Literatura: Desejo, sonho e perplexidade

No atual estágio de destruição do planeta, uma crônica de nossa desidentificação com a natureza

Arte: Denilson Baniwa e Coletivo Mahku

TRÊS DEVANEIOS

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Sempre que me perguntam que animal gostaria de ser, respondo panda, nunca barata. Não tenho nenhuma veleidade de sobrevivência em caso de catástrofes nucleares, guerras, esgotamento climático etc., embora tenha alguma ascendência sobre mim o rastejar. Panda é um tipo autodestrutivo de tão desengonçado, e eu acho que no projeto de me tornar outro animal eu teria, de algum modo, de ter um preparo prévio, alguma conexão com o que penso ser como pessoa, um aproveitamento dos meus limites. Nisso, o panda me convém mais por ser, na atrapalhação do próprio projeto que faz dele quase um erro, menos dessemelhante de mim. Uma vez sonhei que era um rio e a movimentação dos peixes, a quietude das pedras e o rumor das águas no meu íntimo eram motivos de prazer que só poderia aumentar com a chuva. Como eu pude me sentir um rio? Ficava, no sonho tentando entender. Até o momento em que começou a surgir, meio do nada, um interminável rebanho bovino que principiou a me pisotear o que supunha serem minhas as entranhas na calha do rio. Eu que antes era leveza, corrente e flutuação, passava a barragem, choque e gravidade. O barro do leito turvava a antiga transparência e eu era como um choro derramado, fonte e vazão, mas ainda assim em pé no sentimento, ao estranho modo dos baques de todo rio. Aquilo adiava meu natural apetite de mar, enquanto redesenhava minhas cicatrizes. Estive outrora planta. Não daquelas exóticas no meio da mata, deitadas na origem desde sempre e mantidas e protegidas pela densidade verdejante dos arredores. Via-me desde o espaço entre as folhagens e o tronco, nem tanto aéreo, nem menos telúrico, era uma aragem quase, e as gotas no que me pareciam meus membros evaporavam nas cadências da minha respiração de corpo inteiro. Alma de seiva, não podia sentir nenhum coração que não fosse também pulsação em cada célula e eu era todo fluxo e floema. Ao mesmo tempo acima e abaixo, à parte e integrado, consonante ao ancestral comportamento cósmico das partículas e ponto terminal em suma. Dizia a mim mesmo que seria porto, se precisasse ser imagem, que se fosse gesto, seria abraço, e que, afinal, se tivesse de ser outra coisa, jamais me ocorreria ser gente.

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