Fechar os olhos para ver
Em novo livro, um encontro entre o Cinema e a Filosofia. Autores advertem: estas áreas são uma jangada para a travessia da vida, que dispensa bagagens utilitaristas. Pois trata-se de uma potência “xamânica” que nos faz raros e imensos através da tela que pensa
Publicado 13/11/2024 às 13:26 - Atualizado 13/11/2024 às 21:26
Esta é a introdução de A tela que pensa – Filosofia, Cinema e Vida, de Bia Antunes e Luame Cerqueira, publicado pela editora Tipografia Musical. O livro é fruto de cursos que, desde 2015, percorreu diversos cinemas do Brasil – e que, agora, toma uma face literária. Filmes de Fellini, Wim Wenders, Tarantino, Tarkowski, Lars von Trier, entre outros, se compõem com as filosofias de Nietzsche, Bergson e Deleuze. Será lançado neste domingo (17/11), às 15h, na Livraria Martins Fontes – Paulista, SP. Haverá um bate-papo com os autores e sessão de autógrafos.
Cai a tarde. Estamos no coração da Amazônia.1 Um pequeno barco de madeira flutua nas águas de um rio, por ora sereno. Um xamã, último sobrevivente de seu povo, e um cientista norte-americano fazem a travessia, cercados de mata abundante por todos os lados. Karamakate, o indígena, avisa ao explorador que ele terá que se desfazer de todas as malas, pois o barco mal aguenta o peso dos dois. Além do mais, “as coisas só levam à loucura e à morte”. De início relutante, acaba por jogar fora tudo o que tem, até seu relógio de pulso, com exceção de uma pequena maleta. “O que é isso?” O homem branco abre-a, revelando um toca-discos portátil. Posiciona a agulha, gira a manivela e, de repente, a música de Haydn começa a preencher a nascente noite estrelada. Diz que aquela música é valiosa para ele, pois o faz lembrar-se de sua casa em Boston, de seu pai e, também, de seus antepassados, pois conta como Deus criou o mundo. Acrescenta, com rigor científico, que é linda, mas apenas uma história. Encantado pela música, Karamakate fecha os olhos e vê as árvores, o céu, seu passado, tudo sob outra luz. “Não, não é só uma história”, insiste o xamã. “O caminho está nesta música. Escute-a não só com os ouvidos.” Em outros termos, ao invés de apenas representar, a música é a própria criação do mundo, algo que a todo momento podemos testemunhar. Para sentir isso, no entanto, não basta ser um culto homem ocidental, tampouco basta pertencer a uma etnia indígena: é preciso conquistar um corpo capaz de penetrar nos mistérios da vida. A floresta aqui não é ameaçadora, e sim a própria humanidade com sua vocação de dominação, intolerância e extermínio. E a despeito disso, a floresta conserva sua estranha harmonia e nos convida a participar de seus movimentos.
O indígena, já idoso e meio esquecido, e o americano, com propósitos suspeitos, estão em busca de uma flor sagrada, a Yakruna. À medida que se aprofundam na selva, o indígena vai recuperando sua memória, enquanto a desconexão com seu povo perdido, degenerado pelo cruel delírio da colonização, se resolve numa ligação mais profunda com a natureza. Lembra-se de que aquela flor tem o poder de despertar a serpente dentro de nós, recuperando a continuidade com os segredos do universo. Mas – oh! – o último exemplar da Terra é dado justamente àquele que menos merece, o ocidental mentiroso e covarde! Com isso, prova-se que “cada um é dois”. A partir de então, a relação entre homens tão diversos, bem como o laço deles com a vida em si, não é mais cultural ou moral, mas místico. Não importa quem somos ou de onde viemos, cada um é dois: parte e todo, finito e infinito. Mas isso só nos é revelado em experiências limítrofes em que nos desfazemos de nossas bagagens, mantendo apenas o elo com o inexplicável, como acontece com a arte. Longe de ser uma terapia ou representar determinada cultura, a arte faz emergir o nosso duplo subterrâneo, potência sem nome que nos faz raros e imensos. Já dizia Godard:
Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte, a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, televisão, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoiévski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebrenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção.2
A besteira é a regra, o pensamento é a exceção. É próprio da besteira abafar o pensamento, mas ele não pode morrer, já que é um atributo da vida. Sempre há de sussurrar e nos convocar a interceder por ele. Neste livro, seremos os soldados da exceção: lutaremos para que a arte cinematográfica continue a ser cultivada e que o pensamento, nosso segundo Sol, semeie coragem nos corações, a fim de desafiar o supérfluo, a tola vaidade humana e, em última instância, para que o ato de viver não seja em vão.
As obras do cinema e da filosofia são, para nós, como a jangada que atravessa o rio. Primeiro, cuida-se para não naufragar. Depois, quando se chega na outra margem, não se carrega a jangada nas costas, é preciso abandoná-la e seguir o caminho que ela proporcionou.3 Sendo cada obra excessiva por natureza, nunca esgotaremos os filmes com uma última palavra. Afinal, não somos nós, é a tela que pensa. E a tela já revela o encontro afetivo, o contraponto, a intercessão espiritual entre filme e espectador, pela qual floresce, não uma verdade, mas uma interpretação. Toda interpretação é uma travessia, com suas bagagens, jangadas, abandonos e encontros; sendo assim, não pode ser avaliada com base em valores absolutos, tampouco descartada pelo relativismo da opinião. Este livro é um convite “xamânico” para embarcar numa travessia muito especial pelo cinema, que só aqui os leitores vão encontrar, e que tem por destino fechar os olhos para ver.
Notas:
1 Inspirado em O abraço da serpente (2015), filme de Ciro Guerra.
2 Je vous salue, Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard.
3 Inspirado numa antiga anedota zen-budista narrada por Alan Watts no livro Torna-se o que você é.