Na corda bamba entre o desejo e a realidade

Breve crônica sobre o pensamento de Kant, Hume e Susan Neiman acerca das escolhas morais. A necessidade de conviver em meio de injustiças e misérias permite abandonar desejos e horizontes coletivos? É fértil a crítica que não propõe outra forma de ser?

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Amaríamos viver de acordo com o que pensamos, mas amiúde teríamos vergonha de pensar como vivemos. Sabemos muito bem o que devemos pensar de acordo com o nosso círculo social e cultural, mesmo se tantas vezes a nossa ação não se ajusta a essas ideias. E, não entanto, não é verdade que sobre uma mesma questão podemos admitir mais de um ponto de vista como nosso? Há momentos em que não precisamos nos colocar no lugar do outro para ganhar uma nova perspectiva. Dentro de nós podem coexistir opiniões complementares e, com nuances, até contraditórias sobre temas concretos. A realidade é mista e nem sempre precisamos decidir entre ideias opostas, de modo que tomar consciência do próprio pensamento envolve admitir e levar em consideração que por vezes agimos e fazemos a partir de uma visão das coisas diferente daquela que nos tranquiliza declarar em público.

Andamos na corda bamba, fazendo equilíbrios entre realismo e idealismo para tentar viver com um mínimo decente de coerência possível. Sem dúvida, viver em paz consigo mesmo é um elemento crucial para a felicidade, entendendo por felicidade não uma receita pronta de pensamento mágico, mas como defendia Immanuel Kant, uma das aspirações legítimas da razão. Esse funambulismo a que, queiramos ou não, a vida nos submete às vezes aparece na conversa depois da sobremesa e então alguém com sono declara que uma coisa é o que é e outra como gostaríamos que fosse, esquece e começa a cochilar…

O problema, porém, disse o escocês David Hume no século XVIII, é que do ser não se pode deduzir o dever ser e, segundo esse filósofo, quem o faz cai no poço do que em filosofia é conhecido como falácia naturalista. Para Hume, o que é, simplesmente é, e tudo o que tem a ver com o que gostaríamos que fosse nada mais é do que uma manifestação de nossas boas intenções, desejos e anseios. Ele não viu nenhuma ordem lógica entre uma coisa e outra. Tudo bem. Porém, pouco depois chegaria Kant para sentenciar que a lógica é apenas a conquista mais básica das nossas faculdades psíquicas e intelectuais.

Kant, em sua Crítica da razão pura, divide nossa mente em três funções. Por meio da sensibilidade, recebemos os dados que nos chegam do mundo exterior, filtrados pelo espaço e pelo tempo. O entendimento processa esses dados e por meio dos seus conceitos e categorias é a função que nos permite conhecer e saber que uma mesa é uma mesa e não apenas uma superfície com quatro patas. Por fim, a razão é a faculdade que nos permite pensar sobre aquilo que recebemos através da sensibilidade e conhecido graças ao entendimento. Portanto, é graças à razão que podemos pôr em questão o que existe, e é ela principalmente – de braço dado com a imaginação, os sentimentos e as paixões, aos quais Kant não era indiferente – a que nos permite pensar que o mundo poderia ser diferente e nossa vida pessoal também. Como diz Susan Neiman, “o que nos leva a condenar partes da realidade não é uma inclinação infantil para sonhar acordados, mas a primeira lei da própria razão. O princípio da razão suficiente nada mais é do que a exigência de que o mundo faça sentido.”

Desculpem o itálico irônico acima, que é só meu, mas Kant sempre acaba nos lembrando que o ceticismo é um passo necessário para forçar o dogmático a desenvolver uma crítica construtiva, e não um lugar para ficar e viver. Nada a dizer sobre o incômodo que o dogmatismo causa, mas que a crítica sempre deva apresentar alternativas, como se não fosse o suficientemente digna em si mesma, é algo que ainda não consegui digerir. Não ter soluções alternativas à mão não é uma boa razão para deixar de fazer a crítica argumentada a qualquer situação que você saiba ser injusta. Seria como pedir um silêncio que em muitos casos não nos podemos permitir.

Portanto, se a sensibilidade e o entendimento nos informam sobre a situação, a razão é quem vai e pergunta: por quê? E esse questionamento da razão se aplica igualmente à ciência e à moralidade, ao direito e à justiça social. Se o Hegel maduro, deixando escapar grande parte de seu impulso revolucionário inicial, escreveu que a filosofia consistia em defender a realidade contra seus detratores, Kant teve sempre claro que o real não é racional e que, justamente, a tarefa confiada à razão é nos ajudar a nunca perdê-lo de vista. É por isso que, como a mesma Susan Neiman argumenta em Why grow up? (Por que crescer?, 2014, sem tradução), Kant acreditava que virar gente, amadurecer, é mais uma questão de coragem do que de conhecimento.

Com todas as contradições que se possam encontrar na sua filosofia (a grandes filósofos, grandes contradições), para Kant, que levou o Iluminismo ao seu auge, permanecer na adolescência, não sair da menoridade é, talvez contraintuitivamente, deixar de expressar a nossa indignação, mas também a nossa esperança, por medo de sermos taxados de infantis, e não o contrário, não a resignação, esse conformismo com o que está à disposição, que é o que acabamos por acreditar ser próprio da idade adulta.

Estamos novamente sobre a corda bamba, fazendo equilíbrios entre o realismo e o idealismo, olhando à nossa direita a vida e o mundo que nos cerca, e à nossa esquerda como eles deveriam ser segundo o nosso critério e o nosso desejo, sabendo que as coisas nunca serão como gostaríamos que fossem, mas sem abrir mão dos horizontes inatingíveis que têm a virtude de nos levantar para continuar andando.

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