Mário e Silviano: proseando no entre-lugar

É no conflito com a sociedade brasileira – inaceitável e reiterativa – que as obras de Mário de Andrade e Silviano Santiago ganham forma: realizada e utópica. Ao fazer do puxar-conversa um método, ambos mostraram-se mestres da deseducação, perigosíssimos como Sócrates

.

Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título “Glossário Silviano Santiago | Mário de Andrade”. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

Mário de Andrade em Silviano Santiago é todo um mundo, como o modernista paulista que se fez brasileiro gostava de falar de Bach. É inspiração, é perturbação, é tema de crítica, é mediação cultural, é personagem de ficção e de autoficção. É também um dispositivo de irritação que incide sobre a autopoiese da comunicação, afetando e alterando o eu e o outro em diferentes níveis narrativos. Em Histórias mal contadas, de 2005, por exemplo, Mário de Andrade e a sua célebre conferência “O movimento modernista”, proferida no Rio de Janeiro em 1942, são objetos do conto “Caíram as fichas”. A conferência é importante para o intento desse pequeno ensaio que se inicia, mais ainda porque justamente a elaboração dela tenha sido o alvo da atenção do pesquisador e do ficcionista Silviano, misturados numa flecha só. Voltarei a ela.

Silviano Santiago é conhecido por elevar a níveis inauditos a prática de ficcionalizar escritores da literatura brasileira, como fez Em liberdade, de 1981, com Graciliano Ramos (ver o verbete Graciliano Ramos, por Rodrigo Jorge Neves neste Glossário Silviano Santiago), e Machado, de 2016, com o Bruxo do Cosme Velho (ver Machado de Assis, por Mónica González García); além de autores estrangeiros como Eça de Queiroz ou André Gide, este último tema de sua tese de doutorado, além de contos (ver Infidelidade, por raúl rodríguez freire). Mário de Andrade, porém, apesar do conto “Caíram as fichas”, ainda não ganhou essa atenção tão elaborada do mineiro de Formiga, cidadão do mundo e morador do Rio de Janeiro. Mas, importante, Mário tem estado sempre mais difuso no exercício dessa prática de Silviano. E isso é bastante importante. Muitos são, portanto, os vezos a se explorar nessa comunicação deliberada de Silviano com Mário de Andrade.

Eu já ensaiei um caminho que encontra o modernismo entre os autores. Outro vezo explorado foi o do cosmopolitismo programático potencial da cultura brasileira que os liga. Volto-me, porém, a um gesto – corpóreo na escrita – que Silviano vem chamando mais recentemente de “hospedagem”. Uma espécie de aperfeiçoamento da obsessiva prática de ficcionalização de seus confrades escritores, e, diria mais ainda, uma prática de si que reforça o descentramento analítico e expressivo que Silviano vem talhando em sua escrita como abertura do eu e do nós ao entre-lugar – quase como uma voluta barroca, aleijadinhadamente.

* * *

Poucas vezes um título será tão ou mais feliz (preciso) na comunicação da matéria tratada e dos argumentos desenvolvidos do que Ora (direis) puxar conversa!, de Silviano Santiago. Publicado em 1997, o ensaio sobre Mário de Andrade e o modernismo acabou por dar título à coletânea em que foi recolhido, em 2006, pela Editora UFMG.

“Hospedado” nos versos imortalizados de “Via-Láctea”, de 1888, de Olavo Bilac, o príncipe dos poetas parnasianos brasileiros, “Ora (direis) ouvir estrelas!”, o título de Silviano condensa todo o programa crítico e estético modernista e sua proposta de rotação da cultura brasileira. “Ouvir estrelas” é um princípio esotérico que diz respeito a uma sensibilidade cultivada, depende de uma iniciação especial e não está aberta a todos. “Puxar conversa”, por sua vez, é radicalmente democrático. Envolve a dialogia e implica em alguma igualdade para e na interlocução, igualmente numa politização da identidade porque marcada pela alteridade. Algo entre o “lugar de escuta” e o “lugar de fala”. Uma figuração do entre-lugar, essa espécie de moto-contínuo na obra, crítica e literária, de Silviano Santiago (ver Entre-lugar, por Wander Melo Miranda).

Aproximação ao prosaico

A poesia constituiu uma das principais arenas da luta modernista. O verso livre foi o instrumento fundamental de reação e enfrentamento da então hegemonia parnasiana, de suas correspondentes concepções de versificação formal rígida e de um temário poético pretensamente erudito, predefinido e afastado dos aspectos mais prosaicos da vida e do cotidiano. Não existe, hoje, nenhuma controvérsia significativa a esse respeito na crítica especializada. Como o verso livre não foi uma invenção brasileira, por certo, o sentido por ele assumido no modernismo joga ainda água na fervura dos debates sobre cópia e diferença na cultura brasileira (ver Forma-prisão, por Diana Klinger).

Como “movimento cultural”, tal como propomos eu e Maurício Hoelz no livro, aliás, dedicado a Silviano (e também a Elide Rugai Bastos e Heloisa Buarque de Hollanda), os próprios protagonistas do modernismo precisaram se ocupar desde sempre da construção de sentido para suas ações coletivas e realizações artísticas e culturais, além da produção da própria memória do movimento e do seu legado para a sociedade brasileira como um todo (Botelho & Holez, 2022). Até porque eles pretenderam operar uma ruptura com o que entendiam ser a cultura brasileira e reorientar não apenas seu significado histórico, a inteligibilidade do que afirmavam como “novo”/“moderno” e “velho”/“atrasado”, mas os seus rumos em curto, médio e longo durações na sociedade.

Estamos diante de um conflito mais amplo entre ideais de cultura e educação. Foi exatamente isso que Karl Man­nheim (1974) designou de “de­mocratização da cultura”. Segundo o sociólogo húngaro, a sociedade moderna estaria marcada pelo conflito entre dois ideais culturais e educacionais: de um lado, o ideal “humanista” próprio aos grupos aristocráticos; de outro, o da “especialização voca­cio­nal” próprio aos ­grupos burgueses. Mannheim parte do pressuposto de que a “demo­cr­acia” no mundo moderno se ca­rac­terizaria não pela ausência de estratos elitistas, mas por um novo modo de seleção e ­autointerpretação das elites. Daí que democratização seja, então, “a perda de homo­ge­neidade na elite governante”; e que a democracia não constitua necessariamente um “veículo de tendências racionalizadoras” da sociedade.

Os ideais culturais humanistas e de especialização vocacio­nal conformariam “mentalidades” ou “estilos de pensamento” não apenas diferentes, mas propriamente antitéticos. ­Baseados em modelos estáticos e hierarquicamente ordenados, os ­grupos aristocráticos tenderiam a desenvolver a “mentalidade autoritá­ria” marcada pela ausência das ideias de “processo” e de “gê­nese”; a “mentalidade democrática”, ao contrário, estaria mais inclinada a explicar os fenômenos em termos de “contingências”, antes que de “essência”. Ao relacionar as diferenças manifestas com os fatores do ambiente social, a “mentalidade democrática” acabaria comprometendo a própria ideia das diferenças essenciais entre os homens – base da “mentalidade aristocrática”.

O processo de aquisição de cultura no tipo democrático, ao contrário do ideal humanista, se desenvolveria então organi­camente ligado à experiência diária. O ideal cultural e educacional democrático não visaria, assim, tornar as pessoas mais cultas. Mas, a partir do contato intelectual, estético etc. do indivíduo com o contexto social circunjacente, ampliar a experiência diária, objetiva, inclusive permitindo uma aproximação mais clara de sua posição no processo social. Mannheim tem em vista a possibilidade de esse indivíduo controlar melhor sua situação e, assim, alargar suas perspectivas no processo histórico.

Silviano, Mário

O modernismo constitui uma mediação reflexiva importante para a interpretação original e cosmopolita que Silviano Santiago vem desenvolvendo sobre o Brasil e também sobre questões gerais e perenes a partir dele. E ainda mais próximo de Mário de Andrade do que do de Oswald de Andrade, como algumas vezes se tem dito quando se aproxima Silviano do pensamento pós-colonial e este da antropofagia. Basta lembrar de um dos primeiros livros de Silviano, O banquete, de 1970, oferecido como cardápio de um festim aparentemente antropofágico, no qual, de acordo com o autor, “os verdadeiros banqueteadores são o autor e o leitor. E, sendo esperto o leitor, é ele que acaba traçando o romancista”. Mas ainda aqui temos que lembrar, em contrapartida, do livro derradeiro de Mário, O Banquete, que escrevia quando a indesejada das gentes o surpreendeu, na dança da morte. Por certo, Silviano tem grande interesse por Oswald. O ponto aqui não é esse. É outro. Não vejo no conceito de “entre-lugar”, e nas análises que vem ensejando e permitindo ao longo de mais de cinquenta anos, aquela busca de sínteses da qual, afinal de contas, a antropofagia não consegue escapar em seu movimento de deglutição do legado europeu desde uma realidade local. Nesta acepção oswaldiana, o modernismo corrobora, talvez, a tese segundo a qual a vida cultural brasileira oscilaria recorrentemente entre tendências de localismo e de cosmopolitismo, formulada por Antonio Candido.

O caso de Silviano Santiago é outro. O “entre-lugar” não é, por assim dizer, nem da ordem da dualidade, nem da síntese. É antes da (des)ordem do contingente, do inacabado e do aberto tão cara a Mário de Andrade, tanto em suas realizações públicas quanto em seu pensamento. Mário não gostava de sínteses. Manifestou explicitamente sua incompatibilidade pessoal com a lógica sintética, chegando a criticá-la explicitamente. Os significados heurísticos mais importantes de Mário de Andrade estão ligados à sua perspectiva aberta e não sintética, na qual também se pode encontrar aquele pendor para o diálogo valorizado no “pensamento como percurso e não como ponto de chegada”, como observou tão bem sua prima Gilda de Mello e Souza (2003). Significados heurísticos em grande medida perdidos na crítica historicista e triunfalista do modernismo. E igualmente em sua crítica, especialmente populista, nas recentes comemorações do Centenário da Semana de Arte Moderna.

Na acepção de Mário/Silviano desfaz-se, portanto, a ideia de um movimento pendular simples que ora separa e ora aproxima localismo e cosmopolitismo, quase sempre em busca vã de uma síntese. O decisivo em Mário de Andrade e também em Silviano Santiago é antes o movimento de desconstrução da “dualidade”, ou do “sentimento dos contrários”, como já foi influentemente interpretado por Paulo Arantes (1992), que vem estruturando, em grande medida, a compreensão da vida cultural brasileira.

Não se trata, porém, de emulação do mais velho pelo mais jovem, mas, fundamentalmente, do compartilhamento daquela postura socrática comum aberta ao outro. Aqui se encontra, talvez, a afinidade eletiva mais significativa entre o pensamento crítico e a estética de Silviano Santiago e o de Mário de Andrade, cujo inacabamento e movimento em aberto lhe exigiu nada menos do que a invenção de um verbo, engraçado, por certo, mas nada ingênuo: “pensamentear”. Formas de se colocar na diferença, tanto o conceito de “entre-lugar” nos ajuda a pensar a partir da diferença, quanto o de “pensamentear” junto com o diferente. Não é fortuito, então, que Mário de Andrade valorize tanto o andamento e o processo inventivo de improvisação, que frequentemente ocorre em diálogos e duelos cantados conhecidos como “desafios”, como faz na série de artigos sobre a vida de Chico Antônio, o cantador de cocos nordestino que se encantou e tanto encantou o modernista paulista – o músico deu a Mário o seu ganzá, e para a sua grande obra planejada e jamais realizada, claro, Mário escolheu o título de Na pancada do ganzá! O “desafio” parece encerrar esse sentido de abertura e inacabamento também de um pensamento que se move ambiguamente na contingência e que exige, para se completar, a participação ativa e constante do outro – no caso de Silviano Santiago, claramente, do público leitor.

É uma comunicação, portanto, avessa aos pressupostos da intenção, categoria muito mobilizada na crítica e que fecha o circuito comunicativo no emissor ao colar texto e autor, como se um fosse a externalização dos processos psíquicos do outro. Silviano, ao contrário, puxando conversa, parece enfatizar a dimensão comunicativa que só se dá quando levamos em conta os três termos da relação: autor-texto-público. Assim, o significado de um texto só ganha evidência na relação, na conversa, no meio, no entre. Ou seja, um texto só é significativo quando se encontra e desafia os diversos textos que o leitor já traz consigo quando realiza uma leitura.

Não será por outro motivo, então, que Silviano tenha retomado a crítica de Mário de Andrade ao que, numa carta a um jovem Carlos Drummond de Andrade, batizou de “moléstia de Nabuco”, expressão máxima daquela dualidade, de pretensa (e limitada) matriz cosmopolita, ao afirmar que “o sentimento em nós é brasileiro, mas a imaginação europeia”, como aparece em Minha formação, de Joaquim Nabuco. No lugar da alternativa dualidade ou síntese, mais uma vez o que interessa a Silviano são os deslocamentos, os tensionamentos, desestabilizações das visões polarizadas e estáveis de literatura, de identidade, de sociedade. Silviano não gosta de polarizações (ver Semente, por Hugo Herrera Pardo).

E assim o é porque o escritor e o intelectual em contextos pós-coloniais situam-se nesse espaço complexo, entre a assimilação a um modelo original e a necessidade constante e incansável (e talvez inalcançável) de reescritura. A posição quase marginal leva a uma percepção desde as fronteiras – entre popular e erudito, local e universal etc. – e, por isso mesmo, conscientemente contingente e refratária a essencialismos. E foi justamente estudando a correspondência de Mário e Drummond, que Silviano notou certas “precariedade” e “incompletude” implicadas no diálogo epistolar para pensar a modelagem das subjetividades dos missivistas, e que acabou lhe permitindo complexificar e ampliar a ideia de “escrita de si” de Michel Foucault. Tantos vezos ligam Silviano a Mário – seria bonito, me ocorre agora, explorar o queer que se esboça em 50 anos entre “Cabo Machado”, de 1926, e Stella Manhattan, de 1985. Mas já estou entreabrindo outra porta, porém.

Desconstrução Vs. Mimese

De que ordem intelectual, estética e política será, então, a relação entre o título do ensaio de Silviano Santiago sobre Mário de Andrade e os versos canônicos de Olavo Bilac? Já sabemos o que está em jogo em termos programáticos na “passagem” de “Ora direis ouvir estrelas” para “Ora direis puxar conversa”, mas o que ela, a “passagem” ou, ainda melhor, o “deslocamento”, nos diz sobre o projeto teórico próprio de Silviano?

O “deslocamento” não é da ordem da mimese. Não se trata de emulação. É antes uma repetição. Repetição como condição da diferença. É esse aparente paradoxo que fere de morte a mimese e sua capilaridade na crítica brasileira que personifica o projeto de Silviano. E ele encontra novos desdobramentos na ideia de “hospedagem” que o autor desenvolveu mais sistematicamente em Fisiologia da composição (2020). Trata-se de uma reflexão densa sobre a importância do corpo na relação homológica entre “grafia-de-vida” e “composição literária”. O verbo “hospedar”, tomado por Silviano de textos variados – da ficção machadiana de Esaú e Jacó a Da hospitalidade, de Jacques Derrida, ou de João Cabral de Mello Neto ao ensaio homônimo de Edgar Allan Poe – permite a Silviano realizar uma espécie de autopoiese em relação ao percurso da sua obra realizada até o momento, projetando-a contra novos limites e ampliando o seu campo e alcances próprios e impróprios.

Em Fisiologia da composição, a reescritura parece agregar os diferentes textos escritos ao longo do tempo conforme um critério de inclusão ou exclusão voltado para “dentro” – um acerto de contas. O movimento autopoiético do livro como que se fecha para o exterior. Nele, homologias são traçadas impondo deslocamentos sucessivos entre “grafia-de-vida” (e não mais “autobiografia”) do autor e “composição do texto” (e não mais o texto como “objeto”) (ver Grafias de vida, por Florencia Garramuño).

A obra de Silviano Santiago está inteira na questão da repetição com diferença, (ver Diferença e repetição, por Andre Bittencourt), como também venho insistindo. Nela, teoria e ação só existem em referência a uma ontologia da diferença e da relação, que se contrapõe a outras de caráter sintético e substancialista. “Hospedagem” vem modificar esse espaço complexo, entre a assimilação a um modelo original e a necessidade incansável de reescritura. Acrescenta, adensa e afeta o que sabíamos até aqui sobre a obra de Silviano a partir das categorias “entre-lugar” (como contraposição às diferentes sínteses entre “original” e “cópia”), “inserção” (em contraposição à “formação”) e “cosmopolitismo”(em contraposição ao autocentramento eurocêntrico) (ver Inserção, por Maurício Hoelz).

Caem as fichas

Em seu discurso de agradecimento ao receber, no dia 14 de novembro de 2023, no Rio de Janeiro, o Prêmio Camões, a mais alta distinção da literatura em língua portuguesa, Silviano Santiago revê os desafios intelectuais, estéticos e políticos que assumiu com sua obra. Entende-a também como parte de uma tarefa geracional e de processo mais amplo de democratização da cultura, cuja literatura, no “agora” de 2023, já encontraria novas e novos autoras e autores e novos regimes de autorias mais representativos das diferenças e desigualdade do mundo lusófono pós-colonial.

Diz Silviano ao fim do discurso:

Lanço os olhos para a infinita imensidade desse agora que vivo e vivemos e dedico o Prêmio Camões a Mário de Andrade, meu mestre.

Em 1942, proibido pelo Estado Novo de falar no auditório do Itamaraty, Mário lê, na Casa do Estudante do Brasil, o seu sofrido testamento sobre o legado do Modernismo brasileiro. Ao final, a reflexão ensaística do mestre se torna pessoal e se exprime por palavras que roubo no momento em que agradeço a presença ilustre de todas e de todos neste auditório. Repito as palavras de Mário de Andrade:

‘E se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz’.

Muito obrigado. (Santiago, 2023, s.p.)

Bonito gesto o de agradecer com uma dedicatória. É mais uma manifestação da ética da relação que move Silviano (e Mário). Terá Silviano projetado sua dedicatória ao recriar ficcionalmente a circunstância de Mário e a cena de escrita da citada conferência no conto de Histórias mal contadas? Ou será que as fichas caíram no momento em que, em seu apartamento da Avenida Copacabana no Rio de Janeiro, Silviano escrevia seu discurso de agradecimento? Seja como for, ao dedicar o Prêmio Camões a Mário de Andrade, a quem chama, enfim, de “meu mestre”, Silviano repete, suplementa e recria o próprio gesto do modernista paulista, na citada conferência da Casa do Estudante do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1942. Anote-se, Rio de Janeiro, cidade metrópole do mundo colonial, recebendo o paulista e o mineiro, este em consagração definitiva nas letras daquilo que um pernambucano chamava de “o mundo que o português criou”. Está certo que a avaliação de Mário de Andrade é bastante crítica do modernismo e da contribuição de sua geração à cultura brasileira. Há quem aponte o pessimismo como a chave de sua conferência. Mas seria preciso acrescentar ao menos, penso eu, que o seu pessimismo é claramente de ordem nietzschiana: ele demonstra consciência de que as tarefas de uma geração não se encerram com ela.

Com a ironia habitual, mas rara no texto melancólico de 1942, Mário se irmana com José de Alencar na tarefa central em seu programa estético e político de forjar uma língua literária brasileira. Mas, vejam, ele não olha para o passado; hospeda-se a si mesmo e ao velho mestre romântico num futuro em aberto: “Mas isso decerto ficará para outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão”.

Ao repetir o gesto da irmandade, Silviano Santiago aposta, mais uma vez, no tempo em aberto que liga Mário a Alencar e a ele, Silviano, a Mário. Mas Silviano já viveu mais para poder radicalizar, diferente do que pôde Mário, a ideia de que o tempo da irmandade não é linear ou cumulativo simplesmente. Assim, até Alencar pode-se ligar a Silviano, nessa ordem. Já não se trata de um autoaperfeiçoamento da literatura como, de certa forma, promete o paradigma da “formação”/“Bildung”. Antes, a própria noção de “literário” é que muda e corre riscos como, por exemplo, em sua acepção eurocêntrica, cada vez mais e melhor questionada, quando novos atores não apenas entram em cena, mas se tornam autores. Se problemas estéticos são legados de uma geração para outra, se e quando assumidos por novas gerações, suas reformulações e impasses também dependem da relação entre cultura e política em cada momento. Assim, “momentos” não são simplesmente “decisivos” funcionalmente, como havíamos aprendido no clássico de Antonio Candido. Eles são bons mesmo é para serem desconstruídos (ver Desconstrução, por Max Hidalgo Nácher).

Somos sujeitos dos nossos tempos históricos lançados ao fluxo de forças contrapostas entre a subjetividade individual e a objetividade da vida social que delimita possibilidades e a própria liberdade do indivíduo (ver Pós-moderno, por Denilson Lopes). É no conflito com a sociedade brasileira inaceitável, resistente e reiterativa, e com todo um mundo contra o qual ele se opõe, que as obras de Mário de Andrade e de Silviano Santiago ganham forma, realizada e utópica. Afinal, Silviano e Mário são mestres da deseducação, perigosíssimos como Sócrates, que também gostava de puxar conversa. Deseducar, desnaturalizar, desconstruir. Afirmação rebelde, vital e erótica da vida e da literatura contra os ideais persistentes de “unidade” e “pureza” (ver Impureza, por Daniel Link). Mário lutou para deseducar a juventude modernista do “mal de Nabuco”; Silviano, abriu-nos a compreensão do “entre-lugar”, em movimento permanente e, a partir dele, o de uma nova maneira de relacionamento entre o eu e o outro. Puxar-conversa é sua ética. Mais do que uma forma de comunicação, uma forma de pôr e de se pôr em comunicação. Essa obsessão rousseauniana tão improvável quanto incontornável e da qual a literatura participa reflexivamente na sociedade. Mário de Andrade em Silviano Santiago, Silviano Santiago em Mário de Andrade seguem como gestos políticos e estéticos potentes do contemporâneo, inclusive, para correntes literárias autocentradas, que confundem a ânsia de se fazer ouvir com diálogo.

* * *

Para o Silviano em seu aniversário de 89 anos, em meu nome e no da turma do Glossário Silviano Santiago


Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de & ANDRADE, Mário. (2002). Carlos & Máriocorrespondência completa. Prefácio e notas de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi.

ARANTES, Paulo. (1992). Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira. São Paulo: Paz e Terra.

BOTELHO, André & HOELZ, Maurício. (2022). O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado. Petrópolis: Vozes.

MANNHEIN, Karl. (1974). A democratização da cultura. In: Sociologia da cultura. São Paulo: Editora Perspectiva, p. 114-208.

MELLO E SOUZA, Gilda. (2003). O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34.

SANTIAGO, Silviano. (1970). O Banquete. Rio de Janeiro: Editora Saga.

SANTIAGO, Silviano. (2005). Histórias mal contadas: contos. Rio de Janeiro: Rocco.

SANTIAGO, Silviano. (2006). Ora (direis) Puxar Conversa!. Belo Horizonte: Editora UFMG.

SANTIAGO, Silviano. (2020). Fisiologia da composição. Recife: Companhia Editoria de Pernambuco.

SANTIAGO, Silviano. (2023). Discurso ao receber o Prêmio Camões. Blog da Bibliotexa Virtual do Pensamento Social. Post de 15 nov. 2023. Disponível aqui.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *