Conclave: O elogio da dúvida
Com roteiro engenhoso, filme mostra os bastidores da escolha de um novo papa. Instituição e fé se digladiam, gerando uma tensão: a realpolitik na defesa da Igreja ou a consciência moral? Paralelamente, atentados de motivação religiosa assolam o mundo
Publicado 20/02/2025 às 16:50 - Atualizado 20/02/2025 às 16:51
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Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Não foi por acaso que Conclave, de Edward Berger, venceu o Bafta, principal premiação do cinema britânico: dirigido por um alemão, é um filme inglês com cara de cinema americano. Não vai nisso nenhum reproche, nem tampouco elogio; é só uma constatação.
Conta-se ali, como se sabe desde o título e do cartaz, os bastidores da escolha de um novo papa. Com a precisão e a tensão crescente de um mecanismo de bomba-relógio, delineia-se um quadro instável de forças, atravessado pela política, pela cultura e pela moral, com uma sucessão de revelações, reviravoltas e surpresas de tirar o fôlego.
Desde a primeira sequência – a chegada ao Vaticano do cardeal-decano Thomas Lawrence (Ralph Fienness), que presidirá o processo – o clima é de suspense, intensificado pela música nervosa e pela montagem vibrante.
Realpolitik e consciência moral
Baseado no romance homônimo de Robert Harris, o roteiro é engenhoso ao apresentar inicialmente um quadro simples de embate entre um setor progressista – representado pelo cardeal Bellini (Stanley Tucci) – e outro reacionário – capitaneado pelo cardeal Tedesco (Sergio Castellitto) – e depois ir tornando mais complexo o contexto, com a emergência de outros personagens e a revelação de uma porção de segredos e escândalos.
É assim que se configura o que parece ser o drama central da narrativa: o embate entre a realpolitik vaticana, isto é, o pragmatismo na defesa da Igreja ou do que se acredita ser o melhor para ela, e a consciência moral de cada um. A instituição, o interesse pessoal, a fé: essas forças se digladiam o tempo todo e atormentam o protagonista Lawrence, empenhado em conduzir o processo do modo mais íntegro possível, o que implica romper ocasionalmente as regras da própria Igreja.
Apesar da presença constante dos diálogos e discursos (em inglês, italiano e latim), a abordagem é essencialmente cinematográfica. Basta o olhar irônico lançado por um cardeal à delegação africana para expressar todo um sentimento de racismo e arrogância de uma parcela daqueles “homens de Deus”. Não é necessária uma palavra.
Enquanto, na reclusão do Vaticano, os cardeais conversam, discutem, conspiram, o mundo extramuros se mostra literalmente explosivo, com atentados sangrentos de motivação religiosa. Um dos acertos do filme é manter essa agitação mundana fora do quadro, com uma exceção notável: a cena em que uma explosão estoura uma das janelas vedadas da Capela Sistina, abrindo um facho de luz que inicialmente chega a parecer uma intervenção divina.
Mas tudo nesse drama é muito humano, demasiado humano, e a par de sua tremenda eficácia narrativa Conclave tem o grande mérito de exaltar a dúvida e a tolerância num mundo assolado pelas certezas fanáticas e pelo julgamento peremptório do outro, sobretudo do diferente e do divergente.
Revisitas ao Vaticano
Os subterrâneos do Vaticano são um terreno fértil para a ficção e a especulação político-religiosa-moral (sem falar na beleza da cenografia), e por isso o cinema retorna a eles de quando em quando.
Nos últimos anos surgiram, com perspectivas bem distintas, Habemus Papam (2011), de Nanni Moretti, e Dois papas (2019), de Fernando Meirelles. Bem antes disso, O poderoso chefão III (1990), de Francis Coppola, mostrava o envolvimento da Máfia com a Igreja, e antes ainda, no contexto da Guerra Fria, As sandálias do pescador (1968), de Michael Anderson, imaginava a emergência de um papa ucraniano, saído de uma prisão soviética.
Conclave é um representante mais do que digno dessa tradição, atualizando o tema com a introdução de questões muito atuais, como o terrorismo religioso, a posição da mulher na Igreja, as tensões geopolíticas do Terceiro Mundo e até a complexidade das definições de gênero e sexualidade.