Dostoiévski e Blanchot: O instante da própria morte

O escritor russo se salvou do pelotão de fuzilamento do czar; o francês, do paredão nazista. Mas a experiência extrema de ambos encontrou na palavra um lugar de morada, ainda que instável, mostrando através da literatura que tudo pode acabar– e, paradoxalmente, começar de novo

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O instante do encontro entre a vida e a morte, ou melhor, da própria morte com a morte que vem de fora, é intraduzível. Maurice Blanchot, membro ativo da Resistência Francesa sob a ocupação nazista durante a Segunda Grande Guerra, presenciou em 1944 o que para ele se tornou um instante interminável. O mesmo se passou com Dostoiévski, quase cem anos antes, após se ver enredado pelo poder soberano do czar Nicolau I. Diante de Blanchot, o pelotão de fuzilamento nazista; de Dostoiévski, as armas enfileiradas das tropas do czar.

Em 1849, Dostoiévski foi detido pelas forças do imperador russo devido à sua participação no chamado “Círculo Petrashévski” (grupo de intelectuais revolucionários radicais reunidos em torno da figura de Mikhail Petrashévski). Sob a acusação de conspirar contra a ordem política do czar Nicolau I, ele recebeu de dentro da fortaleza russa São Pedro e São Paulo, localizada em São Petersburgo, a condenação à morte por fuzilamento em praça pública. Quando reunidos na praça, a execução dos prisioneiros foi suspensa. Como se soube depois, tudo não passou de uma grande farsa orquestrada pelo próprio Nicolau I, cujo objetivo era lucrar politicamente com a punição implacável dos grupos revolucionários e, ao mesmo tempo, com o gesto final de benevolência soberana. No instante da execução, as armas já apontadas na direção dos prisioneiros, um rufar de tambores: o czar ordenou a retirada das tropas e concedeu o perdão da pena capital. Esta foi, então, convertida em exílio, reclusão e trabalho forçado na Sibéria, onde Dostoiévski permaneceu por dez anos ininterruptos. Blanchot, por sua vez, por muito pouco conseguiu escapar da execução sumária por entre as mãos do exército nazista.

Paradoxalmente, o fato de não terem sido atingidos pelas armas de fogo, conseguindo escapar no momento final, os fizeram para sempre cativos dos efeitos provocados pela certeza desse instante em que a sensação do encontro com a morte se fez presente. Para os dois escritores, a impossibilidade de representação de um tempo que se situa de certo modo fora do tempo acabou por instigar pela via da narrativa literária o testemunho de uma profunda transformação. O caráter testemunhal materializado na escrita, registro concreto do evento limiar, responde pela sobrevivência daquilo que, não podendo existir, encontra na palavra um lugar de morada, ainda que instável e para sempre provisória.[1]  

Pelo menos em dois de seus romances, Crime e Castigo e O idiota, Dostoiévski toma de empréstimo a fala de seus personagens para mais uma vez tentar narrar a experiência da iminente execução.

Raskólnikov, em Crime e Castigo:

“Onde foi”, pensou Raskólnikov, enquanto caminhava adiante, “onde foi que eu li que um homem condenado à morte, uma hora antes de morrer, fala ou pensa que, se fosse obrigado a viver em algum lugar elevado, num penhasco, e numa área muito estreita, onde só tivesse espaço para apoiar os pés, e em redor só houvesse abismos, o oceano, a escuridão eterna, a solidão eterna e uma tempestade eterna, e tivesse de ficar de pé, assim, num espaço de um archin a vida inteira, mil anos, a eternidade, ainda seria melhor viver desse jeito do que morrer já! Bastava viver, viver, viver! Não importa como, mas apenas viver!… Como isso é verdadeiro! Meu Deus, como isso é verdadeiro![2]

A referência literária de Raskólnikov, a do protagonista do romance O idiota, o Príncipe Míchkin, personagem que também narra experiência semelhante, e a do próprio Dostoiévski, que se debateu com o mistério da morte no instante de sua condenação, remonta ao livro de Victor Hugo, O último dia de um condenado. Esse fato crucial na vida do escritor russo é mais um daqueles casos em que a literatura e sua capacidade de dizer o indizível empresta sua voz no momento agudo em que o real traumático – para Dostoiévski, “um terror místico” – produz um rasgo na rede simbólica e imaginária do sujeito. Segundo o registro do biógrafo Joseph Frank:   

Liov, que estava com ele no patíbulo, escreveu entre 1859 e 1861 que “Dostoiévski estava bastante agitado, lembrou-se de O último dia na vida de um condenado, de Victor Hugo e, aproximando-se de Spiéchniev, disse: Nous serons avec le Christ.”

Em carta enviada da prisão para o irmão Mikhail logo após o desfecho da farsa macabra no centro da praça Semenovski – e a consequente conversão da pena –, Dostoiévski diz:

Quando olho para o meu passado e penso em quanto tempo perdi com nada, quanto tempo perdi em futilidades, erros, ociosidade, incapacidade de viver; como lhe dei pouco valor, quantas vezes pequei contra meu coração e minha alma — então meu coração sangra. A vida é uma dádiva, a vida é felicidade, cada minuto pode ser uma eternidade de felicidade! Si jeunesse savait! Agora, ao mudar minha vida, renasço numa nova forma, Irmão! Juro que não vou perder a esperança e manterei minha alma e meu coração puros. Renascerei para melhor. Essa é toda a minha esperança, todo o meu consolo!

Vida é vida em qualquer lugar a vida está em nós mesmos, não no exterior. Terei seres humanos ao meu redor [na Sibéria], e ser um homem entre homens e continuar a sê-lo sempre, não perder o ânimo e não desistir, a despeito do infortúnio que possa ocorrer — isso é a vida, essa é a tarefa dela, cheguei à consciência disso. Essa ideia entrou em minha carne e em meu sangue.

Mas ainda tenho o meu coração e a mesma carne e o mesmo sangue, que também podem viver, sofrer, desejar e lembrar, e isso, afinal, também é vida. On voit le soleil![3]

Joseph Frank não deixa de destacar que esta última frase, “Vê-se o sol”, remete a um fragmento da obra de Hugo, quando o “homem condenado”, enquanto aguarda a execução na guilhotina, reafirma a vida diante de sua iminente extinção. Era essa uma das vozes que invadiu o espírito do escritor na experiência de sua própria condenação à morte.

Último livro de Maurice Blanchot, a narrativa O instante da minha morte foi publicada pela primeira vez em 1994, cinquenta anos depois de sua “experiência inexperienciada”[4] de quase morte. O evento narrado se situa no contexto da chegada dos Países Aliados em solo francês e das seguidas derrotas do exército alemão, que lutava “em vão com uma ferocidade inútil”. Um “jovem homem” é capturado por soldados liderados por um “tenente nazi” e logo posto contra um muro branco, sob o alvo das armas que aguardavam a ordem de disparo. No entanto, a intrusão dos ruídos da guerra no interior da cena cuja duração infinita demorava no coração do personagem, adiou sua execução: a batalha que se aproximava perturbou a determinação assassina do “tenente nazi” desviando sua atenção. O jovem homem conseguiu, enfim, se afastar.

Sei – saberia mesmo eu – que aquele que os Alemães já tinham na mira, não esperando senão a ordem final, experimentou então um sentimento de extraordinária leveza, uma espécie de beatitude (nada, porém, que se parecesse com felicidade) – alegria soberana? O encontro da morte com a morte?

No seu lugar, não tentarei analisar este sentimento de leveza. De repente, ele era talvez invencível. Morto – imortal. Talvez o êxtase. Ou antes o sentimento de compaixão pela humanidade sofredora, a felicidade de não ser imortal nem eterno. Doravante, ficou ligado à morte, por uma amizade sub-reptícia.

[…]

Permanecia, todavia, como no momento em que o fuzilamento estava iminente, o sentimento de leveza que não conseguirei traduzir: liberto da vida? o infinito que se abre? Nem felicidade, nem infelicidade. Nem a ausência de temor e já o passoalém. Sei, imagino que este sentimento inanalisável mudou o que lhe restava de existência. Como se a morte fora dele não pudesse doravante senão combater a morte nele. “Estou vivo. Não, você está morto.”[5]

O ato de “inscrição” do instante de quase morte no relato de Blanchot expõe um limiar indissolúvel entre o testemunho e a ficção. À voz do narrador, o homem que rememora o vivido muitos anos depois, juntam-se a experiência narrada, o jovem homem na mira das armas dos soldados enfileirados[6], e a presença ausente do próprio autor, que endereça ao público sua escrita literária. O homem sabe – “talvez” ainda saiba o que se passou – ao mesmo tempo em que imagina (“Sei, imagino…”) o que teria se passado na pele do jovem homem. O teor testemunhal da escrita de Blanchot nos faz saber que o jovem homem que um dia ele realmente foi e aquele “outro” que ele ainda o é estão, a despeito de um desencontro irremediável, condenados a se refletirem indefinidamente. Um não pode jamais substituir o outro; e a síntese conjuntiva operada pelo Eu deve sempre fracassar: “Estou vivo. Não, você está morto.”

O des/encontro dessas linhas temporais no corpo da narrativa e o seu fracasso em decidir-se ora sobre uma (ficção), ora sobre outra (autoficção), testemunha a presença irredutível de “um sentimento inanalisável”. Algo de indistinto, um “instante indivisível” que resiste no âmago de todo ato testemunhal, como sugere Derrida, permanece entre as linhas do texto e alimenta o jogo indeterminado, indecidível, que atravessa a escrita de Blanchot. O que passou não passa no espírito do escritor: “Apenas permanece o sentimento de leveza que é a morte mesma ou, dizendo mais precisamente, o instante da minha morte doravante sempre em instância.”

* * *

A ressonância entre os relatos de Dostoiévski e de Blanchot são incalculáveis, valendo também para o primeiro a constatação de que “o sentimento inanalisável mudou o que lhe restava de existência.” Através da escrita, a unicidade de cada um dos dois acontecimentos extrapola o instante para sempre inalcançável e alcança, ao menos, a capacidade de um dizer passível de universalização. Um encontro possível entre os dois se realiza na medida em que o intraduzível exige, como condição de possibilidade, o esforço de sua tradução.


Notas:

[1] – Ver a reflexão de Jacques Derrida sobre a narrativa de Blanchot: Demorar. Maurice Blanchot. Florianópilis: Editora Ufsc, 2015.

[2] – Crime e Castigo. São Paulo: Todavia, 2019.

[3] – Frank, Joseph. Dostoiévski: Um escritor em seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[4] – Conceito desenvolvido por Jacques Derrida em sua leitura seminal do texto de Blanchot: “O que pode significar uma experiência inexperienciada? Como experimentá-la? Enfim morrer vai se tornar possível – tanto quanto interdito. Todo vivente tem uma relação impossível com a morte; no instante da morte, o impossível vai se tornar possível como impossível.” Demorar: Maurice Blanchot. Trad. Carla Rodrigues e Flávia Trócoli. Florianópolis: Ed. Ufsc, 2015. A leitura que segue é inspirada no ensaio de Derrida.

[5]L’instant de ma mort. Maurice Blanchot. Paris: Gallimard, 2002. Tradução minha.

[6] – No início da narrativa os soldados são nomeados como soldados alemães. No entanto, logo após a suspensão da ordem de fogo contra o jovem homem, o leitor é “informado” que, na verdade, tratava-se de um exército russo, liderado pelo general Vlassov, traidor que se juntou aos alemães durante a guerra. Num francês “anormal”, um dos homens enfileirados concede a salvação ao jovem homem, fazendo-lhe sinal para desaparecer após dizes: “Nós, não alemães, russos.” Mais uma traição: desta vez o soldado russo traindo o “tenente nazi” alemão e o general Vlassov.

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