandes artistas da música negra, como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Duke Ellington, Max Roach, John Coltrane, Ornette Coleman e, sobretudo, as combativas Abbey Lincoln, Nina Simone e a sul-africana Miriam Makeba.
O ápice dessa intersecção entre arte e geopolítica se dá na espetacular invasão da assembleia da ONU em 1961 por um grupo de ativistas negros norte-americanos, com a participação da cantora Abbey Lincoln e da escritora Maya Angelou, em protesto contra a cumplicidade dos EUA e da ONU no assassinato de Lumumba. Tudo isso sob a trilha sonora do mais sublime jazz afro-americano.