EUA: Decadência e fim da imaginação
Indústria cultural escancara incapacidade de um império em declínio de oferecer uma visão positiva de futuro, aponta o filósofo Diego Ruzzarin. Por isso, aposta em nostalgia para reconfortar e conformar – e distopias onde só há espaço para o fatalismo e ações individuais
Publicado 21/10/2025 às 17:20

A decadência dos Estados Unidos pode ser percebida em vários âmbitos. Na economia. Nas desigualdades sociais. Na infraestrutura. Na liderança tecnológica. Na política e cultura.
Ao longo do século 20, a indústria cultural estadunidense se tornou a mais poderosa do mundo. Exportando produtos em escala planetária — valores políticos, estéticos, desejos, ideologias — que produziram subjetividades, linguagens e memórias afetivas. Símbolos que povoam nosso imaginário e que ajudaram a consolidar um império global. Esse soft power extraordinário tem na indústria fonográfica, nas agências de notícias e em Hollywood o seu tripé.
O cinema é uma arte de massa diretamente ligada aos desenvolvimentos técnicos da modernidade e ao capitalismo industrial. Os custos para fazer filmes são altos, o que torna indispensável uma grande difusão. Walter Benjamin — no seu famoso ensaio A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica— diz que o cinema foi responsável por criar uma brecha na afirmação de Heráclito: “o mundo dos homens acordados é comum” e o “das pessoas que dormem é privado”. Isso aconteceu não por meio de uma “descrição do mundo onírico” nas telas, mas pela criação de “personagens do sonho coletivo”, que são muitas vezes capazes de gerar “neuroses sociais”. A reprodução em massa costuma significar a reprodução das massas.
A indústria cinematográfica dos EUA esterilizou, aos poucos, a própria capacidade de produzir formas coletivas de sonhar dentro das condições sociais precárias geradas pelo capitalismo tardio e por sua horrorosa face neoliberal. Esse processo se estendeu a todos os campos da produção cultural do país. Para o filósofo Diego Ruzzarin, é possível perceber a decadência artística dos EUA de duas maneiras. A primeira guarda relação com a substituição da arte histórica pela arte abstrata, funcionando como apagamento do passado e da memória ao produzir uma forma autorreferencial e esvaziada de si, comum aos prédios públicos do país, mas que também atinge as moradias.
Acrescentaria ainda: essa estética mostra sua face mais assustadora na arquitetura do não-lugar e sua dimensão mais abrangente no minimalismo — que ultrapassa aqui a condição de estilo arquitetônico, devendo, portanto, ser entendido como ideologia e sintoma, e a estética que melhor reflete a atual e decadente sociedade estadunidense tomada pelo signo da funcionalidade, pelo consumo e individualismo, pelo desenraizamento e a desespiritualização, pela morte da coletividade, dos sentidos e bem comum.
A segunda diz respeito à incapacidade do império em declínio de oferecer uma visão positiva para o futuro, levando a uma aposta na nostalgia. Ruzzarin observa que o entretenimento dos EUA, atualmente, é baseado em remake, rebbot, prequel e sequel. E ironiza: “a gente mata o Tio Ben do Spider-Man uma vez por ano, para contar a mesma história”. Estamos assim diante de uma perspectiva que busca reconfortar e conformar, em vez de estimular a imaginação. Em outras palavras: quando uma sociedade não vislumbra mais o futuro, ela consome autofagicamente o passado num simulacro de sentido.
Segue-se daí um meio ideológico que impede o real enfrentamento do colapso da civilização, que assumiu a forma da crise ambiental, das desigualdades, da violência e da falência da democracia liberal. Quando esses temas, porventura, aparecem, eles são tratados pela lente da desgraça, da distopia e do fatalismo. A condição psicológica hollywoodiana é a mesma do capitalismo tardio, que pode ser sintetizada na famosa frase de Mark Fisher: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.
Se o pensamento socialista projetou a emancipação da humanidade, o realismo capitalista projetou a ausência de alternativas. Ruzzarin ilustra essa ideia, numa entrevista concedida ao Podcast 3 Irmãos, com uma comparação entre Interestelar (Christopher Nolan, 2014) e o filme chinês Terra à Deriva (Frant Gwo, 2019).
A premissa de Interestelar é “a Terra tá se fudendo, sem oxigênio e sem comida, então a gente inventa uma maneira de escapar e recomeçar a sociedade em outro planeta… abandonando todo mundo pra trás… E daí ganha o amor, porque através da gravidade a gente vê que o amor é mais forte do que qualquer força física, transcendendo o tempo, o espaço e a matéria”… É uma narrativa baseada na ideia de abandono, com fortes traços individualistas.
Em Terra à Deriva, a história também se passa num futuro no qual a humanidade enfrenta graves problemas climáticos que estão produzindo o esgotamento do planeta. Há elementos no filme que sugerem se tratar de uma sociedade comunista, como, por exemplo, a inexistência da propriedade privada.
O governo, para solucionar o problema, elabora um plano que visa transportar a Terra até outro sistema solar, sem que para isso seja preciso sacrificar parte da humanidade. Leva-se quinhentos anos para construir as turbinas no hemisfério sul e abrir túneis no interior do planeta para abrigar as pessoas. E mais três mil anos de viagem ao destino em um novo sistema solar.
“Olha a sutileza da mensagem”, ressalta Ruzarrin: “A China é uma civilização de cinco mil anos… Eles conseguem pensar que o que estou fazendo agora não é pra mim. É pros netos, dos meus netos, dos meus netos… Nesse sentido, é a diferença entre um império em decadência – ‘salve-se quem puder’ — contra um império civilizatório”.
E conclui: “Ou chega todo mundo ou não chega ninguém.”
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