Cruz e Sousa, o poeta negro contra a ordem colonial

Livro analisa a poesia em prosa do autor do século XIX, pouco explorada pela crítica. Ele enveredou-se nas tensões da sociedade escravocrata. E, como estratégia de resistência, pintou um Satã local, patrono “dos despossuídos, negros e artistas párias”

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Prefácio de A forma negra da morte – satanismo e escravidão no poema em prosa de Cruz e Sousa, de Simone Rossinetti Rufinoni, livro publicado pela Editora Alameda, parceira editorial de Outras Palavras

Este livro traz contribuição decisiva para uma parcela menos celebrada da produção de Cruz e Sousa e flagrada de uma perspectiva inédita: a dos poemas em prosa, vistos como inferiores pela maioria dos intérpretes do poeta, desde a primeira recepção até a mais recente, sempre sem justificativa plausível. A única concessão (que soa pretensiosa) feita pela crítica é para o “Emparedado”. Todavia, a dimensão extraordinária deste poema não justifica o nivelamento por baixo de um conjunto expressivo como o de Evocações, onde o poema figura estrategicamente no fecho do livro, cuja lógica estrutural é desvelada com argúcia por Simone Rossinetti Rufinoni. A mesma agudeza preside a aproximação crítica dos demais volumes de poema em prosa, como Missal e Outras evocações.

Estudos mais recentes têm inventariado as realizações do gênero na tradição literária brasileira, ressaltando a contribuição relevante trazida pelo poeta catarinense. O escopo deste livro, contudo, não é historiar a forma extensivamente, contabilizando suas ocorrências, mas de concentrar-se em seu potencial subversivo, não só estético como político. Desde Le spleen de Paris, por vezes considerado como a renovação formal mais radical trazida efetivamente por Baudelaire, até seu aprimoramento extremo n’As iluminações de Rimbaud, o poema em prosa insurge-se contra a tirania da métrica e de outras convenções poéticas, visando a livre manifestação do sujeito, a incursão por domínios além da razão e da ciência e a busca de totalidade.

Simone Rossinetti Rufinoni, depois de trazer à baila essas motivações estéticas e até filosóficas implicadas na conformação híbrida do gênero em solo europeu, deslinda sua reconfiguração em contexto periférico, investida de uma motivação étnica e social não prevista originalmente. No Brasil fin-de-siécle, de Abolicionismo recente embora de renitente herança escravista, a forma anárquica – destrutiva sim, mas de uma desordem dialeticamente reconstrutora – permite dinamizar, como poucas, os dilaceramentos e contradições do lugar de inscrição do poeta negro no campo literário, que nada tem de autônomo em relação às hierarquias e aos mecanismos de segregação que regulam a ordem social mais ampla. A heterogeneidade da forma é orquestrada pelo poeta do Desterro de modo a ressoar a dissonância entre a voz da resistência e as dos discursos cientificistas, deterministas e raciais então em voga que o condenavam à exclusão, convocadas no poema em prosa para evidenciar suas inconsistências e equívocos.

Sempre requalificada em função das determinações locais, a apropriação do legado baudelairiano se dá não só no plano da forma híbrida, mas compreende ainda o repertório de temas e motivos, a cosmovisão e os procedimentos retóricos e estilísticos que procedem diretamente da obra do poeta francês ou por intermédio das releituras que dele fizeram o Simbolismo e demais correntes finisseculares. Simone Rossinetti Rufinoni explora todas elas de maneira igualmente iluminadora, ao evidenciar a correlação admirável estabelecida por Cruz e Sousa entre as antinomias do poema em prosa, o satanismo, a obsessão com a morte, as categorias estéticas do feio e do grotesco tensionadas com o sublime e o ideal inalcançável, bem como o efeito irônico advindo dessas tensões, sempre evidenciando as forças sociais nelas implicadas.

As análises penetrantes, fundamentadas na Teoria Crítica e suas derivações no Brasil, concentram-se ainda nas “ideias fixas”, no “ponto de vista da morte” e nos processos de “medusamento”, concepções que evidenciam o alinhamento desta abordagem a conhecidos estudos sobre a prosa oitocentista (sobretudo Machado de Assis e Raul Pompeia1), embasados na mesma vertente teórica redirecionada à práxis local. Mais que mera aplicação desses conceitos, a ensaísta pleiteia a justa adequação deles à especificidade de seu objeto, o que só reforça a validade do método e da teoria adotados para a compreensão da obra do catarinense e, por meio dela, da dinâmica da realidade local sedimentada em forma literária.

Em que pese a contribuição decisiva de Walter Benjamin e outros nomes representativos dessa corrente teórica fora e dentro do Brasil para forjar seu método crítico, sobreleva a inspiração particularmente colhida pela ensaísta nos estudos de Dolf Oehler que tratam seja da dita estética antiburguesa, seja da semântica da revolução de junho de 1848 nos albores da modernidade2, mas reconfiguradas em vista das particularidades do país periférico, de forte herança escravista.

No que tange à arquitetura deste livro, chama a atenção o jogo engenhoso armado pela autora. Embora leia detidamente um número amplo de poemas em prosa de Cruz e Sousa, ela dispõe de modo estratégico sete deles no centro e faz gravitar os demais ao seu redor. São eles: “Psicologia do feio”, incluído em Missal, e “Consciência tranquila”, em Outras evocações, enquanto os demais pertencem a Evocações: “O sonho do idiota”, “Capro”, “Dor negra” e “Asco e dor”, sem esquecer do celebrado “Emparedado”, que irradia os termos da poética e da retórica mobilizados pelo conjunto dos poemas em prosa. Além do exame isolado de cada um dos sete, eles retornam em outros momentos do livro, dada a força de atração que exercem sobre os demais, que circulam em sua órbita.

Nesse sistema relacional tão bem armado, destaco a análise notável de “Capro”, poema incompreensivelmente ignorado pela crítica, dado a sua contundência e o seu poder de subverter uma das imagens bestiais mais aviltantes a que historicamente recorreu o preconceito social para a desqualificação de negros e pardos. Infelizmente a tradição literária local deixou para a posteridade registros poéticos que reincidem nessa figuração execrável, como se vê na sátira barroca atribuída a Gregório de Matos, concebida da perspectiva senhorial do letrado branco dentro de uma ordem colonial fortemente hierarquizada.

É verdade que, no século XIX, Luís Gama já havia operado uma reversão poderosa do sentido negativo original pelo viés mesmo da sátira em “Quem sou eu?”, que chegou à posteridade mais conhecido como “A bodorrada”… Nessa que foi considerada por Manuel Bandeira (Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica) a maior sátira da Literatura Brasileira, a persona de Getulino, o autonomeado Orfeu de Carapinha, requalifica ironicamente a imagem caprina com mitologias positivadoras que a tomam por símbolo e estende a miscigenação nela implicada a todas as castas do Segundo Império, investindo com força contra os que renegam sua ascendência étnica, quando pretendem passar por brancos.

Já Cruz e Sousa abandona por completo o terreno da sátira em direção ao extremo oposto, enveredando pelos domínios do trágico e do sacrifical, uma vez que, como bem resume Simone Rossinetti Rufinoni, “o bode, via capro, açambarca imagens que, do ritualismo pagão articulado à animalização característica do contexto escravista, levam ao pharmakós – e daí à apropriação do sacrifício do negro poeta –, camadas de significação temperadas pela estratégia satânica que implica a adesão e subsequente traição do código”.

Pensando ainda em termos de recorrências na tradição poética local, é impressionante o tratamento dado por Cruz e Sousa ao mito bíblico da escravidão, que a autora volta a examinar aqui. O “anacronismo de perspectiva”3, que marcava a evocação contraditória do mito de Cam num dos grandes poemas abolicionistas (“Vozes d’África”), legado pelo romantismo libertário do condoreiro Castro Alves, reverbera em “Emparedado”, mas enunciado, agora, por uma das vozes que ecoam a ideologia em circulação e que, “sinistramente, nasce de dentro da própria subjetividade”.4

O complexo de vozes contraditórias que repercute em “Emparedado”, como estratégia contraideológica de desestabilização dos discursos discriminadores em vigência no tempo, já havia sido identificado por Alfredo Bosi.5 Simone Rossinetti Rufinoni leva adiante essa interpretação, contrariando a ingenuidade de outras leituras surdas ao ribombar de vozes dissonantes no texto, reduzindo-as a uma só, a da própria personificação do poeta negro, o que implicaria a absurda pactuação conformista deste com a culpa ancestral que naturaliza biblicamente a escravização.

A ensaísta adensa a análise do “Emparedado” ao demonstrar a articulação nele presente do mito de Cam com outro arquétipo bíblico da maldição paterna e da queda: Satã. Diz ela: “Na esteira do satanismo romântico, relido pelas lentes baudelairianas e simbolistas e, ainda, transfigurado pelo caso nacional, Satã passa a ser o patrono dos despossuídos, negros e artistas párias”. Mais que símbolo da revolta contra a ordem, o satanismo do poeta catarinense passa a constituir “resposta dialética à demonização destinada ao negro na sociedade brasileira.

Imagem: A Redenção de Cam (1895), de Modesto Brocos/ Reprodução fotográfica: César Barreto

Trata-se da elaboração de uma estratégia estética de resistência que, articulada ao concerto de vozes, funciona como dispositivo que aciona a práxis brasileira, dando às genéricas imagens satânicas, especificidade local.”

Há de se notar, entretanto, que essa reversão poderosa do mito de Cam promovida no “Emparedado” tendeu, infelizmente, a permanecer isolada, obnubilada juntamente com essa parcela significativa da produção em prosa poética de Cruz e Sousa. O endosso do mito bíblico seguiu vigente nas artes de seu próprio tempo, como se vê na tela Redenção de Cam (1895) de seu contemporâneo, o pintor espanhol radicado no Rio de Janeiro Modesto Brocos, que celebra a remissão do pecado ancestral por meio do branqueamento geracional.6

Décadas depois, na literatura, Jorge de Lima ainda surpreenderia “o sono temeroso de Cam” no ventre ensaboado e ainda infecundo de “Zefa lavadeira”, personagem negra, a um só tempo individualizada e tipo, figurada a se banhar no rio depois da faina, como outras anônimas e homônimas, em excerto de A mulher obscura (1939), republicado separadamente como prosa poética em Poemas negros (1947).

O destaque dado aqui às análises de “Capro” e “Emparedado” não diminui em nada o grande mérito e a percuciência das demais, todas convergindo para mensurar devidamente a alta voltagem poética e política dessa parcela menosprezada da obra de Cruz e Sousa. Alta voltagem essa que tensiona mesmo os momentos menos felizes esteticamente, mas que são, ainda assim, testemunho admirável da experimentação sempre arriscada com a forma disforme que se avizinha do fragmentário e do inacabado.

Os dois estudos finais (Parte V) de A forma negra da morte foram concebidos a posteriori, mas integram-se ao livro em perfeita união, como já se deixa notar pelo título do penúltimo deles: “Invisibilidade e simulação da audiência no poema em prosa de Cruz e Sousa”. Associado o gênero à formalização do apagamento social (teorizado via Jacques Rancière) e do endereçamento sem horizonte de recepção, há ainda a discussão instigante sobre o recurso ao monólogo dramático, que se casa bem com a orquestração de vozes recorrente nos poemas em prosa de Cruz e Sousa. Em diálogo com Alan Sinfield, teórico dessa modalidade poética, assevera a ensaísta: “O poeta não elabora personae, apagando-se e regendo o todo: mantém a identidade e carrega consigo a voz do outro.

De modo que a singularidade desse enunciador autocentrado não impede a apreensão das peculiaridades da arena pública local; ao contrário, o sujeito que traz consigo os ecos do mundo precisará valer-se de complexos modos de ficcionalização do eu em meio à cunhagem de outras vozes. Diante de tais impasses, o poema em prosa de Cruz e Sousa resultará prolixo e impuro, forma informe da desumanidade legalizada – experiência estética possível em meio à invisibilidade”.

Quanto ao último ensaio, o intertexto contempla mais uma tradição literária europeia que marcou nossa formação e permaneceu atuante no segundo Oitocentos mesmo depois da Independência. A ensaísta, entretanto, ao reconhecer os ecos de “Os pobrezinhos” de Guerra Junqueiro em “Litania dos pobres”, de Cruz e Sousa, identifica num ato contínuo a transformação decisiva, promovida por este último, da figuração do desvalido em relação à roupagem naturalista e sua aproximação da condição do poeta como pharmakós – representação explorada em capítulos anteriores, em diálogo com os intérpretes do escritor catarinense, que já haviam tratado de lhe conferir esse estatuto ambíguo, como vítima sacrificial e anunciador da salvação.

Diferentemente do poeta português, Simone Rossinetti Rufinoni demonstra nos versos do brasileiro um sopro revolucionário haurido no enlace das “Litanias de Satã” com “Abel e Caim”, pertencentes à seção “Revolta”, de As flores do mal.

Com isso, mesmo tendo abandonado o terreno do poema em prosa, repõe-se o diálogo produtivo, examinado em praticamente todo o livro, com o legado baudelairiano e, sobretudo, com o potencial subversivo que ele conferiu a Satã, sempre apropriado pelo viés local, selando assim, magistralmente, a unidade do todo.


Notas:

1 Refiro-me aos estudos de Roberto Schwarz e José Antonio Pasta Junior.

2 Semântica na qual, a propósito, o satanismo figura em um lugar central. Refiro-me, evidentemente, a Quadros parisienses (1830-1848): estética antiburguesa em Baudelaire, Daumier e Heine (1830 –1848). São Paulo, Companhia das Letras, 1997; e O velho mundo desce aos infernos: autoanálise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

3 Alfredo Bosi. “Sob o signo de Cam”. In: Dialética da Colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

4 Ivone Daré Rabello. Um canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa. São Paulo, Nankin/Edusp, 2006, p. 92.

5 Vide ainda, de Alfredo Bosi, “Poesia versus racismo” (In Literatura e resistência. São Paulo, Companhia das Letras, 2002, 163-185; 290-291), em que o crítico retorna ao mito bíblico em Cruz e Sousa e inclusive remete ao estudo de Simone Rossinetti Rufinoni sobre o satanismo na prosa poética do catarinense.

6 Modesto Brocos, Redenção de Cam, 1895.

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