Dúvida e lirismo em Sidney Miller
Autor de A Estrada e o Violeiro, que marcou os festivais dos anos 1960, enveredou também pela pesquisa afetiva, provocação poética e crônica musical. Estaria condenado ao ostracismo, como disse certa mídia? Na estreia da coluna Outras Canções, um mergulho em sua obra e persona
Publicado 30/05/2025 às 19:01

Outras Canções é um espaço de escuta. Escuta da música, mas também dos gestos, dos silêncios, das escolhas que atravessam a arte, a cultura e a vida. Falo de discos, de sons, de artistas — mas também daquilo que vibra em torno deles: um tempo, um país, a história, um modo de existir. A coluna parte da canção como ponto de partida para pensar política, memória e comportamento com atenção e afeto. Sem fetiche, sem colecionismo, sem nostalgia que paralisa. Apenas a tentativa honesta de entender o que resiste no que ouvimos.
Comecei este texto porque fiquei de bode. Na verdade, fiquei com raiva mesmo. Vi e li uma matéria da BBC Brasil sobre o Sidney Miller — um daqueles raros artistas que a gente escuta e sabe que não vai esmaecer com o tempo. O título me deu um baque: “A trágica história do cantor brasileiro que rivalizou com Chico Buarque e acabou no ostracismo”.
Rivalizou com Chico Buarque? Ostracismo? A combinação dessas palavras já carrega o veneno de uma narrativa rasa. Porque Sidney nunca precisou rivalizar com ninguém. A manchete é uma caricatura de Sidney e do próprio jornalismo. E outra: se afastar não é o mesmo que ser esquecido. Aliás, talvez seja o contrário: tem gente que a gente só consegue lembrar direito quando o barulho baixa.
Lembro de quando ouvi “O Circo” pela primeira vez. Foi na voz de Marília Barbosa numa novela. Eu era menino e me chamou atenção aquela canção que parecia alegre, mas era atravessada por um traço de tristeza que eu não sabia nomear. A música trazia um desfile de imagens coloridas e, por trás, um mundo desbotado. O palhaço que “na vida já foi tudo” não pedia piedade, mas também não se escondia. E ali estava o Sidney: escrevendo sobre a charanga, a brincadeira. Com leveza e com uma tristeza rondando.
Não falo aqui de um artista frívolo. Falo de um compositor que atravessou os anos 60 e 70 em meio a batalhas estéticas e políticas. Sua estreia em disco veio em 1967, com o álbum homônimo lançado pela Elenco. Era um disco intimista e lírico. Trazia “A Estrada e o Violeiro” — uma das canções mais bonitas da era dos festivais — e também a delicada “Menina da Agulha”, cantada ao lado de Nara Leão.
Naquele disco já se anunciava o que viria depois: uma poética sem exibicionismo, uma busca pelo Brasil profundo sem caricatura. Dois anos depois, em 1968, ele lança “Brasil, do Guarani ao Guaraná”. Um disco que hoje soa como documento. Mistura de crônica musical, pesquisa afetiva e provocação poética, com citações de Mário de Andrade na contracapa e um repertório que vai do samba a pequenas marchinhas com gosto de ironia cívica. Tem ali “Quem Dera”, “Seresta”, “Filosofia” e o assombro de “Pois É, Pra Quê?”.
Depois disso, o silêncio. Ou melhor, a discrição. Ele segue compondo, participa de projetos, trabalha com teatro, com trilhas, com produção. Atravessa os anos duros da ditadura sem ceder à tentação do discurso panfletário. Quando volta ao disco, em 1974, é com “Línguas de Fogo” — um álbum de atmosfera introspectiva, experimental, tocado por nomes ligados ao Clube da Esquina. Tem Tenório Jr., Robertinho Silva, Toninho Horta. É um disco estranho, bonito, solar e noturno ao mesmo tempo. “Alô”, “Espera”, “Valsa”, “Línguas de Fogo”, Cicatrizes, Alento, — canções fortes com arranjos belíssimos.
Sidney também sabia reunir bons parceiros e reconhecia a grandeza do outro. Dividiu composições com Zé Kéti, com quem escreveu “Queixa”. Teve em Nara Leão sua intérprete mais constante e cúmplice. Paulinho da Viola gravou e elogiou suas melodias como quem reconhece um igual. Joyce Moreno, que dele era amiga, cantou suas canções com reverência e leveza. E há ainda os laços com Jards Macalé, com o pessoal da Elenco, com os músicos que, vindos do samba ou do instrumental, entendiam que sua obra era sofisticada sem ser hermética. Uma música que pedia escuta, e não reverência.
Não foi um artista ausente. Foi cuidadoso com sua produção. Quando dizem que ele foi “apagado”, me pergunto: por quem? Por quê? Seria apagamento ou escolha? Entre o show e a canção, ele preferiu a canção. Entre a vitrine e o bastidor, ele ficou no bastidor. E nem por isso se ausentou. Produziu, compôs, colaborou. Criou, inclusive, uma das minhas canções preferidas do nosso cancioneiro: a já citada “Pois É, Pra Quê?”, que começa e termina com uma indagação atemporal e um assovio comovente.
E se hoje resolvi escrever sobre ele, é porque acho que parte da nossa tarefa é essa: limpar a poeira da pressa e as bobagens ditas. Sidney foi um compositor respeitado. Fez belas e caprichadas canções. E isso, pra mim, é grandeza o bastante.
Quem sabe um dia a gente aprenda a escutar e paremos de inventar estigmas.
Sidney nos deixou cedo demais. Aos 35, quando já preparava um novo disco, com gente como Antonio Adolfo e Cláudio Jorge. Tom Jobim talvez participasse. Morreu de um ataque cardíaco, sozinho, num apartamento, depois de misturar remédios e bebida. Mas sua música está viva. Como uma carta guardada que de vez em quando a gente reencontra numa gaveta antiga.
Se é verdade que a música popular é também um arquivo das sensibilidades de uma época, Sidney Miller merece estar entre os nomes que a gente pronuncia com cuidado. Porque ele soube cantar o Brasil sem folclore, sem ufanismo, sem estardalhaço. Com doçura, dúvida e lirismo.
Ele não deixou uma obra extensa. Deixou o essencial. O que precisa ser ouvido com tempo, com atenção. É o que fica quando o ruído passa.
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