Crônica sobre a quebra do feitiço no cinema
Na tela, dois corpos em entrega íntima. Na plateia, olhos em fuga: risos, cochichos e luz de celular. A nudez emocional desconcerta mais que a pele exposta? Ou é o medo de suspensão típico da cultura digital? Talvez não seja a indiferença, mas porque o silêncio exige coragem – e entrega
Publicado 09/05/2025 às 18:52 - Atualizado 09/05/2025 às 18:57

Silencio, no hay banda. Em Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001), obra-prima de David Lynch, a atmosfera onírica exige olhos e ouvidos atentos para absorver a experiência cinematográfica surrealista. O filme voltou aos cinemas 24 anos após sua estreia, em versão remasterizada e em 4K.
Na metade final da projeção, as personagens de Naomi Watts e Laura Harring se entregam a uma relação sexual. A nudez de ambas emerge na penumbra noir, numa cena de intimidade e delicadeza.
O silêncio, contudo, é quebrado por risos envergonhados na plateia. No escuro da sala, pequenas telas de celular se acendem — dedos deslizam apressados, numa tentativa quase instintiva de desviar os olhos da cena de sexo lésbico projetada à frente.
É difícil sustentar o olhar diante da intimidade, mesmo quando representada. A cena entre as duas mulheres não exibe corpos performáticos nem coreografias espetaculares — o que se vê é uma entrega hesitante, atravessada por desejo e fragilidade das duas personagens que se descobrem mutuamente. Talvez por isso os risos: a nudez emocional desconcerta mais que a pele exposta. Não há trilha sonora, efeitos ou cortes rápidos para suavizar o momento. Há apenas duas pessoas em silêncio, se tocando, se olhando. E uma plateia que, acostumada à excitação higienizada da pornografia ou ao erotismo plastificado dos reels, vacila diante do que é humano demais.
O gesto de acender a tela do celular, ali no escuro, diz muito. Não se trata apenas de checar mensagens, mas de quebrar o feitiço da cena. É como se o brilho azul emitido pelo aparelho restituísse o controle emocional perdido diante da imagem. Acionar a notificação vira um refúgio, um escape da tensão provocada pela proximidade afetiva entre dois corpos femininos. Numa época em que o toque real é cada vez mais substituído por deslizes de dedo e likes, assistir a uma cena longa, silenciosa e sensível exige um tipo de presença que já não se treina. O cinema pede entrega — e isso pode ser mais violento do que parece.
A conversa do público atravessava outras partes da sessão, principalmente no último terço do filme, quando o enredo se embaralha e abandona qualquer linearidade. Em vez de aceitar o enigma, muitos reagiram com comentários sussurrados, piadas e tentativas de decifração imediata. Mas Cidade dos Sonhos não se deixa explicar — é preciso senti-lo, como um sonho que escapa pela manhã.
Esse impulso de traduzir tudo em tempo real, de responder a cada cena com uma fala, revela uma ansiedade típica da cultura digital: o medo do vazio, da suspensão, da pausa. No lugar da contemplação, o comentário. No lugar do silêncio compartilhado, o ruído da insegurança.
Silêncio, no hay banda. Mas há ainda a chance de escutar — se silenciarmos junto. Quando a intimidade na tela nos constrange, quando o mistério nos inquieta, talvez o cinema ainda esteja cumprindo sua promessa: a de nos reunir no escuro para sentir, sem garantias. Benjamin nos lembrou que o cinema rompeu a aura da arte única, mas criou outra coisa — uma partilha possível no tempo fragmentado. Morin viu nisso um rito moderno, capaz de provocar comunhão. Se hoje nos distraímos até do que nos toca, talvez não seja por indiferença, mas por medo de sermos tocados demais. E rir, nesse contexto, é só uma forma disfarçada de recuar. Porque permanecer em silêncio — dentro e fora da tela — exige coragem. E entrega.
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