Folia de Reis

A trupe dobrou a última curva. Já não se via o palhaço, nem o passo dos jovens foliões. Só o eco do canto persistia, espalhando-se pela noite como se quisesse costurar cada vazio, cada medo, cada esperança. Um canto novo anunciava, no seu modo simples, que a dor não terá a última palavra

Pintura por Soloni Freitas
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Como quem ajeita um véu antes da celebração, a noite se armava devagar. No bairro, que já vira procissão, velório, mutirão e festa, as famílias se preparavam para receber a Folia de Reis. O Natal estava a chegar.

Os vizinhos escolheram a casa de dona Sil para a recepção ao cortejo. Mulher católica, generosa e sorridente, por onde passava distribuía esperança, também valentia. Dias antes ela arrumara a casa com o rigor de quem sabe que rito não combina com improviso. Varreu cada cômodo, a frente e o quintal, montou o presépio e acendeu vela ao lado. Antes da chegada da folia passou pano úmido no Menino Jesus que teimava em acumular poeira, como se quisesse lembrar que nascera do chão do mundo.

As crianças corriam pela calçada e os vizinhos iam achegando. Nem tanto por convite, mas pelo chamado íntimo que aquele momento desperta. Há festas que não se anunciam, apenas se pressentem. Essa, se pressentia. A Folia viria de longe. De um Ponto de Cultura do Vale do Paraíba, que juntava tradição e infância, brincadeiras e reflexões.

Pela estrada antiga, entre as árvores e o riacho, era possível auscultar as pessoas ensaiando passos sobre o pó que se ergue da terra batida. À frente, o bandeireiro, homem magro, olhar firme. Carregava a Bandeira dos Santos Reis como quem conduz uma memória do mundo. Era o único que se avistava. Havia um olhar solene saído daquele homem negro, trabalhador do campo, era um olhar que anunciava que aquela bandeira não pertencia só a ele. O marido de dona Sil desceu a rua para recebe-los com reverência.

As fitas tremulavam, era um vento leve que se somava à respiração coletiva dos foliões. As casas também estavam enfeitadas com fitas azuis, vermelho e amarela. Logo atrás da bandeira vinha o Mestre. Violeiro de viola gasta, tocava um instrumento que parecia trazer ainda o cheiro das manhãs do pé da serra da Mantiqueira em uma mistura entre café torrado, capim-cidreira, pinhão e terra molhada. Ele puxava o tom, modulava o compasso. E a cada nota abria a noite como se fosse clarão de estrela.

O Embaixador, responsável pelo verso de chegada, ensaiava baixinho as rimas da procissão. Capa amarela, selecionava as palavras como quem escolhe sementes para o plantio. O Contramestre, encarregado de responder o canto, vinha logo a seguir. Ao fundo, os foliões jovens, aprendizes de uma tradição que se transmite menos por livros e mais por convivência, suor e fé.

– Convivência ‘Bem’ suada!brincou com as palavras o palhaço. Como que a dizer que bendição vem junto com suor e esforço. Meio bufão, meio penitente, rosto pintado e roupas remendadas, era ele quem provocava animação, riso e desordem. Desordem intencionalmente provocada para que dela surgisse a ordem verdadeira, aquela que arranca a tristeza da alma como quem extrai do pé uma farpa.

Antes de dobrar a curva da rua, o grupo se reuniu numa pequena roda. O Mestre pede atenção. Deram-se as mãos e rezaram.

Após a oração ajustaram o estandarte. Prenderam uma fita solta. E o Mestre afinou mais uma vez a viola. Então começaram o “ponto de entrada” que subiu pela estrada. Como uma prece:

“Caminhemos com firmeza,
que esta noite é de luz e chão.
Pelos Reis, pela pobreza,
pela força da canção.”

Canto simples, mas firme. Cada voz ecoava a biografia do povo: o agricultor sem-terra, o operário sem trabalho, demitido na última crise e que vendia café com pão nas madrugadas, a costureira que havia perdido o marido para a violência, o rapaz que sonhava em deixar o país, mas permanecia porque ainda acreditava no sentido de sua gente. Cantaram todos. Cantando adentraram na rua íngreme.

Ao avistá-los, as crianças se alvoroçaram e os adultos se levantaram. Havia uma reverência festiva com o cortejo. A Folia foi passando na frente das casas entre cumprimentos e sorrisos, até que para na frente da casa de Dona Sil. O Embaixador pede licença:

“-Oh senhora dona da casa
pedimos agora entrada
com humildade e respeito,
não trazemos ouro nem prata,
mas trazemos canto no peito.”

A família descerra uma fita e abre a porta. O cortejo adentra. Com reverência a gente da Folia de Reis apresenta a bandeira diante do presépio. O Mestre afina o tom. O Contramestre responde. E o palhaço distrai as crianças para que os adultos pudessem rezar sem lágrimas ostensivas.

As famílias cantaram pelas almas e pelos presentes, cada qual com sua dor e memória. À dona Elza, seu Oswaldo e Mariquinha, à filha de uma amiga que desapareceu, às filhas Mariana e Carolina, aos netos Beatriz e Pedro, aos irmãos, sobrinhos, amigos. Cada família cantou sua canção com a voz que sai do coração. Aquela que não precisa ultrapassar a boca. Foi um canto silencioso, de lembrança e amor pelos que partiram e pelos que aqui estão.

E então. Diante do Menino de barro, a Folia cantou seu ponto mais antigo. O verso parecia recitar o drama de um mundo inteiro:

“Noite nasce entre ruínas,
há crianças sem abrigo,
o caminho dos Reis clama
por quem vaga sem destino”

O Mestre, num gesto raro, fez pausa no canto. Começou a falar, não em tom de discurso, mas em confidência de quem conhece as dores do mundo:

– Se Belém fosse hoje, meus irmãos, talvez estivesse sob escombros. Talvez Maria batesse de porta em porta em Gaza e José procurasse refúgio nas ruínas. Talvez os Reis viessem a pé, desviando de cercas e minas. Talvez o Menino nascesse no deserto, entre barracas de lona.

Ninguém respondeu. Não era preciso. Cada pensamento trazia consigo a lembrança dos imigrantes atravessando rios, dos que dormem em abrigos frios, dos que fogem da guerra que nunca escolheram. As cantorias retomadas, porém, não se afogavam na dor. Cantava-se como uma contramaré que é gesto de resistência. A cada estrofe afirmava-se a possibilidade de outro mundo.

O palhaço, percebendo o peso da responsabilidade, entrou em cena. Fez suas palhaçadas, tropeçou de propósito, fingiu brigar com o pandeiro. A criançada explodiu em riso. Os adultos sorriram também. Deram-se as mãos. Após a bênção, o riso; após a fé, a humanidade. Aí estava a sabedoria profunda.

Chegou então o momento da reza final.

Todos se ajoelharam diante do presépio.

Dona Sil segurou a bandeira enquanto o Mestre rezava. Rezava por quem passa fome, por quem perdeu trabalho, por quem vive à beira de enchentes e incêndios, pelas vítimas do colapso climático que chega cada vez mais depressa. Na reza, pediram pelos povos que lutam contra guerras sem sentido. Pediram por Gaza, Ucrânia, Congo, Haiti. Rezaram pelo Haiti e pelos que moram aqui. Pediram pelos que caminham rumo a fronteiras hostis e também por aquela rua simples.

Continuaram firmes no propósito de reverenciar o Menino Jesus e de ser abrigo. Quando a reza terminou a família convidou todos os presentes para se servirem à mesa. Havia arroz de carreteiro, cuscuz fumegante, frango ensopado, pão caseiro, café forte, doce de abóbora, broa de milho e suco de amora. A comida não era muita, mas oferecida com a generosidade de quem sabe que partilhar é o início de qualquer transformação. Foi a suficiente.  

Foliões e vizinhos comeram juntos. Juntos trocaram lembranças e pequenas esperanças. E foi ali, entre pratos simples e vozes misturadas, que se reconheceram na essência.

Folia de Reis não é rito, é crítica e transformação, encontro e reverência, memória viva que caminha. Na Cultura Popular, pelo rito e a tradição, se faz a denuncia das dores do mundo. Não pelo que destrói, mas pela beleza que afirma, pela comunidade que convoca, pela fraternidade que se realiza de maneira concreta.

O grupo se despede.

A rua parecia outra. Como se a noite tivesse ganhado um gesto de respiração mais lento. Os vizinhos demoraram a ir embora, presos a uma vontade muda de prolongar o instante. Na frente da casa, vendo a Folia seguir caminho, seguravam nos olhos a última claridade antes que a vida voltasse a endurecer.

Algo firme sustentou o ar daquela noite. Era uma chama pequena, porém teimosa, acesa no fundo do peito de cada morador. A Folia foi ajeitando o compasso, como quem recolhe o que é sagrado para seguir viagem. E o Mestre deu um último aceno. O palhaço recolheu suas graças. O Embaixador guardou o caderno de versos.

A Bandeira novamente à frente.

E a Folia mais uma vez partia sem dizer qualquer palavra. Caminharam. Primeiro devagar. Passos marcando o chão de terra. Depois a cantoria foi começando novamente, baixinho. Iriam a outra rua, outro lugar, outra casa. Os moradores à frente da casa deixada para trás ouviam aquele canto lento, rouco de noite. E ali, imóveis, observaram o cortejo que se afastava.

A poeira levantada pela procissão fez um véu sobre a estrada. As fitas da Bandeira ainda tremulavam. E som da viola, antes tão perto, virou acorde distante. Por um breve momento pareceu que toda a tristeza do mundo iria dissipar-se com a saída do cortejo. Mas não, algo mais forte permaneceu. Ficou a coragem miúda, dessas que só o povo sabe fabricar quando canta.

A Folia dobrou a última curva. Já não se via o palhaço, nem o passo dos jovens foliões. Só o eco do canto persistia, espalhando-se pela noite como se quisesse costurar cada nova casa, cada vazio, cada medo, cada esperança. Um canto novo anunciava, no seu modo simples, que a dor não terá a última palavra.

Quando enfim desapareceram, ninguém teve coragem de falar. A estrada ficou escura outra vez. Mas a escuridão já não parecia tão pesada. No silêncio, sem precisar explicar, cada morador sentia que enquanto houver quem cante pela dignidade do mundo, a esperança seguirá caminhando, mesmo que por estradas tortuosas e longas.

E ali, naquela curva, onde a Folia se perdeu e a poeira demorou a baixar, quem prestasse bastante atenção ouviria o que ela ainda murmurava, muito baixinho:
“ainda estamos aqui… e ainda não desistimos”.

Os vizinhos voltaram para suas casas.

Houve algo firme naquela noite atravessada pela poeira. Dali alguns dias seria Natal mais uma vez. Não um Natal de promessas fáceis, nem de redenções instantâneas. Seria Natal porque o mundo, apesar de tudo, seguiria insistindo em nascer. Porque alguém varreria o quintal antes do sol alto. Porque outra mesa seria posta, ainda que simples. Porque uma bandeira, em algum ponto da estrada, continuaria sendo erguida como quem se recusa a esquecer.

A Folia já estaria longe. Talvez entrando noutra rua. Talvez enfrentando outra noite. Mas o que havia passado por aquela rua não se desfez com a poeira. Ficou no modo como as pessoas se reconheceram umas nas outras. Ficou na coragem compartilhada, essa matéria invisível que sustenta os dias quando tudo parece escasso e duro.

Natal, então, não era data, era prática. Natal existe enquanto houver quem cante junto, quem abra a porta, quem transforme memória em gesto, fé em abrigo. Enquanto houver esses que fazem, o nascimento seguirá acontecendo. Humilde, discreto, frágil, e, por isso mesmo, irrecusável. Natal é decisão cotidiana de permanecer humano num mundo que frequentemente desumaniza.

Daquele encontro nasceu um pequeno poema que um vizinho escreveu:

Auto breve para um Natal que caminha

Não nasceu em palácio,
nasceu na dobra do chão.
Não trouxe cetro nem coroa,
trouxe o peso da condição.

Três Reis não vieram de ouro,
vieram de estrada e poeira,
um trazia canto,
outro trazia riso,
o terceiro trazia espera.

E o Menino,
sem falar,
ensinou:
que o mundo se salva
não por indiferença,
mas por amor,
não por milagre,
mas por insistência.

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