Do primeiro choro ao livro da vida
Em Corpo de Festim, Alexandre Guarnieri propõe-se indagar sobre a vida ampliando seu sentido – não por meio da biologia, mas da palavra
Publicado 21/01/2016 às 14:58 - Atualizado 15/01/2019 às 17:36
Em “Corpo de Festim”, Alexandre Guarnieri propõe-se indagar sobre a vida ampliando seu sentido – não por meio da biologia, mas da palavra
Por Rafael Zacca
O mundo da epopeia responde à pergunta: como pode a vida tornar-se essencial?” Essa coordenada de Lukács a propósito da epopeia fora formulada à mesma época em que a vida se tornaria descartável nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. O niilismo do corpo físico abriu espaço para a guerra, por um lado, e para as elucubrações sobre a vida espiritual (com a Lebensphilosophie, mas também com os círculos místicos de intelectuais europeus) e sobre o corpo psíquico (com o expressionismo e com a psicanálise). Seja como for, o início do século XX colocou – para generais e soldados, para a intelectualidade atuante (que muitas vezes também apodrecia no front) e para estadistas e ideólogos – a pergunta sobre o valor da vida. E tal pergunta tornou-se incontornável até os nossos dias. É isto que está em jogo na recente formulação de Tariq Ali a propósito da recepção dos recentes atentados na França, quando afirmou que “O ocidente não é moralmente superior aos jihadistas. Por que uma execução pública com uma espada é pior do que um ataque indiscriminado por drones? Nenhum dos dois deve ser tolerado.”
“Toda a vida contida numa exígua partícula” é o ponto de partida de Corpo de Festim (Confraria do Vento, 2014). Para realizar as perguntas a propósito da vida, Alexandre Guarnieri propõe não um retorno temporal, não uma genealogia histórica, mas uma ampliação da dinâmica do átomo de carbono e da mecânica dos fluidos. Não se trata, porém, de uma ampliação ingênua: o instrumento dessa ampliação é a palavra escrita, e é por isso que o poeta adverte que “Darwin não joga dados, Mallarmé sim”.
Em tal ampliação, o que se destaca como herói inequívoco é um corpo. Guarnieri escreveu um épico sem reis; mesmo o herói não o é. Em Corpo de Festim, tudo é apenas possibilidade. Se o corpo e a palavra são de festim (o corpo é esvaziado de corpo e é construído de palavras, enquanto estas se esforçam para ser aquele), também a epopeia é um receptáculo em que um corpo qualquer pode ser narrado. Dessa forma, Guarnieri tenta nos armar: as narrativas que acompanham a formação do átomo até as práticas de vigilância e punição (o terceiro capítulo desse livro de poemas) servem de modelo para que qualquer corpo possa narrar a si próprio.
o átomo de carbono (i)
toda a vida contida numa exígua partícula,
– desdobrável de si própria –, equilibrada
sobre a mesma progressão desenfreada;
deuses ferveram-na numa caldeira aquecida
ante o clarão do big bang / cozendo-a por milênios,
lenta, nas tripas da mais velha estrela / e lá, aprisionada,
como o maior espetáculo da via láctea, além do limbo
centígrado dos organismos bioquímicos,
replicou-se a enzima de sua fina
(e elástica) matematicidade
// até que […]
Se o discurso biológico serviu de arma para tornar vidas consideradas “anormais” descartáveis, aqui ele aparece como tábula rasa que nivela qualquer corpo. Desta maneira, a descartabilidade de um corpo configuraria a descartabilidade de todos os outros. O que se destaca em sua poética, no entanto, é o discurso propositivo: se há vida em ao menos um deles, há em todos os demais.
Se o mundo da epopeia responde à pergunta a propósito da passagem da vida para a Vida, como sugeria então Lukács, é verdade também que a elaboração épica ocupa lugar central na questão da transvalorização da vida. Isso compreenderam cedo os intelectuais nacionalistas, que postularam a necessidade de uma narrativa épica do Estado-Nação no contexto de sua fundação – e o surgimento da ciência histórica e da geografia correspondem ao par “feitos heróicos” / “ilha de origem” dos heróis homéricos.
No livro de Guarnieri, no entanto, um corpo qualquer se torna o povo ancestral, ao mesmo tempo em que representa o herói fundador. “No cerne de cada complexa célula coube o germe de sua inalienável moradia”, nos diz o poeta. Um corpo qualquer, no entanto, surge também todos os dias, a cada minuto. O corpo é não apenas essa ancestralidade, como também o povo que virá.
A epopeia narra sempre um passado inacessível e “aedo e ouvinte, imanentes ao gênero épico, situam-se na mesma época e no mesmo nível de valores (hierárquicos), mas o mundo representativo dos personagens situa-se em um nível de valores e tempos totalmente diferente e inacessível, separado pela distância épica” (Bakhtin); a profecia, por sua vez, narra o futuro conhecido apenas pelo médium, o profeta, que “desvela o que o tempo esconde dos homens e que nenhum olhar humano poderia ver, nenhum ouvido humano poderia ouvir sem ele” (Foucault).
A atitude épica e a atitude profética se combinam em Corpo de Festim, nesse misto de rememoração e anunciação, e já não sabemos se lembramos do nascimento das coisas ou se estamos a ouvir a propósito das coisas que ainda não vimos. Trata-se, no entanto, de uma fala sobre o presente. É no abismo da distância épica, na intermediação entre profeta e deuses, que o narrador de Corpo de festim quer nos colocar. Se logra a sua tarefa, não nos cabe dimensionar.
Tudo isso diz respeito às técnicas narrativas. Talvez seja por isso que o livro não abandone certa dimensão prosaica. Nesse contexto, todas as partes do corpo são ao mesmo tempo personagens e caminhos a serem percorridos pelo personagem corpo. Essa interpenetração é possibilitada pela mútua contaminação entre a prosa e a poesia:
ânus humano (.) ônus santo
acompanha o corpo este túnel obscuro,
dúbio/ lúbrico, sujo/ úmido, ao
longo da coluna – quando ereto, sua
verticalidade se sujeita à força da
gravidade e quando não, há tão somente
– silenciosa – a peristalse
Há algum tempo se tem falado a propósito da crise das narrativas. Entre manifestos e textos críticos, as proposições para que se continue ou interrompa o ato de narrar batalham pelo discurso do prognóstico correto. A crise do épico, o apogeu e declínio do romance, e o retorno das narrativas no interior da própria poesia reconfiguram, incessantemente, o diagnóstico a propósito da vida do narrador. Estaremos melhor amparados, no entanto, se nos ocuparmos da seguinte forma com as questões que as novas narrativas e que as novas tentativas de sua mortificação nos colocam: como cada uma das obras singulares reconfigura o que compreendemos por narrativa? Dessa forma, acolheremos, no interior mesmo da pergunta a propósito da narração, o diagnóstico de sua saúde e de sua doença.
Seria possível afirmar que o livro de Guarnieri, no entanto, não chega a constituir de fato uma epopeia. Na medida em que constrói uma tábula rasa, perde o caráter criterioso que permite distinguir atos de valor dos não valorosos. A impossibilidade real da epopeia estaria somatizada (corporificada) nos sinais de pontuação, que já não pontuam, mas funcionam como hieróglifos sem aura, onde o papel do iniciado está disponível para qualquer não-iniciado. É preciso, porém, que se tenha em mente o conteúdo moral dessa epopeia, a saber: é imoral que se valorize um corpo qualquer em comparação com outro. O que se narra, então, como conteúdo épico, é, precisamente, o feito passado/vindouro da sobrevivência e do falecimento de todos os corpos no campo de batalha da vida essencial, que os perpassa a todos.
“A origem teria sido o primeiro choro / desde recém-nascido, daí a progressão irrefreada até o último / suspiro (quando fosse lida a última página do seu livro / da vida), interrompido para sempre o ritmo, d’algum / paciente anônimo (crônico) domiciliado em leito terminal.” Mesmo a doença em Corpo de Festim não é um corpo estranho, mas uma das condições do corpo mesmo. Como outrora na epopeia o destino de todo um povo se personificava em reis, em Guarnieri há essa enteléquia da vida contida numa única partícula.
Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2015.
beleza de texto – densa interpretação!
Lindo demais!
Com apresentação como esta, é possível não se interessar pelo livro?