Jean-Claude Bernardet: O intelectual, o bastardo, o pária

Homenagem ao cineasta que foi usina criativa, viveu e fez o que pôde, como pôde. Recusou a institucionalidade de si próprio. Interessava-lhe o cinema que mobiliza – e não para legitimação alheia. Hoje, não descansa: segue crítico

Foto: Eduardo Knapp
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O texto a seguir, originalmente denominado O intelectual, o bastardo, o pária – sobre Jean-Claude Bernardet foi publicado no número 45 da revista Margem Esquerda, da Boitempo, parceira editorial de Outras Palavras. A edição completa pode ser adquirida aqui.

De perto

Jean-Claude era uma usina criativa. Viveu e fez o que pôde, como pôde.

Acontece que agora ele está morto. É duro aceitar, mas acabou.

Ele sempre lidou com a finitude melhor que eu. Talvez por isso, como um bailarino minimalista de poucos e enérgicos gestos, ele tenha dançado com a morte e imposto a ela o seu próprio ritmo.

Quando ele disse publicamente em televisão e jornal que não faria o tratamento quimioterápico, eu liguei dando um pito. Eu, tonto, disse que ele ia morrer. Ele respondeu: “Que novidade, você sabe que você também vai?”. E completou, me consolando: “Disso não morrerei”. E não morreu.

Os obituários, inclusive o do Jornal Nacional, com aqueles âncoras de voz metálica, falaram do que ele fez, mas a gente sabe que foi muito mais. O “legado” dele próprio não o interessava muito, pois o risco era fazer um monumento e congelar o passado em detrimento do futuro. Isso não quer dizer que ele rejeitava sua obra pregressa, mas achava que a institucionalização da aventura crítica era uma espécie de embalsamamento político.

Sempre foi assim. Entrava numa onda teórica e a abandonava em seguida. Teoria era ferramenta para o ensaísta, não o objeto em si. Entrar numa onda teórica era importante, pois nela era possível encontrar vetores notáveis para um diálogo com o seu tempo. Depois, queria experimentar diferente. Sociologia, semiótica, algo do pós-estruturalismo – mas o melhor dele mesmo era o que, nessas coisas, não eram essas coisas.

A lucidez e o desejo dele/nele eram, juntos, máquinas indestrutíveis que aferiam vitalidade a um corpo marcado pelo tempo e por enfermidades contra as quais lutou – com dor e alguma ironia – e pelas quais não foi derrotado. Era um escândalo esse corpo rebelde que, nos últimos anos, com a gradual perda da visão e da força física, se tornou um laboratório político em performance pública. Os livros, os filmes e os textos breves desses últimos anos são exemplares de um processo de recusa absoluta à institucionalização de si próprio. Ele renunciou ao lugar de sábio ancião respeitável, aquele que acumulara um conhecimento a ser transmitido como espólio às novas gerações. Depois de tudo o que construiu, aderir a isso seria como ser capturado e esfolado pela frivolidade intelectual de vocação oficial (burocrática, de gabinete). Seria até perdoável – porque coisa comum –, mas esse tipo de vaidade (a do poder e a da ilusão de perenidade do poder) nunca fez parte do seu temperamento, do seu estilo – e isso ele tinha muito.

A conversa/interlocução infinita que mantinha com seus/suas comparsas era o esforço em realizar uma obra descentrada do sujeito “eu”. E esses eram comparsas mesmo, pois tudo o que fez tinha algo de conspiração; atentavam contra o consolidado, o médio, o consenso. Seu horror à mediocridade – inclusive, à mediocridade ilustrada e “inteligente” – fez com que muitos, algumas bestas, vissem parte de suas últimas empreitadas com condescendência: “Olha o JcB dando uma moral pra garotada”. O lance dele era outro, não o de usar seu prestígio para legitimação alheia, e ele não estava preocupado em acertar, malandro.

Se Jean-Claude se identificava com a condição do cinema brasileiro muito mais do que a maior parte dos brasileiros natos, é porque assumia, num efetivo engajamento, que para se fazer cinema no Brasil há de se recusar o ideal em nome do possível – e do possível pode surgir o imprevisto. Há de se superar os modelos mais ou menos consolidados (e as ideias e os modos inerentes a eles) por meio da aposta, sem medo, numa aventura que caminha no incerto. Interessava a ele o que o cinema mobilizava – não o cinema como valor burguês (mercadoria) ou pequeno-burguês (prestígio).

Muito se falará e se escreverá sobre ele ainda, talvez de um jeito do qual ele não gostasse. Mas tudo bem. Agradá-lo era mais simples do que fácil.

Assim como Anatol Rosenfeld, Otto Maria Carpeaux e Roberto Schwarz, fez parte desse conjunto de intelectuais – críticos – que nasceram na Europa e fizeram (ou se fizeram) muito no Brasil. Como Schwarz, enfrentou o enigma que é o Brasil, o que a forma das obras revelavam do processo social brasileiro não exatamente como reflexo, mas como urdidura de uma realidade em liminaridade híbrida, indefinida e inconclusa. Mas Bernardet, nesse empenho, meio que perdeu boa parte da identidade gringa, não tendo consolidado outra no lugar. E, se ele adquiriu algo de brasileiro, não foram os clichês da identidade local, pois se tornou um bicho indiscernível. Ele se encontrou e se desencontrou numa versão muito particular (na contramão, talvez) da pauloemiliana “dialética rarefeita entre ser e não ser o outro”[i].

Eu tenho saudades do Jean-Claude e terei para sempre. O negócio é conviver com isso sem drama e sem nostalgia. É o mínimo de lealdade e agradecimento que devoto a ele.

Em distância

O texto acima foi publicado em caráter pessoal numa rede social na noite de 12 de julho de 2025, horas depois do falecimento de Jean-Claude Bernardet. O desejo era fazer um instantâneo da imagem dele que desaparecera definitivamente. As palavras foram escritas num jorro e publicadas sem revisão. À noite, o realizador Lincoln Péricles (LK), desde Marseille (onde apresentara naquele dia seu último trabalho, Um filme sem querer), manda então uma foto dele com Jean-Claude feita em 2024 pelo cineasta Fábio Rogério, acompanhada de um pequeno texto de despedida:

Que esteja em paz. Mas é difícil te imaginar em paz. Esteja crítico então. Como sempre foi. E do lado esquerdo como sempre esteve, meu amigo. Que faça uma passagem tranquila.

LK comenta sobre um texto a respeito de Jean-Claude que o desagradou. Não era de uma instituição universitária, não era publicação de um veículo tradicional da imprensa, nem mesmo de uma pessoa do círculo íntimo. Era uma postagem em rede social feita por um intelectual acadêmico. Era pessoal, mas de temperamento oficialesco e de caráter extrainstitucional.

O texto o saúda como “ícone” da crítica, o localiza numa época (o passado) em que esse gênero, a crítica, existia e era levado a sério. Fala de sua origem francesa e nacionalidade belga, sua diplomação na École des Hautes Études en Sciences Sociales e o tardio doutoramento na ecA-usp. O define como autor de “livros e compilações fundamentais”, chama atenção para o seu “conhecimento enciclopédico” (sic) e para as funções por ele exercidas com excelência, como as de professor, ensaísta, romancista, diretor e coisa e tal. Por mais uma vez, lamenta a miséria cultural contemporânea para afirmar o cadáver ilustre como um contraponto que, infelizmente, se foi.

Tudo correto e limpo. Não mentiu, não insultou o morto. Ao contrário: demonstrou admiração e o chamou de ícone, o que nas tramas simbólicas da história lhe daria certa centralidade emblemática e lhe aferia algo de sagrado e insubstituível. Saía de cena o mito genial e positivo, e ficávamos agora à mercê do mito negativo da escassez contemporânea.

O obituário como forma literária muitas vezes diz mais da tendência intelectual de quem escreveu o necrológico do que do falecido. E aí o estilo seria forjado numa dada configuração de valores no tom, nas palavras escolhidas, no raciocínio argumentativo, no coração. E quais valores são esses, no referido obituário? Valores sociais, responderia Bernardet, que veem o intelectual como parte de uma classe simbólica de cariz aristocrático e protagonista da história, imbuído de valores como a nobreza de espírito e a erudição, ambas perdidas na brutal selva da atualidade. Esses valores, nos quais Bernardet seria um luminar e um herói exemplar, são em parte estranhos ao necro-homenageado. Não que ele não fosse, em sua inquietude produtiva, de um gênio singular e incontornável no processo cultural do último meio século. O problema é tomá-lo como personagem identificado com essa decadência. E o sentimentalismo da decadência é produto de uma fantasia de classe, a qual Bernardet, à vera, trataria com sarcasmo e aborrecimento. O obituário não tem humor e tremor. E nem amor. Sobra um tipo de respeito que, dependendo da pessoa a quem é dirigido, soa como insulto. Seria correto desmontar esse monumento em mármore erigido na função de constranger a imaginação dos intelectuais, de todos eles, sobretudo dos que chegaram agora – desmontá-lo para que não seja necessário depredá-lo.

Por isso, há de se entender e se compartilhar a repulsa de LK, que viu e conheceu outro Jean-Claude: um homem cego que mesmo assim tomava ônibus sozinho para vê-lo no Capão Redondo; o velho que fazia filmes com estrutura radicalmente modesta com jovens sem sobrenome; o corpo crítico que na sua velhice de saúde frágil voltava as costas à milionária e carniceira indústria da medicina paliativa; o homem de esquerda que ousou dizer em entrevista que os manés e as donas Fátimas do 8 de janeiro de 2023 tomaram pra si a energia de rebelião que um dia foi da esquerda – uma esquerda que agora gerencia a simbologia e as práticas do Estado burguês.

Lincoln Péricles (LK) e Jean-Claude Bernadet em 2024. Foto: Fábio Rogério

Bernardet via com alguma clareza, às vezes discreta, às vezes em recusa drástica, a fantasia de uma elite intelectual que teria a tendência irrefletida de fazer dele, um intelectual de origem e sotaque franco-belga, uma estátua de mármore, como se essa inteligência estrangeira nos desse o lastro cultural que nos falta, irremediavelmente, em nossa mediocridade insolucionável, envergonhada, ancestral e constitutiva.

Como ex-professor do curso de cinema da ecA-usp, próximo a Paulo Emílio Sales Gomes, como autor de Brasil em tempo de cinema (1967)[ii], Cineastas e imagens do povo (1985)[iii], Historiografia clássica do cinema brasileiro (1995)[iv], e outros ensaios e romances, era um agente duplo insider/outsider. Não se trata de rejeitar sua dimensão acadêmica, mas de reconhecer a ambivalente construção política de seu carisma intelectual, pois parte importante de sua obra e trajetória se deu no risco, na aventura na rua e no campo das ideias, dentro e fora do circuito de legitimação intelectual. Vaidoso, desconfiava da vaidade do prestígio e despongava de tudo o que poderia reduzi-lo ao trono de autoridade inerte e conciliada. Sua passagem como membro do corpo docente da ecA demonstra capacidade de existir de modo original e fecundo dentro de um departamento. Formou pesquisadores de fôlego e cineastas para o mercado, participou de debates, pensou uma pedagogia para o cinema, realizou filmes de montagem com grande prospecção em imagens de arquivo e sempre polemizou. Foi o intelectual do cinema na universidade brasileira que mais teve vocação para a intervenção pública, mais que Paulo Emílio.

Não era mais o cineclubista, o crítico e o jornalista que vivia na clandestinidade, o roteirista inquieto e o ator experimental da contracultura – ele literalmente comeu livros em Orgia, o homem que deu cria (1970), de João Silvério Trevisan –, o provocador em divisa com cineastas contemporâneos a ele, mas um professor, um intelectual cooptado por atividades fundamentais no funcionalismo público, como é típico do Brasil há mais de um século e que conta nas suas fileiras Mário de Andrade, Antonio Candido, Guimarães Rosa e outros. Fez muito aí, fez história, mas curiosamente hoje, quando é lembrado por esse período (sobretudo os anos 1990), o é por passagens menos brilhantes ou tomadas sem a complexidade que suas sinuosas provocações exigiam dos interlocutores, como quando elogiou o “cinema médio” argentino em comparação com o brasileiro, ou quando criticou a dependência que o cinema no Brasil tem do Estado. Não que suas provocações fossem caneladas políticas, mas muitas vezes suas opiniões foram assumidas e brandidas por agentes do campo audiovisual como legitimação ilustrada de certo cinema médio, pseudoindustrial e de ranço neoliberal. Esse cinema nunca o capturou como defensor, logo ele, que nem do cinema novo foi o aliado que os cineastas desejavam, pois era especialista em instaurar crises com as formas (artísticas, discursivas) e os modos (sociais, intelectuais).

É por aí. Bernardet não era um iconoclasta sem consciência das contradições do campo em que atuava, era, sim, um dândi malandro, com jogo de cintura. Sabia tomar distância justa e proveitosa desse tipo de enquadramento que se fez dele, mas, quando interessava, derrubava a prataria da mesa bem-posta, como quando Joaquim Pedro de Andrade quis levá-lo a um jantar com ricaços porque estes adoravam um intelectual francês, e ele se recusou peremptoriamente a isso, como nos conta em Wet macula[v]. Dessa captura do intelectual por uma elite fetichista, ele fugia em divergência.

Nesse mesmo livro, um ensaio imaginativo e memorialístico que assinou com Sabina Anzuategui, Bernardet marca a importância na sua vida de um livro de divulgação de Francis Jeanson, pois nele encontrou a “palavra que chispou”: bastardo. “O intelectual, o bastardo, o pária, são impostores que revelam a impostura.” Diz Jean-Claude: “Sou eu”, para depois finalizar provisória e dialeticamente na repetição indagativa: “Sou eu?”. Mais adiante, depois de um fragmento em que confessa ter vários medos, continua: “Jeanson é também o para-si. É o distanciado, o arejado, o irônico, o cartesiano, o que diz Eu”.

A incômoda e imprópria tarefa de ele, um intelectual estrangeiro (um bastardo), ser um intérprete do Brasil sempre foi uma contradição que o atravessou sem melindres e se fez como um atrito dialético: na sua estratégia crítica, ele se engajava em uma aproximação necessária para poder ver as coisas de perto e, no seu refluxo, tomava distanciamento para percebê-las clinicamente com o estranhamento que lhes era próprio. O juízo e a distinção dilacerantes, mas pouco categóricos, se faziam nessa dinâmica de atrito. O juízo não era – não é – uma sentença, e a materialidade social das práticas cinematográficas não estava apartada dos constrangimentos de uma sociedade fraturada, instável e violenta, que pede uma renovação de critérios frente a uma realidade que trai expectativas continuamente.

Já se disse que sua obra é fragmentária. Algumas das considerações mais férteis em Cineastas e imagens do povo, por exemplo, careciam de desdobramentos posteriores – coisa à qual Bernadet se recusava, pois o que ele queria mesmo era poder discordar de si mesmo depois. Por isso, o crítico. O intelectual-monumento não combina com seu estilo.

Hoje, Jean-Claude Bernardet não descansa: segue crítico.

Notas


[i] Paulo Emílio Sales Gomes, “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” [1973], em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento (São Paulo, Paz e Terra, 1996), p. 90. (N. E.)

[ii] Jean-Claude Bernardet, Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966 (São Paulo, Companhia das Letras, 2007 [1967]). (N. E.)

[iii] Idem, Cineastas e imagens do povo (São Paulo, Companhia das Letras, 2003 [1985]). (N. E.)

[iv] Idem, Historiografia clássica do cinema brasileiro (São Paulo, Annablume, 2004 [1995]). (N. E.)

[v] Jean-Claude Bernardet e Sabina Anzuategui, Wet mácula: memória/rapsódia (São Paulo, Companhia das letras, 2023). (N. E.)

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