Eduardo Galeano, o caçador de histórias

Escritor uruguaio, morto há dez anos, realçava o encantamento das pequenas coisas que mostram a grandeza da vida. Assim, ele buscava “as pegadas da memória perdida” – em fábulas, relatos pessoais e lutas do passado. Inspirava a decifrar-nos: como sujeitos e coletividade

Foto: Mariela De Marchi Moyano/Wikimedia Commons
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Os seres humanos são feitos não só de matéria, sangue, carne, crenças e afetos, mas também de histórias. Histórias coletivas, compartilhadas. Narrativas que, ao serem passadas de geração em geração, mantêm viva a memória dos que já foram. Mas há uma imensidão de micro histórias perdidas nos fios que tecem o tempo, e ao serem redescobertas e transmitidas, servem de resistência contra o esquecimento e o desencantamento da vida. Em 2025, data que marca 10 anos da partida de Eduardo Galeano, revisitar sua obra pode ser uma boa estratégia para resgatarmos histórias que estavam desbotadas em nossa memória coletiva. Afinal de contas, esse foi o ofício de Galeano durante sua vida.

O escritor uruguaio é um genuíno caçador de histórias, pois realça o encantamento das pequenas coisas que mostram a grandeza da vida. Não a grandeza dos tapetes vermelhos, dos trajes de gala e das linguagens rebuscadas, mas das coisas que, sendo aparentemente pequenas, revelam uma grandiosidade quase esquecida.

Galeano diz algo sobre isso em “pegadas”:

“O vento apaga as pegadas das gaivotas. As chuvas apagam as pegadas dos passos humanos. O sol apaga as pegadas do tempo. Os contadores de história procuram as pegadas da memória perdida, do amor e da dor, que não são vistas, mas que não se apagam.”1

A sua obra é recheada desses acontecimentos pouco conhecidos. No seu livro Caçador de histórias, retrata a primeira greve da humanidade, no Vale dos Reis, Egito, em 1152 antes de Cristo. Conta que os desenhistas, quebradores de pedras, carpinteiros que estavam construindo as pirâmides resolveram cruzar os braços e parar o trabalho até que recebessem seus salários. Segundo Galeano, até pouco tempo atrás nada ou quase nada sabíamos disso “talvez pelo medo de que o exemplo se espalhasse.”2

Não são poucas as vezes que Galeano cita o Brasil em sua obra. No relato “libertadoras brasileiras”, presente no livro Os filhos dos dias, relata: “Hoje terminou, em 1770, o reinado de Teresa de Benguela em Quariterê. Foi um dos santuários de liberdade dos escravos fugidos do Brasil. Durante vinte anos, Teresa enlouqueceu os soldados do governador do Mato Grosso. Não conseguiram apanhá-la viva.”3 Logo após, nomeia outras mulheres brasileiras que construíram santuários de liberdade e organizaram territórios de resistência: Zacimba Gambá, no Espírito Santo, Mariana Crioula, no interior do Rio de Janeiro, Zeferina, na Bahia e Felipa Maria Aranha, em Tocantins.

É comum ouvirmos que devemos aprender com a história para que os fantasmas do passado não ressuscitem. Entretanto, o passado também serve de exemplo, constituindo uma espécie de diretriz à ação. Galeano lembra que em 1988 a França elaborou uma lei reduzindo para 35 horas a jornada de trabalho semanal. Ora, qual a finalidade das máquinas se não reduzir nosso tempo de trabalho? Por que o progresso tecnológico deveria nos causar cansaço e desemprego? A lucidez dos franceses durou pouco, e a lei foi revogada dez anos depois.4 A luta do movimento Vida Além do Trabalho pelo fim da escala 6×1 parece ser uma forma de recuperar a lucidez nos dias atuais.

O autor uruguaio também registra histórias pessoais com lições coletivas, ao contar seus tempos de infância escolar. A professora lhes contou que Balboa, conquistador espanhol, avistou do alto de um morro no Panamá, o Oceano Pacífico de um lado e do outro o Oceano atlântico. Segundo a professora, Balboa foi o primeiro homem a ver, ao mesmo tempo, os dois mares. Até que o pequeno Galeano pergunta: “Professora, professora. Os índios eram cegos?” Foi a primeira expulsão de sua vida.

Algumas contradições dos pais fundadores do liberalismo também são recuperadas em sua obra, como no texto “o filósofo da liberdade”, que aborda John Locke como o filósofo que deu fundamento à liberdade em suas diversas variantes, inclusive a liberdade de investir.

Palavras de Galeano: “Enquanto escrevia seu Ensaio sobre o entendimento humano, o filósofo contribuiu para o entendimento humano investindo suas economias na compra de um pacote de ações da Royal Africa Company. Essa empresa, que pertencia à coroa britânica e aos homens industriosos e racionais, ocupava-se de agarrar escravos na África para vende-los na América. De acordo com a Royal Africa Company, seus esforços asseguravam um constante e suficiente subministro de negros a preços moderados.5

Parte relevante de seus livros é composto por pequenas histórias – com uma ou duas páginas – que recompõe acontecimentos perdidos na memória coletiva. É o que encontramos em O livro dos abraços, O caçador de histórias, Os filhos dos dias e Espelhos. Talvez a forma e o conteúdo estejam entrelaçados, já que escutar suas histórias nos leva a reconhecer a grandeza do que, na aparência, é pequeno.

As histórias de Galeano não se esgotam no plano da vida material, mas ganham espaço no mundo onírico, de tal modo que encontramos em sua escrita alguns relatos dos sonhos de sua esposa, Helena. Em um desses relatos, Galeano conta:

“Helena sonhou que fazíamos fila. Uma longa fila em um aeroporto, como qualquer outro aeroporto, e que cada passageiro levava embaixo do braço o travesseiro que tinha dormido na noite anterior. Os travesseiros passavam, um após o outro, por uma máquina que lia os sonhos. Era uma máquina que detectava os sonhos perigosos para a ordem pública.”

Eduardo Galeano, filho desse território chamado América Latina, mergulha nas contradições da civilização para expô-las, mas também para resgatar as histórias esquecidas, que ao serem redescobertas, ajudam a decifrar quem nós somos, enquanto sujeitos e enquanto coletividade. A “metodologia” de Galeano, ao dar vida às histórias e lutas do passado, é quase um remédio contra o ultra individualismo das redes sociais em tempos de realismo capitalista. Na encruzilhada da história, alguns caminhos se abrem. É necessário que tenhamos olhos aguçados e a habilidade de olhar, para traçarmos os próximos passos.

“A função da arte/1

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

– Me ajuda a olhar”6

REFERÊNCIAS

GALEANO, Eduardo. Espelhos. Porto Alegre: RS, L&PM, 2020

GALEANO, Eduardo. O caçador de histórias. Porto Alegre: RS, L&PM, 2017

GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: RS, L&PM, 2017

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: RS, L&PM, 2016

1 GALEANO, Eduardo. O caçador de histórias. Porto Alegre: RS, L&PM, 2017, pag. 13

2 GALEANO, Eduardo. O caçador de histórias. Porto Alegre: RS, L&PM, 2017

3 GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: RS, L&PM, 2017, Pag 83

4 GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: RS, L&PM, 2017, Pag 166

5 GALEANO, Eduardo. Espelhos. Porto Alegre: RS, L&PM, 2020, pag 159

6 GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: RS, L&PM, 2016, pag. 15

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