Literatura: “Os espíritos os olham aflitos”

As cinzas de um homem brutal atiradas ao lixo. A misteriosa Maria dos Pacotes com suas trouxas às costas. Um suicídio não correspondido… Seis contos curtos e densos, com sucesso numa queixa do autor: “dá um duro danado pro texto ficar com cara de falado”

.

Curadoria e seleção: Tercio Redondo

Mario Rui Feliciani, Jundiaí, SP, outubro de 1959, publicou os livros “Dobras” e “Histórias de amor e nem tanto”, contos; “O cheiro da uvaia no capim – nas manhãs de setembro” e “Cordão sem ponta”, contos curtos, fragmentos e crônicas. Teve textos publicados em algumas revistas literárias.

No esforço de divulgar elementos de cidadania e direito constitucional, publicou “O jogo das combinações – quando o país joga junto” e “Olhos de liberdade – uma proposta para a leitura da Constituição brasileira”, respectivamente infantil e infantojuvenil.

Na fotografia, realizou as exposições “Quando o carteiro chegar”, “Telas casuais”, “Uma casa e uns outros cantos” e “…e um pouco das pessoas”. Elaborou com suas fotos diversas capas de livros de sua autoria e de outros autores. Publicou os livros “Quando o carteiro chegar”, em papel, extraído da exposição de mesmo nome; “Capturas” e “São Paulo vertical – frestas”, digitais. Fotos esparsas foram publicadas em revistas e jornais.

Mais detalhes podem ser encontrados no site https://mruifotos.com/.


terça

O pai tinha sido um bruto. Trabalho braçal pesado, “soca”, pregava trilhos nos dormentes. Amiúde acordado de madrugada pra reparar trilho deslocado a 20 ou 30 quilômetros na direção de Campinas.

Ficou com ele e com a irmã, que já se foi. A mulher o abandonou e aos filhos, cansada das brutalidades. A irmã menina cuidou do pai, implacável nas exigências de habilidades que a pequena não tinha como possuir. Mais brutalidades.

Contra ele próprio muita violência gratuita. De passagem, lhe batia na cabeça, até mais se acompanhado de amigo. Pro amigo rir. Por nada. Porque podia.

Hoje, adulto, tentava compreender as razões do homem. Um corpo exaurido no trabalho, na dor dos ferimentos da marreta. Uma alma espancada pela vergonha de ser abandonado pela mulher que foi com outro.

Tentava compreender enquanto carregava a urna com as cinzas do velho. Só ele próprio esteve na cerimônia uma semana antes e agora tinha nas mãos a urna buscada. Tentava compreender tanta brutalidade.

Lembrou que era terça e calmamente foi à lixeira, abriu a urna, despejou as cinzas no saco preto, que amarrou e pôs na calçada, que era dia de coleta. Posicionou melhor o retrato da irmã sobre a mesa, de onde ela lhe sorria apesar de tudo. Mana.


lealdade

Foram décadas de amor e seus tropeços. Combinaram o suicídio juntos, primeiro ela, depois ele. Na velhice, mata-a. É preso antes de conseguir dar cabo de si. Desde então tem sido processado por “auxílio ao suicídio” e zelosamente impedido de se suicidar.


escolar

Caí por acaso no meio da visita de alunos de escola de qualidade, dessas cheias de mérito, a uma antiga fazenda de café. A arquitetura não importa pra eles nem pra mim. Muito triste.

Os espíritos dos escravizados estão em toda parte. Entre as paredes dos cômodos esquisitos em que serviram e na mata deslumbrante pra onde sonhavam fugir. 

Na fila do almoço, uma balbúrdia de meninos uniformizados. Os espíritos os olham aflitos: nem um negro.


Maria dos Pacotes

Naquela cidade era Maria dos Pacotes. Parece que há mulheres assim em muitas outras, com vários nomes.

Moradora de rua, nunca se soube onde passava as noites, se era no mesmo lugar, uma após a outra. Não devia ser. Não havia por quê, pois todas suas coisas iam em trouxas nela enganchadas. Trouxas penduradas em papel pardo, amarrado com barbante daqueles grossos e, depois do último nó, um laço grande, alça para um ou outro ombro, uma ou outra mão.

Muitas trouxas. Muito desconforto. Muito peso.

Passava e não olhava os moleques na esquina. Meninos rueiros, gritavam e debochavam da que nem ouvia ninguém.

E ninguém sabia quais as roupas ou detalhes femininos iam naqueles embrulhos.

Um dia um menino disse que viu. Arrancou dela uma das trouxas, não disse se bateu na mulher, eram assim os meninos daquele tempo, mas contou que eram apenas trapos e papéis apertados, amarrotados, inúteis.

Não era nada, além do peso. Quem nada tem, pode andar livre das cargas, menos Maria dos Pacotes, que tinha que carregar seu fardo, no sol ou na chuva, por muitos quilômetros.

O que o menino não contou, pois não viu, é que sua crueldade de mostrar a ela os trapos durou muito pouco. Assim que ela os embalou e amarrou de novo, voltaram a ser rica seda a levar junto do corpo.


velando

Meu amigo morreu. Um com quem teimava muito.

Depois que se foi, andei cheio de dedos, sem dele discrepar. Agora estou discordando de novo, pois que senão a morte mata demais.


processo

A gente escreve, escreve, escreve, e depois dá um duro danado pro texto ficar com cara de falado.

Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *